
por Alex Cabral Silva
Não importa o quanto pedia que não o chamasse de Doutor. Juarez fracassara somente nisso, até então, em sua carreira bem sucedida como um dos melhores administradores da cidade. Cuidou, ao longo de mais de trinta e seis anos, de diversos negócios e já havia garantido a riqueza de muita gente. Também profetizou a falência de outros tantos. Nunca teve ambições de atingir muito além do que já havia conquistado. Se especializou, no dia a dia, nos mais variados negócios. E sabia o valor do dinheiro, como diziam, porque nunca se distanciou de sua versão dos tempos em que não tinha. Entendia que os bens de seus clientes eram como os seus, mas nunca os tratou com nenhum gesto de pertencimento. Tratava das conquistas dos que lhe pagavam para zelar por elas, como gostaria que tratassem as suas, se fosse incapaz de cuidar dos próprios bens. Investia de forma sábia por si e pelos outros. Quando aplicava em seu nome, mostrava talento e auto-controle. Mas nem sempre conseguia conter seus clientes ao sugerir empregar suas táticas.
Diversas vezes brigou com alguns de seus contratantes. Era uma tarefa hercúlea orientar muitos deles, com tantos zeros já conquistados na conta. Se lançavam de forma leviana no mercado. Esse oceano de tantas variáveis que, na maior parte do tempo, é revolto. E via conquistas suadas se perderem como um movimento afoito de uma mão errada, numa mesa com um baralho espalhado. Aprendeu a lidar com gente gananciosa e mantinha uma distância sanitária para não se indispor mais. Não temia ser contaminado. Entendia o jogo, mas era bem sucedido por não tratar cada negócio como uma nova partida.
Reginaldo o acompanhava de perto há pouco mais de dois anos. Ascendeu rápido na firma por se mostrar perspicaz e absurdamente bem informado. Lia notícias e parecia sempre fazer o trabalho de casa. Não perdia o tempo do chefe com papinhos comuns aos outros funcionários. Era afável e respeitado até por quem o invejava, sabia. Sugeria e aconselhava melhor do que alguns que estavam na vida de Juarez há mais tempo. Costumava a receber convites para frequentar a casa do patrão mas recusava, eventualmente, porque alegava ser preciso estudar uma nova proposta. Mantinha uma lonjura do dono da firma que lhe rendia mais admiração do mesmo. Sempre demonstrou gratidão pela confiança, mas parecia não querer alimentar o ciúme dos colegas por seu sucesso. Juarez via a postura de Reginaldo como a de um rapaz que sabia o tempo das coisas. Era ambicioso como todos naquela empresa, mas nunca o escutou falar sobre lucro na primeira pessoa.
Juarez apreciava muito que Reginaldo nunca se mostrou interessado no falatório de todos a respeito de sua esposa, décadas mais jovem. Seu repentino casamento, há pouco mais de um ano, era o que se falava nas horas vagas pelos corredores e elevadores. Sandra surgiu subitamente na vida daquele homem, viúvo há tanto tempo. Era uma moça cativante que, meses antes de conhecer o marido, teve que aprender a viver numa cadeira de rodas. Parecia em harmonia com os valores do esposo e, propositalmente, se mantinha afastada dos funcionários da firma que a julgavam ainda mais por isso. Não lhe agradava uma relação mais próxima por não saber como lidar, na maioria das vezes, com sussurros vindos dos cantos, de quem lhe via como uma interesseira. Tinha um bom trato com Reginaldo e era comum validar as sugestões do funcionário prodígio, sempre com muito cuidado. Não se permitia ser vista trocando palavras a sós com o rapaz e não atravessava as conversas sobre um tema que ela mesmo admitia não ter lugar de fala. Sandra era a palavra de confirmação constante diante de sugestões de Reginaldo ao marido. Juarez regularmente anuia suas opiniões e os tinha como os melhores conselheiros possíveis. Uma voz de casa e uma voz da firma.
A reputação de Reginaldo lhe rendeu, mais rápido do que qualquer outro funcionário, a confiança do Doutor Juarez. Se apresentou firme, e assim se manteve, quando foi designado a orientar um grupo de clientes em um investimento em conjunto arriscado e aparentemente muito bem estudado pelo rapaz. Reunido com o chefe e representantes diversos, fez uma apresentação impecável que destacava o retorno obsceno para os bolsos daquele grupo e da firma. Mas que, em seu entendimento, era preciso ter cautela e observância a uma combinação de fatores que orbitavam o nicho daquela operação. A fala calma e a ênfase na cautela satisfez a maioria. O olhar de contentamento do Doutor Juarez acalmou céticos e afoitos que, por unanimidade, ignoraram a última sugestão de Reginaldo. Aguardar a primeira quinzena do próximo mês, quando relatórios do banco central e decisões de comissões no Congresso Federal revelariam um horizonte mais claro sobre como agir. Essas informações complementariam melhor a estratégia do grupo.
O dito melhor funcionário daquela firma, pelo dono, recebeu cumprimentos e aplausos de toda a sala de reunião. Ouviu que tinha sinal verde para dar início a aplicação de uma verdadeira fortuna combinada. Apertou a mão de Sandra por último e ouviu os parabéns da esposa do chefe, que também lhe desejou sucesso.
Buscar justificativa pessoal para um ato humanitário desanimava e, às vezes, irritava Vinicius. Não era descendente de imigrantes. Dona Vanessa, sua avó, colocou os recursos de uma vida inteira dedicada a combater as desigualdades, na ONG que o rapaz assumiu em seu último ano de faculdade. Seu neto aceitava aquele trabalho como uma vocação. Estudou nos melhores colégios e fez valer cada centavo colocado em prol de sua formação, desde cedo. Encontrava na missão de assistir os mais vulneráveis, sua realização. Ouvia da avó que era o rapaz mais velho de 23 anos que ela já havia conhecido.
Vinicius tinha propostas para combater os erros constantes do passado que insistiam em não ficar para trás. Estava seguro do caminho que poderia diminuir as distâncias que sempre lhe revoltaram desde pequeno. Tinha as ferramentas e o apoio da melhor conselheira que poderia desejar.
Dona Vanessa era uma senhora que inspirava muita gente. Sempre soube recrutar para o debate e sabia estimular o melhor das pessoas. Se destacava por ser uma mulher capaz de realizar agendas. Ao longo de 79 anos, testemunhou mais retrocessos do que avanços, mas nunca diminuiu as conquistas de cada geração. Se identificava com várias delas. Viu boas ideias sendo sufocadas e falsos altruístas vencerem. Enxergava no neto uma continuidade pessoal de seus sonhos.
Vinicius adicionou suas ideias no aprimoramento da Organização criada pela avó. Sua família, desde antes dele nascer, acolheu e apontou uma direção rumo ao futuro para diversos imigrantes dos mais remotos lugares. Cresceu ouvindo idiomas que agora era fluente. Foi testemunha do que o emprego de recursos, na ajuda dos que fogem da opressão e de desastres diversos, pode fazer. Sabia como ajudar sem a contaminação de quem não carrega em si a genuína vontade de mudar a vida do outro. Fez daquele lugar de acolhimento e informação sobre como o mundo realmente era, um hub para ajudar muito mais além de onde costumavam a alcançar. Sob sua gerência, fez mais do que receber quem fugiu da guerra e da fome. Colocou em funcionamento planos de prevenção a desastres naturais. Apresentou propostas de auxílio aos agora chamados Refugiados do Clima. E viabilizou que diversas outras organizações atingissem seus objetivos. Era uma sombra. Era visto o quanto fosse preciso e entendia que os que na maior parte do tempo se deslocavam para ajudar mais diretamente os mais necessitados, eram o rosto e voz adequada para falar sobre como atuavam. Arrecadava muito dinheiro e sabia como organizar campanhas e mobilizar a sociedade. Sentia que era entendido, quase exclusivamente, por sua avó. Dona Vanessa poucas vezes viu alguém capaz de realmente compreender o espírito de liderança e solidariedade do neto. Ficou satisfeita ao reconhecer em Gilda, alguém perto dessa atitude.
