
por Alex Cabral Silva
Não era nada pessoal contra a paisagem daquela época. Elza conseguia enxergar beleza naqueles cenários tão romantizados, especialmente, por quem vivia tão longe daquela estação do ano, como se experimentava, por ali. Não era algodão, como parecia ser nos shoppings da cidade onde cresceu, muito mais ao sul, que tirava com uma pá, todos os dias, da frente da garagem. Aquela perspectiva de tudo coberto de branco ia além e começava cedo. Muito antes do dia de ganhar presente e jantar com a família em dezembro.
Era rotineiro deslizar por calçadas e ruas, não por diversão. Se equilibrava na vida que deslocou para longe do que lhe era caro, por conta de uma oportunidade irrecusável que todos a sua volta lhe disseram que não poderia perder. E assim, num inferno gelado, Elza seguia sua vida por lugares como os dos filmes que cresceu assistindo, mas que nunca lhe iludiram.
O final do expediente, às vezes, parecia ter sido outro dia. O tempo que levava para admitir a si mesma que tinha quase certeza que seu carro estava no setor por onde buscava era o suficiente para chegar em casa e outras coisas. Mas aquele campo interminável plantado com veículos completamente encobertos de neve era o final do dia de todos os dias há alguns meses. Pelos corredores, tentava se guiar pelos pneus. Sabia que passar a mão na altura dos vidros nem sempre limpava o que buscava revelar, de imediato. Não arriscaria disparar um alarme efeito dominó naquele espaço. Era como se tivesse estacionado numa armadilha. Pedir ao Papai Noel uma solução para essa questão, parecia pertinente. Entendia que morava mais perto dele, agora. Sua sobrinha praticamente a convenceu disso.
Desde que se acostumou com o ritual de caça ao seu próprio automóvel no estacionamento, identificou que nunca fez isso acompanhada. Nunca vislumbrou alguém à distância, tentando achar sua vaga naquele espaço sempre todo ocupado. Naquela cidade de trens, bondes, metrôs, mas de inúmeros carros que, como o dela, levavam uma pessoa só, todos os dias. A alguns possíveis escorregões de onde estava, percebeu um modelo popular suficientemente parecido com o seu e com o vidro do motorista caprichosamente limpo. O azul de seu carro não se mostrava por conta da crosta que o cobria e tampouco era possível enxergar a placa. Se abaixou tentando achar no interior qualquer item seu que lhe fizesse inserir a chave, entrar logo e se livrar daquele frio momentaneamente. Mas mal teve tempo para identificar qualquer pertence, diante da imagem de um boneco de neve sentado no banco do carona, que gentilmente a convidou para entrar.
Elza se colocou atrás do volante, precariamente iluminada pela luz entregue através da janela sem neve. As camadas espessas que cobriam todo o resto, em volta, não invadiam aquele espaço. Não notara um floquinho sequer. Nem uma gota no painel ou no encosto da cabeça. Nada além daquele intruso bem-feito acomodado ao seu lado.
Ele não tinha acessórios. Nada que emulasse olhos ou um nariz. Era um boneco como os que crianças e famílias faziam na frente de sua casa. Como os que via aos montes pela rua de seu bairro e que Elza sonhava poder fazer um com sua sobrinha, um dia. Tinha um rosto de traços simples mas impecavelmente expressivos. Não era preciso se concentrar tanto para enxergar aquelas feições.
O gelo foi quebrado por ele. A pediu que antes de considerar ligar o carro, levasse em conta que não seria gentil, acionar o aquecedor. A chave que ela tinha em mãos não abriu a porta que já estava destrancada. Ajeitada ali dentro, ela não sabia nem por onde começar a tentar entender o que se passava. Foi surpreendida novamente, com uma pergunta muito difícil de responder. Falar sobre como estava era fácil para familiares e alguns amigos nas chamadas de vídeo. Como não tinha nenhum representante desses grupos, presencialmente em sua vida, há pouco mais de um ano e meio, aprendeu a contar uma versão melhor dos seus dias naquelas terras distantes. Dizia aos que a encorajaram tanto a abraçar aquela tal vida dos sonhos o que sabia que eles queriam ouvir. Indagações sobre relacionamentos amorosos eram mais complicadas de ficcionalizar, mas arrumava uma forma de escapar desse tema, nas sabatinas eventuais, costumeiramente aos domingos. Até a distância, era alvo do constrangimento social por ser solteira, pelos recrutadores matrimoniais agregados entre os seus conhecidos.
Forjava nas redes sociais o material necessário para propaganda de realização e sucesso que a maioria consome nessas plataformas. Os comentários diversos lhe confirmavam o êxito daquele relato de sua vida, tão distante do que realmente era.
