
por Alex Cabral Silva
A notícia estava gasta mas ainda gritava alto aos interessados. Para alguns, era um boato persistente. Quase uma década depois do centenário daquele sobrado, especulou-se muito a respeito do fechamento do clube abrigado ali. A gerência, quando abordada, lembrava que nunca se sabe o dia de amanhã. Melhor mesmo era aproveitar a noite até o último acorde, diziam. Gerações testemunharam músicos de todo o mundo se encontrarem naquele tablado sagrado para os frequentadores mais fiéis. Filas eram rotina na rua estreita que forjava o caminho para aquela casa. Muitos que se alinhavam, nem gostavam tanto assim de jazz. Mas era difícil expressar em palavras uma noite naquele estabelecimento. O som feito ali, tomava toda a atenção de quem conseguia entrar. Era um show exclusivo para cada um toda noite. O clube era um negócio familiar. Seus donos poucas vezes se deixavam estar na luz que destacava os convidados. Nenhuma geração que zelou por aquele espaço, cuidou de forma improvisada da casa. Eram discretos mas não invisíveis. As especulações sobre um iminente desaparecimento daquele lugar lendário, estimularam buscas pela atual dona.
Adam estava entre os poucos repórteres que ainda acompanhavam a rotina das noites na cidade. Entrou poucas vezes na casa e desistiu muitas outras ainda na fila. Apesar do ofício, não era como sua amiga Julia, bem relacionada e que sempre conhecia o cara da porta. Dos momentos em que conseguiu uma cerveja no balcão, bebeu solitário e particularmente deslocado no interior do sobrado. Sua arquitetura lhe chamava mais atenção do que as catárticas apresentações. Se questionava sobre o antes do assim chamado santuário do jazz. Seu conhecimento rudimentar a respeito daquele estilo musical o forçou a pesquisar sobre as origens daquele som. Instruiu-se do básico, mas seu interesse pela casa, antes de tudo, o mergulhou num passado mais distante. Tinha perguntas pretéritas aos encontros musicais das noites naquele lugar que um dia, já sabia, fora um teatro. Se surpreendeu ao ser escalado para uma entrevista com a proprietária.
NOVA
Pelo menos para alguns ansiosos que se posicionavam na calçada, o sol parecia não ter pressa em se pôr naquele fim de tarde. Adam deu uma boa olhada na fachada do clube que nunca notou a luz do dia. Reparou na sacada vazia, mais uma entre tantas nas construções do tipo, ao longo daquela rua. E foi recebido por um gerente que abriu a porta ao repórter que tantas vezes desistiu de entrar ali numa fila como aquela que já se formava. O sobrado não parecia maior quando vazio. Adam aproveitou a oportunidade de poder contemplar aquela construção. Os instrumentos já estavam lá. Mesas e cadeiras começavam a tomar seus lugares, organizadas por funcionários entristecidos. Era impossível ignorar suas expressões. O jornalista até ameaçou lhes fazer algumas perguntas, mas foi desencorajado pelo anúncio de que sua anfitriã já estava pronta.
Bem ao lado do bar, uma porta discreta ocultava uma escada exageradamente apertada. Era um imóvel antigo, Adam sabia. A cada passo para cima, avaliava o quanto os proprietários evitaram mudar o projeto original que, surpreendentemente, não era tombado pelo patrimônio histórico. Num corredor de poucas portas, lhe foi apontado um banco de piano. Se sentou sem nenhum recado a mais de quem o conduziu até ali. Mal teve tempo para se questionar se a espera seria longa. Se ergueu tão logo ouviu a porta ao seu lado abrir. Entrou num cômodo imenso que guardava itens diversos da rotina daquele estabelecimento. Parecia uma sala de ensaios que ocupava quase todo o segundo andar. Era repleta, especialmente, do que encontrava lugar no tablado e de uso constante dos músicos. A luz do dia cuidava de mostrar o que tinha por todo o lado. Num canto, era impossível não notar uma pilha de banquetas. Adam vagou em poucos passos e do centro daquele cômodo girou impressionado com aquele cenário. Entre tantos objetos nativos daquele ambiente, maravilhou-se com uma bola que refletia tudo em volta. Migrou sua atenção para a porta da sacada aberta que iluminava todo o lugar. Logo seria noite. Escutou uma voz doce e tranquila, vinda de fora, lhe dar boas vindas. A mesma, o convidou a se sentar.