A colega de faculdade que aos poucos se aproximou de Vinicius, se revelou uma adição importante ao grupo principal que fazia a rotina da ONG se manter focada nas principais agendas. Se reconheceram ali e estreitaram uma amizade que escapou dos tempos no campus onde mais trocaram acenos do que conversas. Vinícius partilhou com Gilda planos e intenções para manter aquela Organização sempre atuante. Ali estava um lugar relevante e demasiadamente necessário. O neto de Dona Vanessa ficou satisfeito ao ouvir de Gilda esse entendimento.
Direta e precisa na execução de projetos novos, a moça rapidamente se tornou a responsável em administrar recursos que distribuía impecavelmente. Acumulou elogios e descontentamentos de alguns que se incomodavam com a rapidez a que foi levada a um posição de supervisão. Gilda nunca se mostrou atenta a nada que não fosse a execução dos planos de assistências que criavam e que sustentavam junto a outros órgãos que entendiam a importância do trabalho deles. Sua dedicação rendeu uma proximidade e um apreço por parte da avó e do neto que a tinham como alguém da família.
Desenvolveu suas ideias e não encontrava resistência nas principais vozes que poderiam garantir novos desafios.
Apresentou um plano de acolhimento de um vasto grupo de refugiados. Crianças em sua grande maioria. Gilda tinha tudo meticulosamente preparado. Seu relatório destacava as demandas mais imediatas e desviava de burocracias, assegurando informações necessárias sobre os exilados antes mesmo do desembarque. Justificou como garantir um navio que os trouxesse em segurança. Era uma ajuda que garantiria um futuro a pelo menos 644 crianças. Recebeu o apoio de costume, dos dois nomes mais fortes e responsáveis diretamente pela ONG. Dona Vanessa e Vinicius concordaram com o projeto apresentado por Gilda que temporariamente adiaria outras campanhas e que arrecadaria valores de parceiros para atender e garantir o sucesso daquela missão. As ressalvas de alguns colaboradores de longa data, não encontraram compreensão em Vinicius. Abruptamente Gilda surgiu naquela ONG e ressurgiu em sua rotina. A última palavra era dele e seu juízo e responsabilidade com recursos diversos, com frequência, validaram suas decisões entre os outros. A reputação de Gilda ali, garantiu a confirmação de seu papel como gestora do maior orçamento já identificado na Organização. Para Dona Vanessa, não havia lugar para dúvida em seu coração, que a moça estava salvando muitas vidas.
O quarto de Sara era no mesmo corredor onde dormiam os pais. Eventualmente pernoitava no sótão mas nunca quis levar suas coisas para o último andar da casa. Essa opção estava disponível já fazia dois meses e não era um presente oficial de aniversário. Os nove anos recém-completados da menina, foram bastante celebrados. A casa imensa recebeu vizinhos e alguns poucos amigos que não se cansavam de elogiar aquela residência que parecia saída de um catálogo.
Sara recebeu suas colegas de ballet e percorreram todo o jardim entre os adultos numa tarde divertida em que nada faltou. Ganhou uma festa com tudo o que pediu e algumas outras surpresas. Se mudar para o terceiro andar estava disponível desde o café da manhã daquele dia, mas não demonstrou muita certeza de que queria isso. Gostava de ensaiar por lá, mas não estava pronta para deixar seu quarto.
A casa onde literalmente nasceu, era a maior do condomínio fechado, mais caro daquele bairro. Era flagrante a distância e foi construída sob medida. Cada espaço meticulosamente planejado e erguido com a intenção de ser a morada eterna de seus donos. Sara, sabiam os seus pais, um dia deixaria aquele espaço. Anos que os dois queriam que ela levasse como entre os melhores de sua vida. Achavam que montaram uma infância perfeita para a filha. Tudo o que ela ao menos demonstrou interesse, ganhou de imediato. Fazia ballet desde bem pequenina e sonhava em se apresentar além da escola. Não viajava muito. Seguia uma rotina metódica. Não ia muito além de casa para a escola. Tinha pais amáveis e zelosos que, apesar de mimá-la, não agiam com nenhuma aparente intenção de ostentar. Eram discretos e bem relacionados no condomínio. Trabalhavam de casa.
Era impossível algo escapar da atenção de Vitória. Organizava as demandas da casa com uma dedicação e talento invejável. Estava atenta às necessidades da família e não parecia se apressar para ter que cuidar de nada que precisava ser feito, logo. Seu trabalho, que fazia de um laptop, estava sempre em dia. Não adiava ações. Executava do que tinha de mais simples a fazer até o que poderia lhe render uma noite mais curta de sono, sem atrasos. Surpreendia o marido com frequência sempre atenta ao que ele planejava e tinha uma sensação inexplicável de prazer em simplesmente cuidar dele. Casou-se com o seu namorado de adolescência e não tinha lugar na memória para o tempo em que ele não estava em sua vida. Era muito bem sucedida profissionalmente. Cedo, assegurou sua independência financeira. Há quase uma década, tinha levantado uma casa com o esposo que tinha aquele lugar como a fortaleza de sua família. Ali estavam seguros. Estavam protegidos. Ali não precisavam de mais ninguém. Viviam o sonho de sempre para sempre. Realizaram-se de diversas formas naquele lar. Vitória compreendia que amor era o que tinha com seu eterno namorado. Gostava muito da filha, também.
O parto da filha de Nicolas foi feito na porta de casa. Ainda tinha muito a se arrumar naquela obra que acabara de ser entregue. O ninho estava pronto. Nicolas não tinha a menor ideia do que devia fazer, mas diante da pressa da filha, assegurou sua chegada a esse mundo ali mesmo. A casa vazia ecoou bem mais alto o choro da terceira moradora. Eternizou aquele momento com um beijo na esposa e com um novo amor em um dos braços. Até hoje anotava a altura da garota no alizar da porta de entrada. Se equilibrava bem entre o trabalho e suas duas companheiras. As tratava como as verdadeiras donas daquela imensa construção pensada, por ele, em acolher mais do que os dois, desde o início. Nicolas estudou atentamente tudo o que deveria levar em conta para levantar aquele lar que seria o seu porto seguro eterno. Tinha um patrimônio incalculável à sua disposição. Logo, não poupou despesas. Pensou num futuro que não contaria com ele. Num lugar pronto para os próximos moradores, além deles três. Foram breves os dias até ouvir da esposa que não poderia acompanhá-lo no mesmo ritmo de sempre, por alguns meses. Viveram numa igualmente confortável cobertura antes de dar início às obras da casa dos sonhos da família. Nicolas era um realizador dos desejos mais variados da esposa. Se divertia com a competição que criaram desde que se conheceram. E ainda se encantava com aquela mulher que era a única pessoa no mundo capaz de surpreendê-lo. Se especializou, desde cedo, em estudar pessoas, também. Avaliava comportamentos e traçava perfis com facilidade. Do escritório, em casa, fazia o suficiente para não precisar se ausentar daquele mundo que montou para os seus dois amores. Não se entusiasmou muito com a ideia da esposa de mudar o quarto da menina para outro andar.
O espaçoso sótão foi descoberto por Sara quando ainda engatinhava. Aquele lugar nunca correu o risco de se tornar um depósito de guardados diversos, entulhados. Seus primeiros passos se firmaram cada vez mais, naquela sala ampla, encorajada pelos pais. Mais crescida, começou a reparar que também era um ambiente perfeito para praticar sua paixão.
Nicolas, sempre observador, instalou por conta própria, uma barra e espelhos que agigantavam o cômodo, refletindo sua dedicada filha, praticando um plié muito elogiado por sua professora.
