
por Alex Cabral Silva
O plural daquela construção era o contraste mais significativo daquele imenso espaço vazio. Eram inúmeras salas de estar, salões de festas e refeições. Bibliotecas, cozinhas, quartos espalhados por todo aquele palacete de longos corredores, formando um labirinto bem cuidado somente em alguns cômodos. Izolita, a única moradora, mal conseguia explorar tudo o que aquela suntuosa construção oferecia. Pela área externa, quadras dos mais variados esportes, junto de piscinas e lagos naturais. Tudo distribuído por uma propriedade quase impossível de se alcançar o tamanho com uma mirada só. Aquela majestosa edificação fincada bem no meio de uma fortaleza de muros muito altos, era a morada de uma mulher desconectada com o que se passava além daquele mundo particular. Câmeras de monitoramento instaladas por todo o lugar eram o suficiente para informar Izolita que ela não deveria nem ousar considerar colocar os pés para fora daquele terreno.
Era comum fazer suas refeições sempre postas numa cozinha abastecida de mantimentos para muitas vidas ainda por vir. Não tinha recordação de já ter visto quem lhe servia, pontualmente, por três vezes ao dia. Tampouco quem preparava o farto e elegante menu. Por onde costumava a vagar, notava-se um ambiente mais limpo. O mesmo quando se colocava para fora do palacete. Se visitasse um espaço que não tinha o hábito de prestigiar, encontrava o mesmo mais bem cuidado ao retornar. Também nunca se deparava com quem limpava os quartos, cuidava dos jardins e das piscinas. Por dentro de casa, andava sempre pelos mesmos cômodos por comodidade. Izolita manca. Arrasta o pé direito sempre coberto por uma bota disforme que oculta aquela parte do corpo de forma proposital. Pelo terreno fartamente arborizado, conduz um carrinho de golfe que a leva até onde tem paciência. Gasta algumas poucas horas do dia numa sala com TV, um tablet e aparelhos de som que seguem desligados a deixando intencionalmente alienada do que se passa além dos muros. Não busca notícias, nem mesmo se entretém com alguns dos inúmeros livros à disposição. Izolita era a minoria no interior daquele espaço de tantos espaços. Com ela, às vezes, sua sombra e com frequência, o eco. Em seu dia a dia que consiste em acordar e fazer o que quiser fazer dentro do que aquele confinamento lhe oferece, se acostumou com o agora e nunca demonstra estar contando o tempo.
As lentes que também estão posicionadas dentro de casa, acompanham o seu vagar por todo o lugar. São surdas e só enxergam aquela mulher insociável, que não encara calendários, nem relógios. Os de pulso, estão em gavetas que ela não abre mais. O som de sua voz escuta somente em dias de pensamentos altos e até isso faz sozinha também.
No cotidiano comum daquela vida, têm reações distintas, quando ouve vozes e, mais especificamente, passos além dos seus. Naquela casa imensa, todo movimento reverbera. Nunca alcançou os que falavam além de onde estava quando tentou encará-los. Arrastava seu pé direito numa caminhada apressada e sofrida, encontrando sempre espaços abandonados, identificados por objetos largados de qualquer jeito. O sonido de facas e do aspirador de pó cessavam de imediato com o passar de Izolita se aproximando. Quando não segue o barulho que vem além de onde está, se senta no chão e cobre os ouvidos, mergulhando ainda mais em seu inevitável exílio.
Gregória quase não pisca durante o horário de trabalho. Parte de seu turno, divide, eventualmente, com colegas que não lhe estimulam muita interação e, quando tem a oportunidade de estar só, resgata um pen drive do bolso. Nesses momentos ela tira os olhos atentos a uma parede imensa e curva de telas em altíssima resolução. Imagens desacompanhadas de áudio mostram a rotina de um lugar de paisagem variada, com muito conforto e opções de lazer. Diante de sua cadeira um pequeno monitor que tem como se fosse exclusivamente seu. Aproveita esses instantes sem companhia para rever a cena de uma criança atravessando uma avenida, guardadas num arquivo de vídeo no flash drive que carrega sempre consigo. Gregória volta manualmente no teclado aquele momento flagrado, pelo tempo que pode fazer isso e sempre repetindo num sussurro para si mesma: Não atravesse, não atravesse, não atravesse…
O sol não atinge aquela parte do corpo encoberta. Aquele pé de odor impossível de camuflar com qualquer um dos inúmeros perfumes disponíveis numa cômoda no quarto de dormir, não era muito higienizado e, logo, se tornou um problema criado pela própria Izolita. Quando se permitia tirar a bota, franzia o cenho e tentava desviar o olhar para o que se tornou aquele membro de coloração e cheiro preocupantes. Mantê-lo sempre num calçado era um conflito enraizado na cabeça daquela mulher reclusa que, às vezes, discutia com o espelho sobre perpetuar aquela ação.
Nesses momentos de pensamentos intensos, argumentava sem se importar com o flagrante constante dos que lhe viam o tempo todo. Vivia o agora e se acostumou a não considerar o depois, ao achar um ninho de pássaros no chão, vazio, num canto remoto da propriedade.