O repórter buscou uma banqueta no canto e se acomodou desconfortável, equilibrando no colo, seu bloco e um gravador. Pegou um lápis absurdamente tentado a ir à sacada e encarar a voz que não revelava um rosto. Mas estava fascinado com a presença que sentia dali. Se colocou em direção a porta, ainda no meio da sala, mas só flagrou um enquadramento belo e vertical da construção do outro lado da rua, sem nenhum vestígio da anfitriã, na sacada. Por motivos que não soube explicar a si mesmo, não ousou pedir que ela se juntasse a ele lá dentro. Levou alguns segundos a mais do que o habitual quando entrevistava alguém, para desferir perguntas. Tentava organizar o que preparou, mas sua pauta parecia não ter chance nenhuma, naquele encontro. Ouvia o som dos que já se aglomeravam pela rua chegando, cada vez mais presente. A melódica fala vinda da sacada se desculpou pelo estado daquele cômodo. Infelizmente não tiveram tempo de arrumar aquela sala para recebê-lo, ela confessou. Se mantiveram em silêncio por instantes, os dois. A voz não ameaçou se revelar como Adam gostaria e o repórter parecia perdido diante da sensação de ultrapassar algum limite, ao considerar tentar se aproximar daquela presença intrigante. Não se levantou até a hora de partir. Antes de qualquer questionamento, de fato, sua anfitriã o informou que ele era o primeiro jornalista convidado a casa para conversar. Adam a lembrou de várias coberturas de noites épicas no clube de jazz e outras tantas matérias de diversas publicações internacionais, destacando alguns grandes nomes da música que se apresentaram naquele tablado. O jovem ouviu de sua entrevistada, em palavras doces que tomavam todo aquele interior, que sabia que ele não foi até lá para falar de música.
De repente já estava escuro. A porta do quarto foi aberta por uma mão que de imediato acendeu a luz da sala. A noite chegou ligeira e sorrateira entre os instantes de silêncio. E de súbito a entrevista que nem começou parecia ter acabado, também. O repórter não entendeu o que aconteceu naquele fim de tarde e se colocou de pé ao ouvir do gerente que o conduziu ao andar de cima, que a casa ia abrir. Confuso e buscando palavras, o jornalista foi surpreendido pela voz da sacada o indagando se poderiam continuar na semana que vem. Adam afirmou que sim. Agradeceu a anfitriã e a perguntou de volta se o mesmo horário estava ok. Ela o respondeu que, talvez, um pouco mais tarde. Na rua, o entrevistador não a avistou na sacada quando deixou o sobrado e foi embora na companhia de sua imaginação.