A oferta para que o último andar da casa se tornasse o seu quarto era prematura no entendimento do pai da menina. Achava que era importante ela entender os espaços da casa e quando era a hora do quê. Não precisava tomar nota de nada que sabia ser importante para Sara. Avaliava o que lhe ocorria providenciar para a bailarina e na hora certa, a surpreendia. Fazia o mesmo por Vitória.
Aplicaram na construção da casa seus predicados e contribuíram muito para o resultado final daquele empreendimento. Num condomínio de luxo, adquiriram o maior terreno disponível e levantaram uma casa invejada também pela rapidez da construção. Era comum, na ronda dos seguranças, alguns pararem para contemplar aquela maravilha. Se davam com alguns poucos vizinhos e recebiam eventualmente os mais próximos. Na maioria, os que tinham filhos. Sara aproximava os que estavam em volta, do convívio dos três. Recebiam muito bem naquele lar aconchegante. Tinham um bom gosto tremendo. Eram discretos e apreciados por isso. Os que não sabiam viver sem serem notados o tempo todo, fracassavam em extrair mais sobre a intimidade daquela família mais perfeita que a do comercial da margarina.
Vitória preparou um projeto para o novo quarto da filha, no andar de cima. Fez tudo sozinha e apresentou sua ideia pronta para Nicolas e Sara. Deixou a filha à vontade para a sugestão que não fazia muito a cabeça do pai e observou, satisfeita, a empolgação da menina.
Na primeira noite sozinha no sótão, Sara custou a cair no sono. Ainda estava impressionada com o que a mãe tinha feito. Quando não botava reparo em algo que não percebera, de imediato, naquele projeto tão detalhado, que marcava aquele espaço com tudo que ela gostava, tinha em mente que não estava mais no mesmo corredor do quarto dos pais. Não estava mais a duas portas de poder se refugiar na cama imensa dos dois, diante de um barulho ou um pesadelo. Agora tinha uma escada e alguns passos a mais. Descer degraus, sonolenta, no meio da noite, era um dos poréns de Nicolas com aquela mudança. Não queria tirar sua criança de um quarto com banheiro e exilar a pequena na parte mais alta da casa, por mais que fosse caro a ela, aquele canto da residência. Vitória parecia querer dar uma independência precoce para a filha, enquanto o pai atuava em deixar sua infância correr num tempo mais desacelerado, para o padrão da esposa. Trocaram breves considerações sobre aquele episódio. Não levantaram a voz em momento algum por suas discordâncias. A mãe de Sara deu fim à conversa com um beijo apaixonado. Fizeram sexo até bem tarde, indiferentes aos sons que produziram.
Foram poucos dias até que Sara se acomodasse no quarto dos pais, novamente, no meio da noite. Estranharam ela não ter se queixado de nada específico. Sabiam que trovões não a incomodaram. Há semanas viviam um clima seco. Nicolas a levava de volta para a sua cama, todas as noites, assim que seu sono retornava. A deixava em seu quarto original, a poucas portas do seu e que ainda estava arrumado como sempre esteve. Não a viu dormindo lá antes de descer para o café, certa vez.
Desde cedo, Vitória já estava online, respondendo mensagens e verificando planilhas. Deu bom dia ao esposo e abriu espaço na imensa bancada da cozinha que perfeitamente acomodava seu laptop e a apetitosa primeira refeição dos três, naquela manhã. Respondeu ao marido, sem tirar os olhos da tela, que levou Sara de volta para o quarto no sótão porque entendia ser importante que a filha enfrentasse qualquer insegurança por conta dessa novidade em seu mundinho. Era um tanto contraditório Vitória querer que a filha aprendesse uma lição nesse contexto diante do quanto ela e Nicolas, a mimavam. Não se tratava do quanto Sara sempre teve tudo o que quis e o que os pais, muitas das vezes, quiseram por ela. Nicolas sentia o desgaste iminente e a motivação até mesmo para uma briga por conta daquele tema. Sua esposa parecia esquecer que a filha tinha somente nove anos. Que era uma criança e que, de repente, amanhã, poderia se desinteressar pelo ballet, por exemplo. Uma menina com medo, deve poder rumar em direção ao quarto dos pais no meio da noite, se isso for possível. Sara cresceu com essa escolha. Vitória escolheu dar mais um presente à filha ao invés de uma conversa. Era mais um momento em que a fortuna dos dois era usada para resolver o que palavras bastavam. Nicolas optou por não entrar no mérito da ação da esposa na resolução daquele assunto. Mimava muito mais Sara, desde sempre. Mas estava disposto a se aprofundar na compreensão de Vitória para aquela situação. Por diversas vezes, também presenteou a filha com algo que desviou sua atenção para alguma vontade descabida ou que evitou uma conversa ou explicação do que ela podia ou não. Apesar dessa vida de tudo em mãos e sem privações, Sara não era nem um pouco o tipo de filha que seus pais ameaçavam formar. Ganhou tantos presentes que postergaram conversas e nem por isso, se transformou em alguém incapaz de ouvir não, até agora. Adiaram aquela discussão quando a menina finalmente chegou a cozinha. Comeram em silêncio até Vitória deixar o trabalho para elucidar o caso que abalava o paraíso há alguns dias. Indagou a filha o que se passava com o mesmo tom com quem falava ao fechar um orçamento de um novo projeto. Sara deixou seu cereal de lado e se desculpou com os pais. O rosto da menina amoleceu o coração de Nicolas, que nunca foi rígido com ela. Perguntaram à filha há quanto tempo via pessoas pelo jardim.
A janela imensa do sótão tinha sido coberta por uma cortina sob medida, assim que Sara se mudou para lá. Vitória pensou em tudo. Decorou para a filha o espaço perfeito que provia conforto e privacidade. Dali, era possível ver até a portaria do condomínio. Tinha uma vista e tanto de toda a alameda. Enxergava bem acima das casas vizinhas, assim como o jardim de entrada.
O relato de Sara foi confuso. Via estranhos no jardim e certa vez flagrou um na janela do novo quarto. Essa versão não foi levada a sério pelos pais, que acreditavam se tratar do relato de um pesadelo. Vitória ouviu o desabafo de quem queria voltar para o segundo andar e para o velho quarto. Nicolas escutou a fala de uma criança com medo de estar longe dos pais.
Se espremeram na cama da menina naquela noite até o sono dela chegar validando que não havia ninguém no jardim. No meio da tarde, chegaram a consultar se houvera alguma mudança entre os seguranças da ronda noturna mas sabiam que isso não acontecia sem um aviso a todos os condôminos.
Fitaram a alameda em frente de casa sem flagrar ninguém além dos vigilantes da noite. Também não identificaram nenhum intruso no jardim. Fecharam a porta com cuidado. Desceram na ponta dos pés a escada e se deitaram na esperança de que a filha tivesse um sono bom. Antes de adormecer, Sara ouviu da mãe que ali era seguro e que ninguém além dela e do papai, entraria lá. De Nicolas, que poderia ir para o quarto dos dois, se qualquer coisa acontecesse.
O sono breve daquela noite, não deu chance para sonhar. Sara se virou na cama ainda intimidada com as visões recentes. Não se levantou. Petrificou-se ao avistar a silhueta de alguém atrás da cortina. A janela aberta que convidava uma brisa leve, repentina e bem vinda, depois de dias tão secos, revelava pouco da aparência de quem contemplava a vista do último andar da casa. O visitante se virou para o interior do quarto ao perceber que não era mais o único acordado ali. O rosto coberto por aquele pano importado feito sob medida para a decoração do novo quarto de Sara, a privou também, da identidade de quem invadiu aquele espaço. Fechou os olhos com força e escutou o som de passos que acompanhavam a cadência de sua respiração angustiada. Voltou a espiar o quarto no momento em que uma mão fechava a porta por fora. Se levantou e seguiu rumo a janela que, entreaberta, ainda balançava a cortina. Viu alguém saindo da casa em passos calmos atravessar o jardim e descer a alameda. A figura intrusiva no meio da noite, foi observada por Sara até interromper subitamente seu andar tranquilo, se voltar para trás e acenar em direção a menina. A reação de Sara acabou com o silêncio e acendeu as luzes do segundo andar.
