
por Alex Cabral Silva
Nunca se despediram, em definitivo, daquele clima de relação recém-inaugurada, quando tudo é só sorrisos. O que viveram até agora cabia quase tudo num disco. Aquela inquebrantável cumplicidade não se descobria fácil em lugar algum. Desde sempre se esquivaram de certezas sobre o futuro. Viveram muitas versões daquela relação, aqueles dois. O mesmo quarto sempre esteve disponível, naquele hotel que resistiu, especialmente, ao tempo dos outros. Num espaço compacto onde mal cabia a cama, expandiram o deserto que habitavam quando podiam ter um ao outro. Lá dentro nada ousava ameaçar aquele amor particular que não permitia coadjuvantes.
A TV ligada não exibia outros romances. Nenhum drama ou filme de fazer rir passava em canal algum. No rádio também não se ouvia notícias. A janela aberta não trazia nada lá de fora além da brisa que poetizava aquele momento. O espelho na parede exibia uma pintura exclusiva e atemporal do casal. Os dois eram tão suficientes um ao outro, que não saberiam o que pensar de qualquer coisa contada, de repente, de algum outro lugar além dali. Nunca se perderam de vista naquele quarto. Quando desciam até o lobby, seus ecos eram a única companhia que conseguiam perceber. Provavam os mesmos pratos, emulando a eterna primeira vez naquele lugar. Gozavam do privilégio de só sentir um ao outro em salões imensos. E dançavam ao redor do piano melodias exclusivas aos corações dos dois. Eventualmente exploravam os arredores daquele estabelecimento. Andar no entorno do quarteirão era mais um capricho que ela cedia a ele. Ver o mundo só deles dois num fim de tarde adiado. Aproveitavam intensamente aquele tempo suspenso.
Mas a cada saída, o mundo lá fora aos poucos se exibia novamente. Tudo porque, ele queria às vezes, flanar pela rua da frente, que quando estavam juntos, era só deles dois. E a cada retorno àquele lugar seguro, despertavam para todo o entorno, também. Notavam os funcionários do hotel e suas rotinas. Quem os servia nas refeições e até mesmo a pianista que arriscava agora canções que não estavam na playlist da história dos dois. Todos se mostravam ali, quando um deles resolvia reparar em qualquer coisa além do outro. Na volta de um passeio breve, ele flagrou sete jornais acumulados numa mesa baixa, perto do acesso de um dos elevadores. Já era terça-feira de novo. Reconhecer quantos dias se passaram revelou relógios que se ocultaram tão logo eles receberam as chaves do quarto. O tempo apercebido trouxe de volta lembranças e, as mesmas, resgataram conversas que por muitas vezes tentaram evitar.
Tudo o que tinham a dizer, nesses momentos, não sustentava a felicidade naquele refúgio. A constatação das voltas que os ponteiros davam, os levavam a discutir o porquê não deu certo antes. Eram muitos passados entre eles. Foram apaixonados, casados, pais e tudo o que quiseram ser. Não magoaram ninguém além deles mesmos quando foram amantes aos olhos dos outros. Mas nunca foram nada comparado ao que conseguiam ser, quando se buscavam ali, naquela hospedagem que esvaziava o mundo todo ao redor. Aprenderam que não valia mais fingir se importar se o que tivessem fosse clandestino no entendimento alheio, tampouco ameaçador a outros corações. Nunca flertaram pisar na área cinzenta onde se imagina o que se pode simplesmente viver.
O comentário de que em breve seria quarta-feira, adiantou a noite. Tudo o que se libertaram de ouvir ou enxergar, além deles mesmos, reivindicou sua existência. A pianista, o garçom, os outros hóspedes que também dançavam e jantavam no salão. Presenças que espontaneamente ignoraram, agora estavam ali, revelando a vida além daquele lugar que acolhia o amor de algumas décadas. Mas era preciso retornar para o que existia quando não podiam estar só eles dois. Voltar para a separação de bens, o acordo de guarda compartilhada e os relacionamentos paralelos que nunca conseguiriam ser como o que se comprovava único, toda vez que regressavam a aquele hotel. Não trocariam cartas. Para aqueles dois, esses eram signos visuais de más notícias. Se amavam melhor presencialmente.
Partiriam, mais uma vez, aceitando que o para sempre é impossível de se sonhar sem se dedicar exclusivamente ao agora. Naquela cama, para aquelas paredes, sempre foram eles mesmos sem qualquer arrependimento ou promessas sobre o amanhã. Muitas vezes dormiram abraçados sem saber como acordariam naquele leito. Aquele espaço incapaz de hospedar o antes e depois. Desfrutaram o agora, sempre que foi possível. Pode ser que em alguns anos, talvez meses, voltem àquele refúgio. Fora dali, assinariam o divórcio, formalizariam o fim para todo o resto e seguiriam adiante num mundo que nunca compreendeu o quanto eram necessários um para o outro.