CRESCENTE
No caminho para o segundo encontro, o jornalista refletiu sobre o que testemunhou no interior daquele clube de jazz, há exatos sete dias. Não acusaria sua entrevistada de ser monossilábica, até porque, não desafiou o silêncio que foi trilha, com pergunta alguma. Entendeu, por conta própria, que voltaria de novo numa quinta-feira. Mas dessa vez, chegou com o sol já tombado. Acessou aquele espaço inalcançável para os clientes e rumou para mais uma chance de estar frente a frente a uma personagem igualmente inacessível, para muitos. Subiu desacompanhado, depois de mãos lhe apontarem o caminho. Os funcionários pareciam muito ocupados e o serviram poucas palavras. Os clientes já tomavam seus lugares diante do tablado. Não tinha um banco de piano ao lado da porta que já estava aberta, dessa vez. Antes de bater no alizar, Adam ouviu seu nome. Nunca escutou seu nome naquele tom. Nunca fora chamado naquele timbre. A voz da anfitriã agora estava mais perto. E essa proximidade era flagrante aos olhos. O repórter foi surpreendido com a visão que ansiava ter, por mais que não soubesse organizar muito bem sua imaginação naquele momento. Encostada em uma das portas abertas que levava a sacada, uma mulher elegante, de pés descalços, o recebeu. Menos da metade de seu corpo estava voltado para o interior do cômodo. E a luz de fora, acanhada, a destacava belíssima. Adam a cumprimentou embevecido com aquela imagem. As lâmpadas daquela sala ampla estavam tímidas diante dela, ali. Uma banqueta já estava posicionada à sua frente. Adam até sinalizou buscar mais uma, mas um sorriso acompanhado de uma negativa com a cabeça lhe esclareceu que não era necessário. Ele sentou-se acomodando no colo seus instrumentos de trabalho. Indagou a anfitriã se ela se importaria se ele gravasse a conversa. Mas antes dela responder, três batidas num prato da bateria no andar de baixo arrancaram risos dos dois. Adam guardou o gravador no bolso. Com o bloco aberto, resolveu partir para as perguntas antes que a noite se esvaisse tão rápido quanto chegou no primeiro encontro. E de imediato teve respostas. Sim, ela era a dona. Mais uma entre tantos de sua família, a ser responsável por aquele negócio. Cuidava daquele sobrado do jeito que a geração que a antecedeu ensinou e aprendeu muito sobre como se deve gerir um estabelecimento como aquele, com o tempo. Ela era jovem, mas parecia ter cuidado daquela casa a mais tempo do que dizia. Como se os meses e dias a cada ano ali, tivessem sido dobrados para ela. Falou sobre manter um espaço tão mítico, sedutor e único no imaginário coletivo. E garantiu a Adam que aquele lugar era o que era por conta de quem entrou lá. Dos que queriam tomar um whisky até os que foram ouvir um quarteto de estranhos uns para os outros exibir uma cumplicidade assombrosa no tablado. Dos músicos que se expuseram numa noite e fizeram muito mais do que um som. A casa não seguiu aberta esse anos todos por conta de quem era o dono. Administrava com sucesso, como diziam os outros, um lugar que atendia bem por conta do compromisso de todos que trabalhavam lá. Era assustador para o repórter como a dona daquele lugar falava sem forçar a voz enquanto os músicos abaixo dos dois improvisavam e arrancavam aplausos dos afortunados daquela noite. Adam sentia as tábuas a seus pés vibrarem. O andar térreo reverberava por toda aquela construção e esse parecia ser o estado natural daquele espaço. A anfitriã falava numa afinação perfeita, quase que em harmonia com a música que se sentia por todo o lugar. Adam tinha muitas perguntas, mas se perdia na contemplação daquela mulher gentil e de voz tranquilizante. Era perceptível a ela que o homem parecia reflexivo com o material que tinha em mãos e com o roteiro que preparou para aquela conversa. O interrompeu antes da próxima pergunta e sem saber quantas mais ele ainda tinha, o indagou se poderiam continuar na semana seguinte. O repórter consentiu que sim e se levantou ameaçando erguer a mão para cumprimentá-la. Conteve o gesto diante da indiferença dela. Adam desejou boa noite e antes de fechar a porta ao sair, reparou novamente o globo espelhado numa pilha de guardados.
CHEIA
Muito mais gente tomava a rua no terceiro encontro. O fim da fila era quase impossível de se imaginar. O jornalista invitado ingressou num sobrado quase vazio. Os funcionários se deslocavam tranquilos e aparentemente indiferentes ao horário e o povo todo lá fora. As cadeiras ainda repousavam nas mesas. Mas os instrumentos já pareciam arranjados no tablado. A bateria e um contrabaixo deitado aos pés do piano. Adam não identificou o que parecia acomodado sob um banco porque tinha dificuldades de diferenciar os sons dos metais. Se envergonhava muito por isso. Um dos gerentes o alertou que ela o aguardava. O jornalista subiu a fina escada. Bateu na porta fechada e foi chamado a entrar. A dona do clube estava sentada num banco de piano diante de uma banqueta reservada ao repórter. Seguia descalça, agora só revelando as pontas dos dedos por conta do longo vestido que usava. O mesmo do último encontro. Estava à mercê da luz de fora, mas totalmente visível, dessa vez. Era uma imagem arrebatadora. Seu rosto, o cabelo. Não se ocultava de forma alguma. Adam sabia que não poderia perder nenhum segundo na companhia da dona do clube. Sentados, frente a frente, o repórter buscou seu bloco e um pequeno lápis que insistia em se esconder no bolso da jaqueta. As luzes do teto eram uma encenação naquela noite. Não lançavam chance alguma de se enxergar nada naquele lugar. O que iluminava mesmo aquele momento era a porta aberta exatamente atrás da dona do clube. Ela abrilhantava toda a sala, amplificando a chance de se identificar qualquer coisa mais perto deles dois, ali.