Nicolas e Vitória levaram um tempo para acalmar a filha. Sara respondeu diversas vezes que o rosto de quem invadiu seu quarto tinha a cortina na frente. Fez outro novo relato confuso, já na presença da segurança do condomínio. Quando indagada sobre como era o invasor quando o viu na rua, seguiu falando da cortina. O choque da menina impactou os dois. Vitória ficou com os olhos marejados ao escutar a filha lembrar que ela prometeu que ninguém além dela e do papai, entraria lá. Abraçou a filha e conteve lágrimas que ameaçavam transbordar. Nicolas instruiu os seguranças sobre medidas a se tomar e confirmou mais de uma vez que o sistema de alarme não detectou nenhuma violação. Não identificaram nada levado e Sara garantiu que não foi tocada por ninguém. Explicou também, para dois membros da equipe de vigilância, que não tinham câmeras na entrada da residência e em nenhum outro ponto da casa, surpreendendo pelo menos um deles. Foi assegurado à família, que fariam uma varredura nas imagens do circuito de monitoramento do condomínio. Aparentemente mais atenta que o marido, Vitória reparou na surpresa de um dos seguranças, a falta de câmeras de monitoramento na residência.
Dormiram os três juntos na imensa cama do casal, no segundo andar. Acordaram tentando viver um dia comum após aquela noite inquietante. Vitória levou a filha à escola. Nicolas achava que ela merecia um dia de folga, para processar tudo o que viu ou o que achava que viu. Trabalhou em seu escritório apresentando propostas de investimentos para um cliente muito importante. Só parou para buscar Sara no ballet. Jantaram a noite ensaiando conversas que antecipassem de forma leve, a hora de dormir. Deixaram a filha à vontade para escolher onde gostaria de passar a noite. Sara encarou a mãe o tempo todo e disse que dormiria em seu quarto novo. Nicolas a lembrou que poderia dormir com eles se ela quisesse. Mas a menina, que não tirava os olhos da mãe, afirmou que conseguia dormir sozinha no sótão. Se ofereceram para ficar com ela até adormecer e que a porta não seria fechada. Os dois deixaram o acesso ao seu quarto igualmente entreaberto e se deitaram dizendo a si mesmos que ela estaria bem.
Sara dormiu mais do que na noite passada. Se levantou para ir ao banheiro e estranhou ver a porta fechada. Rodou o quarto olhando em volta tudo o que a luz fraca do abajur alcançava. Não flagrou ninguém nem nada intrusivo. Andou até a janela. Achou no meio da alameda, distante da casa, o alguém da noite passada. Recebeu um aceno. Correu sem gritar para alertar os pais, mas no meio da escada, seus pés erraram os passos. Chegou mais rápido ao andar de baixo e ainda estava desacordada quando foi encontrada por Nicolas e Vitória.
Os dois episódios seguidos, por conta da mudança da filha para o último andar da casa, desestabilizaram o casal de forma inédita. Isso não era nada, diante do trauma em produção na vida da menina Sara.
Acomodada na ampla sala de estar no primeiro andar, assim ficou pelo resto do dia, em silêncio. Fingiu não ouvir o que nunca fora escutado naquela casa. A discussão dos pais não trazia nenhuma preocupação com o controle de decibeis. Nicolas responsabilizava a esposa pelo acidente da filha. Vitória se ressentiu de ser acusada de indiferença à cena da menina desmaiada ao pé da escada coberta pela própria urina.
Jantaram em silêncio naquela noite. Nicolas dormiu com a filha no antigo quarto no segundo andar. Vitória foi convidada a se juntar a eles, mas garantiu a menina, que estaria logo ali, a duas portas de distância.
Se revezaram na guarda do sono de Sara. Nicolas vagou pelo jardim por alguns minutos, notando que a ronda havia sido reforçada na madrugada. Velou o sono de Vitória com a filha até amanhecer.
As três madrugadas seguintes não trouxeram nenhum relato de aparição no jardim ou ao longo da alameda. Dentro de casa, era certo que ninguém tinha entrado. Dormiram todos juntos onde Sara escolhia, ignorando temporariamente o sótão. O que entendiam ser pesadelos da filha, não se repetiram. Vitória externava que era preciso encorajá-la a dormir sozinha e não se estimular o que ela descrevia como uma dependência dos pais, nesses momentos. Nicolas a acusou de prematuramente querer resolver essa questão, também. Não discutiram de forma áspera. Seguiram trabalhando e só falavam daquele tema, na ausência da filha. Buscaram se entender a respeito, enquanto acompanhavam a arrumação dos novos móveis que chegaram para o jardim. Uma bela mesa de centro com três cadeiras aparentemente bem confortáveis.
Sara parecia tranquila e seus professores não relataram nenhum comportamento incomum desde os incidentes em casa. Chegou do ballet empolgada e perguntou se poderia praticar mais um pouco. Ensaiou no sótão evitado há dias. Ganhou plateia dos pais por alguns minutos e se exibiu, especialmente para a mãe, que passava os olhos em seu talento e por todo o quarto tão bem preparado para a filha. A menina desceu radiante para o jantar. Mais tarde, Nicolas buscou o travesseiro de Sara no quarto dela e, bocejante, fez o caminho para o seu. Foi interrompido pela criança que o pediu de volta. A bailarina entusiasmada agradeceu e disse que gostaria de dormir sozinha, naquela noite. Vitória beijou a filha e, de forma amável, lhe desejou um bom sono. Nicolas a lembrou que estavam logo ali.
Sara deixou seu antigo quarto no segundo andar no meio da madrugada. Não conseguiu dormir desde que se recolheu na mesma hora dos pais. Subiu devagar sem emitir som algum com seus pés de bailarina. Adentrou o sótão e deitou na cama numa tentativa de convocar o sono dali. Não conseguia escapar de olhar a janela. Fechada, não fazia a cortina assustadora. Aquele cômodo tão espaçoso era muito especial para a menina que já percebia, tão jovem, que sua mãe se dedicara a deixá-lo sempre melhor para ela. Sara já havia alcançado uma idade em que suas memórias naquele lugar da casa, lhe povoavam a cabeça. Talvez até não se lembrasse dessas adulta e, definitivamente, as mais recentes, não gostaria de reviver. Mas ouviu tanto dos pais sobre seus primeiros passos ali, que talvez por isso, fosse tão fácil dançar lá, também. Se levantou entediada por conta do sono que a abandonou e, valente, foi até a janela. Flagrou um homem sentado junto de uma mulher no jardim. Os dois olharam em sua direção, tão logo ela apareceu. Somente o homem se levantou.
A menina não conversou muito durante o café da manhã. No carro para a escola, também falou pouco. Repetiu muitas vezes, no caminho, que estava bem e, antes de descer, disse ao pai que gostou dos novos móveis do jardim.
A valentia para dormir sozinha, se manteve na noite seguinte. Portas entreabertas sinalizavam para a menina que estavam, de certa forma, no mesmo quarto. Seu pai insistia em repetir isso. Vitória até fechava a do casal, quando se levantava no meio da noite. Nicolas a deixava aberta, de volta, quando ia ver como a filha estava. Não fazia muito isso, por conta de um sono pesado.
Com os pais adormecidos, Sara escapou do quarto do segundo andar, onde o sono não a visitava muito. Desceu para o primeiro pavimento da casa sempre sem se fazer notar, leve, a cada passo.