Gregória sempre aguarda do lado de fora do portão até a hora de seu turno para entrar. Sempre acena para quem lhe dá acesso e sobe num carrinho de golfe que leva e traz outros funcionários daquele lugar. Espera sempre estar só para inserir o pen drive que todos os dias a faz rever o momento que sussurra para si mesma que não aconteça. Repete essa rotina há 22 meses e entre os que monitoram aquela parede de tantas telas, está entre as que melhor conhece a localização das câmeras que nunca desligam e mostram todos os lugares por onde Izolita pode estar.
Todo o tempo passado levou também as lembranças dos que Izolita viu pela última vez. Foram muitos ao mesmo tempo e era difícil separar um rosto só e destacá-lo na memória. E na imensidão daquele terreno todo dela, ficou perturbada ao ver uma criança correndo ao redor da piscina. Tentou alcançá-la, puxando o pé tão incômodo, mas perdeu aquela aparição que se meteu pelos jardins e sumiu junto de um melódico riso infantil. Aquela tarde trancou Izolita em si mesma. Acompanhou a sombra do lustre pelo tempo que a luz vinda de fora frequentou seu quarto, atormentada por aquela súbita aparição. Depois de uma ducha, a primeira sem o pé direito coberto, em muito tempo, vestiu seu robe e largou a bota deformada no banheiro. Seguiu pelos corredores em passos um pouco mais confortáveis, mas ainda arrastados. Invadiu um cômodo pouco prestigiado, denunciado pela poeira que morava por todo o lugar. Era como qualquer ambiente da casa. Hospedava pelo menos uma câmera. Uma solitária lente arrumada no canto daquele quarto quase espremida por uma estante.
Os motivos para não visitar aquele aposento estavam nas paredes, nos móveis e na mesa de centro. Era um lugar de muitos olhares de volta. E Izolita não queria ver aqueles rostos que da última vez que a encararam, não ofereciam aquelas expressões mais afáveis. Se sentou numa poltrona imunda e ficou ali, tentando não olhar as faces de seus familiares. Tipos que não se esforçaram, em seu entendimento, para evitar aquela vida retida em uma de suas propriedades. Aquele quarto era o passado presente por todos os dias ainda por vir. Não o visitava porque nem mesmo as lembranças boas faziam o tempo passar mais rápido. Ali estava um canto da casa que ela entendia que deveria permanecer sujo, mesmo depois de sua visita.
Faltava pouco mais de uma hora e meia para o fim do turno de Gregória. Um turno que havia sido aguardado há muito tempo. Uma oportunidade que se revelara repentinamente, mas destinada a um desfecho muito bem planejado, finalmente chegou naquele dia. Deixou correr a imagem que repetia toda vez que estava só na sala de monitoramento e assistiu até flagrar uma criança ser violentamente atingida por um carro. Em meio aos que se colocaram no entorno da vítima, uma moça elegante sacou um telefone pouco reativa em contraste com os outros diante da tragédia. Programou aquela filmagem para repetição na íntegra, exibindo o trecho que costumava a omitir e que sucedia o que ela tanto pedia que não acontecesse, toda vez que apertava play. Selecionou telas naquela parede que aos poucos se apagaram, omitindo um caminho que levava até o quarto empoeirado que, finalmente, recebia de volta a visita da moradora confinada. O único cômodo da casa agraciado com um ponto cego. Virou a câmera do quarto para o lado, captando somente a madeira da estante que quase pressionava aquela lente e que ocultava tudo o que se passava por ali. Esperou um grupo de funcionários terminar de servir a refeição da noite e deixou sua estação de trabalho antes de ser rendida. Por todo o percurso seguiu sem ser flagrada em direção a cozinha.
Gregória buscou um cutelo naquele cômodo já esvaziado com a janta posta e, seguiu pelo caminho de lentes temporariamente cegas, no interior do palacete. Invisível, deu cada passo rumo ao momento que por tanto tempo planejou, junto de seus pensamentos e lembranças mais sofridas. Evocava em ordem cronológica tudo o que viveu até aquele agora e certa de que o que estava por vir, não acomodaria remorso algum.
Era inédito aos ouvidos de Izolita, o som de passos naquele período do dia. Simplesmente sabia a hora das refeições sem o auxílio de ponteiros e números. Todo o tempo passado ali e que ela havia acomodado dentro de si, aperfeiçoaram hábitos e sentidos. Há três anos acordava quase sempre no mesmo momento do dia e costumava a se recolher pouco depois de jantar. Se surpreendeu com o ruído que denunciava a aproximação de alguém naquela construção que ecoava tudo.
Gregória se colocou na porta daquele quarto de memórias que Izolita tentava evitar com suas próprias memórias fervendo em sua cabeça. Encarou sua ex-patroa que nem ao menos se levantou ao percebê-la.