O boneco de neve se mostrou bem informado sobre o job description da moça e de sua vida pessoal. Fez um relato franco e sincero até demais. A incomodou quando ele afirmou que desconhecia que ela era uma criadora de conteúdo digital, também. Elza não julgava mal quem vivia dessas parcerias pagas e da rotina de mostrar suas vidas que, para muita gente, eram tão interessantes. Mas definitivamente não estava nesse escopo dos que vivem sempre sorrindo ao sol e que a neve não lhes gerava inconveniências. Não refletia sobre a repercussão dos relatos instagramáveis do seu dia a dia para os poucos que a acompanhavam online, além de seus familiares e amigos mais próximos. E se aquilo contribuiria para o fomento da ilusão de uma vida em lugares que a mídia sempre fez parecer um parque de diversões. No caso dela, definitivamente não vivia num resort de inverno. A simples pergunta sobre como estava, engatilhou em Elza externar tudo o que sentia quanto a estar onde escolheram por ela.
Sofria para parecer entusiasmada com a rotina na empresa apontada pelos outros como o melhor trabalho do mundo. Sobre a casa de cinema em que vivia, segundo os seus amigos. Aquela construção linda que nunca lhe pareceu um lar. E de como eram deprimentes os fins de dia olhando pela janela, vendo a neve cair, fazendo fotos. Nunca encaminhou as selfies tristes, registradas sempre depois de flagrar aquelas paisagens deslumbrantes.
Era muita gente realizada com o falado sucesso de Elza.
Seu desabafo foi recebido por um instante de silêncio. O acompanhante questionou a moça que esfregava as mãos sobre o que faltava para postar a verdade. Onde estava a realização em não poder fazer um castelo de areia na praia, com sua amada sobrinha? Que emprego dos sonhos é esse que Elza nem consegue explicar direito o que faz aos pais? Que casa de filme é essa que ela comia sozinha em sua cozinha imensa, incapaz de acomodar toda a saudade que tem dos almoços de domingo? Até quando manter relações a distância usando imagens incapazes de flagrar como realmente estava?
No rosto daquele inesperado visitante, Elza viu uma sinceridade e um acolhimento inédito. Toda e qualquer tentativa de se conectar com alguém, encontrou obstáculos que, não necessariamente, lhe fizeram ter um juízo ruim de quem estava à sua volta. Só não achava no dia a dia, as sementes para novas amizades.
Certa vez, contou a um vizinho de mesa, no escritório, que estava ansiosa e que não falava com o seu pai há uma semana, durante um café no meio da tarde. Lhe esclareceu que ele não estava enfermo, mas que não gostava de ficar tanto tempo sem notícias. Seu colega de trabalho que morava na mesma rua da mãe, perfeitamente bem de saúde e com que nunca se desentendeu seriamente, não compreendeu Elza. Aquele dia a fez rememorar que não existe a palavra saudade no vernáculo local.
Mesmo bem estabelecida do que é essencial em qualquer mudança, nunca encontrou os prazeres mais simples naquele lugar. Tampouco se sentia encorajada a se integrar mais. Não era destratada. Mas reconhecia uma maratona pela frente quando pensava em se juntar a um círculo social no trabalho ou pela vizinhança onde morava. Todos pareciam gentis e assim seguiam, cada um em seu carro, sua casa, em seu escritório.
Nunca teria a vida de onde cresceu para onde foi. Sentia falta de quando saía de casa num dia de folga e mesmo sem saber o que fazer, se deparava com algo que lhe valia o passeio. De estar com a filha de seu irmão e lhe revelar novidades incríveis do tipo; a vovó é a mamãe do papai e da titia também. Da praia, que nem gostava tanto assim. Sentia que perdeu a chance de flagrar mudanças onde realmente gostaria de estar vivendo e não encontrava em seu tempo longe nenhum motivo que justificasse não estar lá também.
O que faltava para ter coragem de desistir era interpretativo, no entendimento do boneco de neve. O que era preciso de imediato era ter a bravura de voltar, se essa fosse, de fato, a vontade de Elza. Tirar toda aquela neve do caminho e não se preocupar se abrir mão do salário dos sonhos para todo mundo, fosse frustrar alguém. Não mais simular a vida que tanta gente apontou que ela iria ter tão longe desses mesmos que ela sente falta. Esses que não foram tão ao norte como ela se arriscou e que acreditam muito no que veem na TV e nas fotos dos outros.
Elza assentiu também ao ouvir que, se ninguém lhe perguntou se realmente queria embarcar, quem estaria em condições de lhe indagar sobre retornar? Não se tratava de tentar mais uma vez. Nem sempre uma segunda chance muda muita coisa. Voltaria para viver mais dezembros de calor intenso vendo o parente da vez com vestes longas vermelhas e barba branca falsa, distribuir presentes e encantar sua amada sobrinha. Seria quente, mas não estaria só. Estaria rodeada de felicidade.
A conversa franca e gelada daquele fim de dia aqueceu seu coração. Elza exibiu um outrora desaparecido sorriso, harmonizando com o amável rosto do carona. Lhe perguntou se ele queria que ela o deixasse em algum lugar no caminho. O boneco de neve agradeceu. Disse que estava bem ali e satisfeito que ela agora estava disposta para seguir rumo a onde ela também se sentiria bem. Mas recomendava que ela encontrasse o seu carro, antes.