Pela janela perto da porta buscou no jardim os visitantes da noite passada. Estavam lá eles, sentados a mesa baixa, recém instalada naquela nova decoração do jardim. A encararam de volta, tão logo ela os flagrou ali. Não tinha altura para digitar o código de segurança inviolável, no entendimento do pai, perto da porta. Não sabia a numeração e deixou de pensar no que fazer quando notou que o homem sentado lá fora a observava pela grande janela, agora. Ele tinha um rosto gentil, perceptível para a menina, mesmo através do vidro. Fez com a mão para ela uma sequência de números que ela registrou de imediato.
Sara buscou uma cadeira e os digitou no painel perto da porta. Um som de click, certificava que nenhum barulho denunciaria aquele passeio noturno, fora de casa. Saiu devagar e fitou o homem já sentado ao lado de uma mulher. Os dois usavam roupas simples e pareciam confiáveis. Sem se afastar muito da porta, Sara indagou quem eram.
Os dois a convidaram a se juntar a eles. A menina se sentou no meio da mesa de centro. Os observou atentamente enquanto falavam por que estavam ali e lhe asseguravam que não era preciso ter medo.
Sara não deu nenhum sinal de intimidação aos dois estranhos e a conversa durou menos de 15 minutos. Recomendaram que a menina voltasse para cama e lhe asseguraram que voltariam a se ver. A filha de Nicolas e Vitória os deixou com um adorável boa noite e seguiu para casa. Se voltou aos dois para um último aceno diante do painel externo que alcançava, ao lado da porta. O homem repetiu com os dedos a sequência de números para Sara que o interrompeu com a mão. A menina sabia a data do próprio aniversário.
A manhã foi, novamente, de silêncio para a bailarina. Tomou café distante e só falava quando provocada. Confirmou que teve uma boa noite de sono para a mãe e seguiu com ela para mais um dia em seu mundo de casa para a escola, ballet e casa, depois. Deu um beijo no pai e o comunicou que achou os móveis novos do jardim muito elegantes. Antes do carro de Vitória deixar a entrada da garagem, Sara pediu para descer. Afastou duas cadeiras voltadas para a casa, deixando um espaço considerável entre elas, no jardim. Retornou ao carro satisfeita com o ajuste na arrumação. A atenção da filha ao jardim, ainda, foi encarada por Nicolas como algo preocupante. Enviou à esposa uma mensagem alertando que buscaria notícias sobre a queixa que fizeram a administração do condomínio. Vitória lhe recomendou que esperasse que eles se reportassem de volta e não acrescentasse mais motivos para que esses incidentes se tornassem um pesadelo para eles dois.
Nicolas abriu a porta do quarto frustrado no meio da noite. Olhou a esposa adormecida atrás dele e foi até o quarto da filha contemplar seu sono. Vitória aparentemente havia fechado a porta do quarto da menina também.
Não a encontrou e demorou pouco para considerar subir ao sótão. Seus passos ouviu junto da voz da filha que foi diminuindo enquanto se aproximava. Sara estava atrás da cortina que balançava pouco, mas que a cobria totalmente. Via o contorno do corpo da filha numa imagem que assustaria uma criança, pensou. Se colocou ao lado dela e perguntou com quem ela falava. Sara assegurou ao pai que não falava com ninguém e explicou que estava ali porque queria experimentar dormir no seu quarto novo. Os dois viram uma moto da ronda noturna passar. O vigilante da hora parou e acenou, ao reparar os dois lá no alto. Sara foi se deitar sem nenhuma visita naquela noite.
Nicolas não tomou café da manhã e, nas primeiras horas do dia, foi pessoalmente interpelar o vigilante da madrugada, antes que seu turno acabasse. Ouviu explicações sobre não terem flagrado nenhuma invasão ao condomínio desde o incidente relatado e que reduziram o intervalo da patrulha de moto para assegurar que nenhuma violação, de fato, estava acontecendo. A cada 15 minutos, uma moto passava agora, na frente da casa. Nenhum outro morador prestou queixa ou identificou alguém circundando sua residência. Estavam acompanhando, atentamente, qualquer ingresso no condomínio e a polícia já havia sido notificada. Essa última informação não agradou Nicolas que regressou sem fazer mais perguntas.
Vitória raramente se deitava exausta, mas foi ao encontro do marido mentalmente cansada no fim daquele dia. Passou horas corrigindo tarefas que delegou a outros no trabalho. Colocou, ela mesma, Sara para dormir e esta foi a única satisfação daquele dia. Acomodou a filha na cama nova, no quarto novo. Desceu ainda pensando sobre o que ouviu do esposo a respeito da polícia ter sido notificada de uma possível invasão. Nenhum dos dois esboçou a intenção de denunciar o que a filha viu ou achava que tinha visto no meio da noite. Logo, aqueles episódios eram potencialmente um problema que, para ela, era mais importante do que qualquer trauma que Sara teria que lidar no futuro por conta desses pesadelos, em seu entendimento. Não se tranquilizou ao saber que Nicolas afagou a segurança do condomínio dizendo que acreditava que eles eram capazes de lidar com algo do tipo. Torcia para que isso não despertasse a imaginação de ninguém sobre a dispensa ao envolvimento da polícia, por eles.
A leveza de Sara ao se mover pela casa, era uma adversidade para os pais que nem sempre estariam com os olhos na menina. Se preocupavam com as reações dela aos eventos recentes e não sabiam como ela estava, realmente, processando tudo. Não estavam na mesma página sobre terapia e tinham pouco tempo com ela, quando não estavam trabalhando. Eram metódicos e eficientes. Não se distraiam com absolutamente nada, ao executar uma tarefa, mas particularmente para Nicolas, as noites de Sara estavam o inquietando. Seu sono profundo não se interrompia fácil. Desapontava-se por não conseguir ver como a filha estava toda noite. Nas madrugadas que sucederam o flagrante dela diante da janela do sótão, a encontrou dormindo no segundo andar, às vezes. Outrora no quarto novo e, eventualmente, no pé da imensa cama do casal. Sara estava sem um ponto permanente e confortável para viver seu sono tranquilo. Vitória interpretava tudo aquilo como uma inconveniência evitável desde o início. Despertaram todos juntos numa manhã seguinte e, antes da hora da escola, foram surpreendidos por uma visita.
O policial Braga se desculpou mais do que o necessário pela aparição, mas atendia uma queixa que a administração do condomínio fez por conta do ocorrido há poucas semanas. Não disse ao casal que foram insistentes para que a polícia participasse daquele inconveniente. A preocupação da administração, compreendeu, se dava por conta de se tratar da família mais rica da alameda. Fez seu trabalho sem deixar transbordar esse detalhe que desprezava e fez suas perguntas a todos. Passou cedo, porque sabia que tinha uma criança envolvida na queixa e não tinha certeza se conseguiria ouvi-la também. Aos pais, perguntou detalhes sobre o que viram, sobre a segurança particular da casa, assim como visitantes eventuais da família. Tomou nota com muita atenção sobre o sistema de alarme super elogiado por Nicolas e que só ele e a mulher sabiam o código. Sobre não receberem muitas visitas e nem realizarem eventos naquela construção imensa. E que os dois não viram ninguém suspeito andando pela região. Indagou duas vezes a respeito de não possuírem nenhum sistema de vigilância própria pela casa e na área externa. Vitória declarou ter confiança no monitoramento que o condomínio provia. Braga anotou isso, encarado por um Nicolas aparentemente mais desconfortável que a esposa. O policial os perguntou se sabiam que 99% de seus vizinhos tinham suas próprias câmeras. Ao menos foi o que ouviu quando passou pela administração ao chegar. Vitória indagou se as lentes do circuito de monitoramento do condomínio revelaram algum novo detalhe. Ainda anotando, Braga lhe disse que já está de posse delas e que logo saberiam.