Entrou pensando na filha que confiou àquela mulher por algumas horas, há pouco mais de seis anos. Aquela mulher que largou uma criança sozinha numa calçada e a deixou atravessar, sem acompanhá-la, em uma avenida movimentada. Se colocou bem perto dos retratos da família da dona do palacete sabendo que qualquer lugar era lugar para se estar ali, sem se preocupar em ser flagrada. No fundo, Gregória não temia o que lhe aconteceria por conta do que foi fazer. Cedeu o tempo que julgou necessário para que Izolita reagisse a sua presença e não se surpreendeu por ela não ter lhe reconhecido. A encarou sem a pena que aquela criatura que tinha como uma das mais fúteis e desprezíveis, entendia ser merecedora. A fitou enrolada em seu robe com um pé fedido e inchado, com uma tornozeleira que Gregória achava que só mesmo uma idiota se convenceria que uma bota seria capaz de ocultar. Aquela tornozeleira que ela queria esconder de seus próprios olhos, mas que era absurdamente flagrante aos olhares capazes de alcançar sua vida naquele simulacro de prisão.
Mas Gregória não deixou a sala de monitoramento para dizer qualquer coisa a Izolita. O cutelo em sua mão era a melhor mensagem disponível. Viu sua ex-patroa finalmente se colocar de pé e, petulante, avisar que não jantaria naquela noite. Diante daquela recepção, uma das responsáveis em acompanhar a movimentação pelo palacete, diariamente, em turnos de 12 horas, se entusiasmou a avisar a prisioneira de luxo que estava tudo bem se ela ligasse a TV, o rádio ou até mesmo o tablet. Que a preocupação com o que poderia ouvir ou ler a seu respeito era inútil. Ninguém mais fala sobre Izolita. Como muita gente rica, poderosa e cruel, ela seguiu o fluxo comum para esses tipos. Tombou para cima. Mas o tempo se encarregou em não lhe fazer mais pauta. Apesar da indignação de muitos pelo entendimento da justiça, nesse caso. Ninguém mais quer saber como ela vive ali dentro. Se tentará escapar ou para onde será enviada, se descumprir o acordo que lhe foi dado de presente, como punição pelo o que fez. Tampouco pensam os outros ou sabem, o que ela esconde, por vergonha, na altura do tornozelo. Sua alienação ao mundo lá fora é proporcional a dos que estão além dos muros altos que a cercam. A repulsa dos funcionários que se afastam a qualquer sinal de aproximação, já deveria ter sido o suficiente para ela compreender esse esquecimento. Mas talvez, a visita da ex-empregada, junto daquele acessório da cozinha, lhe fizesse voltar ao noticiário.
E de repente, ficou claro, para aquela mulher que entendia, que o que vivia, era o verdadeiro drama dentro de uma tragédia muito maior, que o mundo não tinha mais interesse nenhum em sua vida. Seu dinheiro lhe proveu a manutenção do conforto que sempre teve, uma cela imensa e nada mais.
O cutelo não era o que mais pingava em uma das mãos de Gregória. Manchou um caminho de volta até a cozinha onde ela o deixou no exato lugar em que o buscou. Seguiu sem se preocupar com nada que pudesse lhe acontecer por conta desse dia. E ainda deixando um rastro que escorria da outra mão, regressou a sua estação de trabalho, serena. Levou menos tempo que considerou precisar ao longo dos meses se preparando, desde que conseguiu forjar uma identidade que lhe garantisse um trabalho, na luxuosa carceragem que acomodava a ex-patroa. Foram semanas e meses imaginando o que fazer e que agora, estava feito. Ligou todas as câmeras que havia vendado, revelando o caminho de sua estação de trabalho até o quarto empoeirado do acerto de contas. Reposicionou a lente desviada entre estantes que não revelava mais Izolita naquele canto sujo.
Deixou correr o vídeo de seu pen drive em um dos monitores e deu uma última olhada na parede curva de telas. Achou uma prisioneira que se arrastava pelos corredores deixando um caminho vermelho e gritando para si mesma. Por quanto tempo ela aguentou berrar, Gregória não ficou para saber. Guardou em uma bolsa de papel as únicas coisas que iria levar dali e encerrou seu plantão.
No carrinho de golfe, viu um dos jardineiros repreender sua filha por ter se afastado dele enquanto ele terminava um trabalho. A mesma menina que Gregória já havia flagrado antes, correndo pelo terreno cheio de caminhos a se explorar, num dos monitores. Acenou a quem chegou para lhe render e não se importou com a surpresa de seu substituto que não entendeu porque sua antecessora deixou a estação antes dele chegar. Trocaram turnos ali, no caminho de quem chega e vai. O homem ocupou seu lugar no transporte e viu a funcionária rendida, cruzar tranquilamente o portão de acesso. O primeiro passo para fora disparou um alarme ensurdecedor e inédito para todos.
Gregória não caminhou tanto assim até tirar da bolsa de papel um pé, junto de uma tornozeleira suja de sangue. Os largou no chão além dos muros altos que vistos por fora, eram repletos de adjetivos em referência à criminosa, assassina, que até pouco tempo, “cumpria pena” naquele vasto terreno, lá dentro.