Sara foi a última a responder. Seu pai chegou a questionar se isso era realmente necessário. Mas Vitória enxergou na visita indesejada aos dois, uma oportunidade de encerrar o episódio dos pesadelos da filha que já pareciam acalmados. Encorajou a falar com o tio da polícia sem medo. Braga confirmou essa afirmação da mãe. Sara mentiu nas três perguntas que lhe foram feitas. Sabia que seu pai fez o mesmo em uma feita a ele, também. Não sabia em quantas outras ele faltou com a verdade. Ela sabia o código da porta. Seus pais é que não sabiam disso. Relatou ao moço policial que não conseguia dizer como era quem viu acenando na alameda, longe da casa. Nem mesmo se era um homem ou uma mulher. E que nunca mais tinha visto ninguém pela janela do quarto.
Braga agradeceu o tempo de todos e pouco antes de sair, perguntou por último, se eles tinham uma arma. Mentiram mais uma vez.
Vitória era articulada de uma forma diferente do marido ao abordar alguém. Na administração, agradeceu a preocupação da gerência mas pediu que qualquer gesto em prol da resolução de algo relacionado a sua casa, a sua família e que envolva além da equipe privada que atende a todos ali, ela e Nicolas fossem consultados antes. Agradeceu a inconveniente boa intenção dos funcionários e de forma calma e educada, deixou claro que não queria a polícia batendo em sua porta, por conta de noites mal dormidas de uma criança. Se entreolharam quando foram questionados sobre as imagens recolhidas pelo policial e sobre o que tinha lá que eles não viram e que precisava ser verificado por Braga. O segurança, que demonstrou surpresa com a ausência de equipamentos próprios da família ao ir a casa, atestou que não viram nada. Todos se entreolharam mais uma vez.
Nicolas demorava um pouco mais para dormir, agora. Vitória, nem tentava muito. Deixou o esposo finalmente sonolento na cama para buscar algo na cozinha. Desistiu ao encontrar a porta aberta, na sala. Saiu em disparada e se deparou com a filha desacompanhada, sentada no meio da mesa de centro, do jardim. Chamou Sara que se virou para a mãe e a encarou séria. Vitória insistiu que a filha entrasse em casa e a menina só se levantou quando uma moto se aproximou. Encarou atenta a cadeira mais próxima de onde estava e um espaço vago entre os outros assentos acomodados em volta da mesa que gostava de se sentar. Foram poucos segundos até finalmente obedecer a mãe. O responsável pela ronda só voltou ao serviço quando teve a confirmação da dona da casa que tudo estava bem. Ligou a moto depois que ela fechou a porta e Vitória notou que ele demorou um pouco mais para sair. Sentia que aqueles eventos começavam a atrair muita atenção e isso seria complicado de desfazer.
Sara subiu séria sem responder à mãe. Foi até o último andar da casa e fechou a porta. Vitória digitou o código de acesso à residência.
A mãe de Sara não abriu o laptop no dia seguinte. Aguardou o marido voltar da escola e no escritório dele o provocou a resolver o que se passava. Temia que ele estivesse a subestimar a gravidade daquilo tudo. O lembrou que durante toda a vida, o esposo se mostrou um observador impecável. Como não percebeu que aquele segurança poderia chamar a polícia, depois que esteve dentro da casa. A ausência de câmeras próprias no interior e em volta da propriedade, era um consenso dos dois. Sabiam o quanto era devastador ter suas vidas hackeadas. E dar chance a isso, era um erro primário, para eles. Uma senha na porta era uma proteção pela metade.
Qualquer conversa agora os levaria a mergulhar em outros assuntos que, há muito tempo, evitavam lidar. Ela não estava disposta a discutir a relação de tantos anos e temas adiados. Sem falar nos que abandonaram, especialmente, com a chegada da filha. Apreciava a casa em que viviam e participou do empenho que levou àquele resultado, cobiçado por vizinhos e qualquer um que visse por fora o lar que construíram. Mas não o sentia tão aconchegante assim. Era organizada e detalhista em tudo. Quando identificou a gravidez de Sara, forjou uma satisfação que ainda não estava pronta para exibir. Por ela, aguardariam mais tempo para a maternidade. Prolongariam a estadia na cobertura imensa em que viveram, tão logo desembarcaram naquele lugar relativamente longe do passado dos dois, com suas contas bancárias muito bem abastecidas. Mas após anos de estratégias bem sucedidas, se levou na empolgação de seu eterno namorado de adolescência e aceitou o que o destino oferecia. Cutucar Nicolas agora era um mal necessário.
Seu esposo estava confiante que aquela visita da polícia não lhe custariam nada. Ficou mais preocupado ao saber da porta aberta para Sara sair e qualquer um invadir, facilmente a casa. Assegurou que nunca deu a senha de acesso à menina. Nem discutiram sobre mudá-la, diante da preocupação maior de Vitória. Sentia ela, que os olhos para a casa, não eram mais de inveja e sim de insinuações ao distanciamento que sempre tiveram da maior parte das atividades do condomínio, assim como o pouco contato com alguns vizinhos e a inexistente vida digital. E não estavam certos do que os seguranças estavam achando, daquilo tudo, na verdade. Suas visões também casadas, do comportamento humano, pela primeira vez, estavam desfocadas. Antecipavam muito bem o que poderia estar por vir, numa outra época, pretérita a chegada da filha. Vitória evocou o plano que tinham para quando a casa não fosse mais tão segura aos dois. Nicolas a lembrou que agora eram três e que não estava disposto ainda, a deixar para trás o que construiu para Sara. Vitória o lembrou de volta o que construíram para eles dois, também. Era desgastante tentar evitar o que ele não queria chamar de ciúmes da própria filha, por parte da esposa. Apontava esse entendido absurdo sem acusar, mais diretamente, Vitória. Vez ou outra, ela também não se esquivava de lembrá-lo que não conseguiam mais ser como sempre foram por mais apaixonados que ainda estivessem. Para o pai de Sara, se despediram dessa versão dos dois, na porta de casa, quando ele fez o parto da filha. Vitória, já sem paciência, lembrou que Sara o fez ficar sentimental demais. Seja lá o que estivesse por vir, a menina os atrasaria, no entendimento dela. Se sentia cega, correndo entre cactus.
As últimas palavras da esposa, tiraram Nicolas mais cedo de casa. Nem era a sua vez, de buscar Sara no ballet, mas escapou daquela conversa, antes do fim, tentando organizar na cabeça o quanto era importante encarar aquele pesadelo que estava ficando real para todos eles. Relutava em justificar muita apreensão, unicamente pela visita de um policial. Acreditava que ainda estava no controle da situação. Não queria desdenhar da preocupação de sua companheira de quase toda a vida, subitamente. Ela sempre esteve ao seu lado. Não sabiam agir um com o outro, sem se preocupar um com o outro. Admitia que não leu aquela potencial ameaça recente. O estranhar de um funcionário do condomínio que externou isso de forma espontânea, em sua sala. Para qualquer um, aquilo não representaria nada. Mas Nicolas não subestimava a curiosidade alheia.
Se esforçou para parecer atento a todas as histórias do dia, de sua empolgada filha e, foi paciente, até ela ceder espaço com uma pausa naquele relato, para mudar o assunto.
A expressão da trajada bailarina no banco de trás se transformou quando o pai perguntou sobre ela saber a combinação da porta e por que sair no meio da noite. A menina prometeu que não mexeu em nada da última vez que esteve no escritório e tampouco espiou a senha ser digitada. Aquele era um segredo que lhe foi contado por alguém que não morava com eles. Sara não disse mais nada por todo o caminho de volta.
Vitória foi compreensiva e direta com a filha. A acomodou no sofá e explicou que era muito grave ela estar sozinha tão tarde da noite fora de casa. Precisavam saber como ela conseguiu sair. Nicolas acrescentou que não estavam bravos e que, já estava mesmo na hora, dela saber a senha. Que ele e a mamãe sabiam que a filha estava bem grandinha e era merecedora de tal responsabilidade. Aquele afago não aliviou tensão alguma. Sara serviu aos pais um olhar severo e contou que não estava sozinha lá fora. Que não deviam se preocupar com os visitantes que apareceram de repente. Que os contou que sabia que o papai tinha uma arma mas não disse que sabia onde estava. Estava tudo bem, disse a menina. Os visitantes não buscavam por eles. Ela já tinha esclarecido que Reginaldo e Gilda, não moravam lá.
A segunda conversa encerrada antes do fim foi a mais assustadora. Se trancaram os dois no quarto sem ao menos garantir que a filha jantaria ou trocasse o uniforme do ballet. Pela primeira vez, desde que se conheceram, se mostraram despreparados para uma situação. Sabiam que não existia um futuro garantido aos dois e Nicolas passou a concordar com o que Vitória tinha dito mais cedo. Sim, a vida deles, hoje, acomodava atrasos que facilitariam o passado a alcançá-los. Mas não responsabilizaria a filha.
Se encararam tentando organizar seus pensamentos que sempre funcionaram em perfeita sincronia. Desceram convencidos que aquela vida de pouco mais de uma década, na região, ficaria na memória. Vitória o lembrou sobre buscar o essencial e ajeitar Sara sem se preocupar agora em ter que explicar sobre ela fazer ballet em outro lugar, seja lá onde for. Chamaram a filha para perto e a lhe instruíram a juntar numa mochila o que queria levar para uma viagem longa. Sua mãe lhe garantiu que logo subiria para ajudar a fazer uma mala. Mandou que a menina fosse ligeira. Cada um juntou o que era fundamental, numa bagagem de mão. Ainda era preciso buscar documentos no escritório de Nicolas. Vitória pediu que a filha se apressasse a descer a escada. Sara ensinou à mãe que não se deve correr na escada. Que era perigoso e que, segundo tia Sandra, isso poderia causar um acidente grave e, até mesmo, deixar alguém numa cadeira como a dela. Os três pararam nos primeiros degraus ainda no segundo andar. Escutaram uma voz vinda de baixo afirmar que Sara tinha razão.
Desceram ao som de passos além dos seus, que ecoavam do andar térreo da residência. Encontraram Sandra que não entrou andando na casa, no meio da sala. Nicolas ameaçou se aproximar do caminho para o seu escritório, mas a mulher na cadeira de rodas lhe recomendou o contrário. Lhe assegurou que não deveria evitar a conversa entre eles cinco. Ironizou que até gostaria de se reunir no elegante conjunto de móveis, no jardim. Mas gostaria que Vinicius pudesse se sentar, também, se assim quisesse.
Sara foi na direção do homem que vinha do corredor que levava ao escritório. Ele usava luvas em mais um dia seco e quente na região, o que não era um bom sinal. O tio Vinicius, como a menina o chamou, lhe fez um carinho na cabeça e indagou onde estava o beijo da tia Sandra. Sara parecia confortável e muito próxima aos dois. Permaneceu ao lado da cadeirante que falava calmamente aos donos da casa.
Foram muito anos até descobrir o buraco onde eles se esconderam. Não os buscou para um acerto de contas. Tampouco vislumbrava justiça. Vingança lhe era o ideal e Vinícius estava na mesma página desse projeto. Se encontraram depois de anos tentando se refazer do que os donos daquela casa de luxo causaram às suas famílias e a tantos outros. Os golpes que aplicaram tinham padrões de comportamento distintos, mas que se completavam. A mesma eficiência que levantou aquela nova vida para Gilda e Reginaldo.
Vinicius foi breve no que sabia que Gilda estava mais do que esclarecida a respeito. Contou a Sara, como se fosse uma fábula, sobre o navio que sua antiga parceira na ONG assegurou, nunca sair de onde traria em resgate mais de seiscentas e quarenta crianças. Famílias que morreram junto de outras milhares, por conta de uma ação que traumatizou todos os que por tanto tempo trabalharam na Organização criada por sua avó. Aquele rapaz que parecia ter envelhecido um pouco além dos anos que se passaram, perdeu no golpe de Gilda sua crença em valores que pareciam inabaláveis. Não mais se sentia capaz de ajudar ou salvar alguém.
Sandra se voltou à pequena bailarina ao seu lado e contou sobre quando conheceu o seu pai. De quando ele, ainda um jovem aspirante entre empresários e investidores, destruiu a empresa de seu esposo por conta de um negócio que ele vendeu ser absurdamente lucrativo. Se a menina quisesse imaginar o quanto, era só olhar em volta. Só pensar em tudo o que tinha em seus quartos. Em tudo o que ganhou. Perguntou à criança se ela queria saber o que aconteceu com o seu esposo. Sara afirmou que sim, ainda abraçada à mulher. A esposa do Doutor Juarez, pediu a Reginaldo que contasse à filha. Ainda na pele de Nicolas, o pai de Sara, lembrou que ela era uma criança de nove anos e que não precisavam resolver nada, envolvendo ela.
Vinicius chamou a menina para perto com a mão e a abraçou com carinho. O neto de Dona Vanessa, disse à criança que nove anos era muito tempo. Conhecia a história de muitas crianças que viveram somente por alguns meses ou dias, graças a mãe dela.
Retirou uma arma detrás da cintura e a manteve bem perto da cabeça de Sara. Vitória contou à filha, fria e direta, que o marido da tia Sandra se matou. A viúva completou o relato, detalhando que os processos dos que confiaram naquela empresa, um montante absurdo de dinheiro, fizeram mais do que falir o esposo. Ele buscou uma arma como essa que o papai disse que não tinha no escritório e deu um tiro na cabeça.
Nicolas se revoltou com a exposição da filha a aquilo tudo. Trocava olhares com Vitória e percebia o julgamento da esposa por ele ter sido displicente ao deixar a arma tão acessível assim. Mas a alienação dos dois na criação da filha ia mais além do que ter uma pistola tão fácil de se achar, numa gaveta. Fracassaram em uma das lições mais sagradas a um filho. Não deixá-lo falar com estranhos.
Os personagens dos passados dos dois, chegaram juntos para mostrar que toda aquela expertise do casal tinha validade. Não eram os únicos disciplinados e astutos para invadir vidas. Foi difícil achá-los, era verdade, mas ao chegarem, foi fácil abrir a porta.
Sara ouviu tudo pensando mais sobre por que os dois tios que se revelavam, eventualmente, no meio da noite, há dias, falavam com os pais como se eles tivessem outros nomes. Pensava nisso mais do que qualquer outra coisa. Nunca perdeu alguém. Nunca teve uma conversa sobre morte com os pais. Se preciso fosse, provavelmente, teria ganhado algum presente que a fizesse desviar desse assunto. Seu aprendizado, em casa, era repleto de adiamentos. Como se sua infância fosse preservada ao máximo, pelo pai, especialmente. Era como se Nicolas quisesse uma criança que não atingisse uma idade que pudesse lhe levar a fazer perguntas sobre como era antes dela chegar. Sabiam mentir tão bem que enraizaram verdades. Talvez por isso, Vitória entendia que a filha precisava ser autossuficiente, desde cedo. Iniciou esse projeto com um quarto. Na sua cabeça, aos poucos, sua menina assimilaria que crescer é entender que nem sempre seus pais estarão por perto. Nem sempre, no mesmo corredor. Era assim que Vitória compreendia seu papel de mãe. Vislumbrou um futuro sem a menina, bem mais cedo que o esposo. Sara chegou sem planejamento na interpretação da mãe. Sempre foi sobre eles dois, especialmente para ela.
A arma de Nicolas em posse de Vinicius, ficou mais flagrante quando ele afastou a menina de si. O homem outrora idealista, humanitário, deixou explícito que não acreditava ver o montante desviado de sua ONG de volta. Não existia mais ONG e nunca foi, para ele, sobre o dinheiro. Gilda levou muitas almas além de muitos zeros para sua conta bancária. Apontou a arma para a criança e indagou a mãe dela se ainda lembrava o que era ceifar uma vida tão jovem.
O pai de Sara foi reativo com palavrões. Ameaçou de volta os dois garantindo que não lograriam êxito naquela vendetta. Sandra, visivelmente tranquila, afirmou que não conseguia reconhecer toda a segurança do ex-funcionário do marido, estudioso e firme, em defender o que pode acontecer, levando em conta variáveis diversas. Pediu para que Vinicius, não prolongasse mais as coisas. Ele deixou a arma em ponto de disparo e indagou ao casal, quem se responsabilizaria, pelo passado. Sara teve a arma apontada para a cabeça por um bom tempo. Mas passou a dividir com o pai o papel de alvo do tio.
Vitória se desesperou diante da arma apontada para o marido. Se colocou diante dele e suplicou que não o matasse. Que atirasse nela ou…
Sandra ficou perplexa com a reação da mulher que não se moveu diante da ameaça a vida da própria filha, também. Vitória transbordou abraçada ao marido, que em prantos, se ajoelhou, junto dela. De repente, os dois não eram nem um rascunho do que quando mais jovens, se mostraram. Choraram agarrados um ao outro sem saber quem sobraria deles. Nicolas ergueu a mão para a filha. Vitória o apertou mais forte.
Sara acompanhou o suplício dos pais com a arma agora apontada para ela. Vinicius e Sandra observaram ali, dois adolescentes que não aceitariam se separar em hipótese alguma. Um deles, estava disposto ao impensável pelos dois.
O ex-colega de faculdade de Gilda, colocou a arma ao lado de uma mesa com um abajur. Abriu a porta da casa para Sandra que se conduziu para fora impressionada, mas satisfeita com o que testemunhou. Alcançaram além da vingança perfeita, no entendimento deles. Não era preciso sangrar ninguém. No fundo, sabiam o que estava por vir para os dois. Foram a faísca para as sirenes a caminho. A ligação anônima a polícia que a administração não conseguia identificar. A manipulação nas imagens que não os revelavam no jardim nem pelas alamedas. Chamaram a atenção para o discreto e tão culpado casal.
Mostraram a menina, quem eram os pais dela. Tipos ainda piores, do que os que conheceram, um dia. Entre os três, Sara receberia uma bala antes, possivelmente.
A moto da segurança do condomínio chegou, seguida de quatro viaturas da polícia. Vitória e Nicolas não se largaram pelos longos minutos que sucederam toda aquela exposição ao passado. Os oficiais entraram naquela cena de um casal ainda chorando abraçado aos olhos da filha que não se movia há muito tempo. Sara não parecia em choque quando uma policial acompanhada de um representante do conselho tutelar a tirou dali. A arma que não existia, segundo Nicolas, foi encontrada por Braga, de imediato. O mesmo se referiu aos dois por seus nomes verdadeiros e bastante ciente de quem eram, de verdade. Um relatório com informações iniciais diversas, pautou as perguntas ao casal que foi algemado e posto no sofá. Não responderam nada. Vitória seguiu soluçando, ao lado do esposo. Braga admitiu que sabia que não fora chamado pela administração do condomínio antes da primeira visita. Achou tudo estranho na falta de informações adicionais além do que cabiam aos funcionários saber sobre a rotina da reservada família. A curiosidade é um sintoma universal. E muita discrição, sempre esconde alguma coisa. Não ter escutado fofocas o deixou curioso. Era comum estelionatários ostentarem seus lucros e a conduta dos dois, não mostrava tanto talento assim. Afinal, lá estavam eles, algemados, diante da polícia que ainda os procurava no lugar de onde vieram. Chamaram mais atenção do que imaginavam, se ocultando. Mas não achava tolo não terem fugido para tão longe. Quem procuraria a poucas horas de distância? Correram o risco ao plantar seu presente tão ao lado do passado. Aquele blefe, os dois sempre souberam, poderia arruinar o futuro. Talvez esse tenha sido o primeiro erro dos dois. Até mesmo aos mais perspicazes, o dinheiro consegue envenenar com a soberba.
Um oficial fardado interrompeu a conversa e revelou que Dona Vanessa havia chegado. Braga se apresentou a senhora nonagenária tão logo ela entrou. Ela trocou a mão da bengala e cumprimentou o policial que a contactou por telefone há poucos dias. Estava junto de um colega de Braga que veio no mesmo avião que ela.
Aos olhos úmidos de Vitória, a senhora ainda parecia firme e indubitavelmente lúcida. A avó de Vinicius deu uma boa olhada nos dois. Externou aos que estavam em volta, que gostaria de saber do neto, de ter notícias dele. Que ele deveria estar lá, para testemunhar esse dia. Essa declaração secou as lágrimas do casal.
Braga a instruiu do que já tinham apurado desde que foram, os dois, identificados e, que aguardava o material referente à investigação de mais de uma década sobre o desvio de Gilda na ONG. Esse conteúdo estava em posse do colega policial que acompanhava Dona Vanessa. O homem chegara para dar fim a um caso que se ressentia por não ter conseguido concluir. Braga disse que ainda não tinha muitas informações a respeito do caso que envolvia Reginaldo, vulgo Nicolas. Mas foi alertado pelo mesmo colega que sabia quem deu partida na apuração dos crimes do pai de Sara. Eram investigações distintas que se cruzaram, por vezes, ao longo de anos. Não sabia do paradeiro da viúva do dono da empresa que se matou pouco tempo depois do roubo. Soube que ela não demonstrou mais interesse para a resolução do caso e há anos, sua localização era desconhecida. Ali detidos, Nicolas e Vitória se depararam com a realidade de não ver e entender tudo o que estava em volta. Isso era absurdamente inédito para os dois.
Com a ajuda de um policial, Dona Vanessa caminhou para fora da casa e parou diante da mesa de centro do jardim, onde Sara estava. Vitória e Nicolas, ouviram a senhora abordar a filha, de forma amável, elogiando seu traje de bailarina. Ela se sentou amparada pelos que estavam em volta na área externa que já acumulava mais do que viaturas. Os dois só conseguiam enxergar a filha, de onde estavam, sentada no meio da mesa, de pernas cruzadas. Dona Vanessa se acomodou numa cadeira, de costas para a casa. A vizinhança que sempre quis ver mais daquela morada de catálogo, via pela porta aberta o vai e vem de oficiais que passavam diante do casal acomodado no sofá com as mãos para trás.
Ressurgidos do passado, Reginaldo e Gilda, escutaram seus direitos antes de serem conduzidos, separadamente, para fora.
Vitória saiu primeiro. Flagrou Sara de pé na mesa de centro do jardim, fazendo um plié para Dona Vanessa, sentada diante dela. A idosa que assistia sua filha, a aplaudiu demonstrando carinho pela menina que parecia alheia a tudo que se passava. A disposição do conjunto de móveis na área externa ainda estava como a criança havia ajeitado.
Nicolas foi escoltado um tempo depois, sem notar nada em volta. Passou pela porta em que não havia registrado a última altura da filha depois do aniversário mais recente. Atônito, foi conduzido e alocado em um veículo que deixou a frente da casa já sem tantos curiosos e policiais ao seu redor. Observou de longe a residência que construiu e forjou uma nova vida, se distanciar na alameda. Pelo vidro traseiro, não avistou sua filha, nem mais ninguém pelo jardim, além de um senhor com um buraco imenso na cabeça. Acomodado numa cadeira de frente para a fachada da casa, afastado de outra, igualmente posicionada e, com espaço suficiente para um outro lugar entre as duas, o idoso se voltou para trás e acenou na direção do carro que se afastava. Reginaldo ficou peturbado com aquela visão. Dois policiais perguntaram se o doutor estava bem no banco de trás. O pai de Sara se incomodou ao ser chamado assim.