Adam decidiu avançar ao assunto mais comentado recentemente. Ouviu a confirmação do que se especulava tanto. O clube estava sim com os dias contados. De repente, a qualquer momento, essa semana, em breve. Não teve a garantia de uma data, mas sentia a segurança na fala da dona que era algo inevitável e definitivo. Sua proprietária não se sentia frustrada. Não se lamentava com aquele encerramento. Compreendia a finitude e essa era uma lição especialmente assimilada com a rotina do clube. O curioso repórter a estimulou a lhe partilhar detalhes desse ensinamento. E ela confessou que, aprendeu que os anos de todos os que um dia foram os responsáveis pela manutenção daquele espaço, ofereceram desafios diversos, como qualquer outro negócio. O improviso só ocupou lugar no tablado, nas jams entre estranhos. Mas na opinião daquela mulher, cada músico que pisou ali um dia, sabia exatamente o que estava fazendo e o que iria acontecer. Talvez, alguns desconhecessem os parceiros no instrumento ao lado e tenham se deixado levar pela ocasião, mas todos em meio àquele momento de criação, sabiam exatamente o que ia acontecer, a cada nota. Adam indagou o quê e a provocou sobre estarem falando de música. Ganhou uma piscada da entrevistada que o garantiu que não estavam.
A instigante dona daquele estabelecimento que abrilhantava a sala, atestou que, todos no clube, sempre estiveram comprometidos com um propósito singular. Oferecer um momento único, uma experiência íntima para cada cliente. Como a noite seria, nunca souberam. Mas tinham certeza de como terminaria, porque sempre se dedicaram a prover o melhor para quem conseguia entrar. Nada sofisticado. Simplesmente, produziam bons momentos. Sabia que o tempo fez da casa um lugar de romaria. Viu alguns ali dentro que não se mostravam interessados, já da porta, em Bebop e Hard bop, tampouco em Free Jazz. Alguns queriam beber uma cerveja, contemplar o lugar e imaginar o que era antes. Aquele testemunho atingiu particularmente Adam. Pensava muito na história daquele imóvel e o que queria, na verdade, era redigir um perfil daquele lugar antigo e ainda relevante para a cidade. Ele se levantou tão logo a viu fazer o mesmo. Se olharam carinhosamente até o repórter elogiar o solo que começara no andar de baixo. Confessou que adorava o som de clarinete e que só tinha reparado um saxofone em cima de um banco, quando chegou. A anfitriã lhe presenteou com uma gargalhada deliciosa e afirmou que ele não era o único. Ela o questionou se ele estava disponível para o mesmo horário e foi interrompida pelo repórter que lhe garantiu que estaria de volta em sete dias. Adam não lhe estendeu a mão e nem se aproximou. Em um gesto tímido, se despediu com um aceno e rumou para deixar a sala. Flagrou a bola de espelhos equilibrada entre as poucas banquetas num canto. Aquele espaço cada vez mais desocupado, começava a entristecê-lo.
Antes de partir do sobrado, degustou uma cerveja no bar e ouviu o final de um solo devastador do trompetista convidado naquela noite. Ainda deu uma última mirada para a casa, do lado de fora, mas não ganhou um olhar de volta da mulher rutilante, absurdamente flagrável, agora na sacada, observando o movimento na rua.
MINGUANTE
Inseguro a respeito de quantos encontros ainda teria com a dona do clube, Adam se organizou considerando que o próximo poderia ser o último. E na rotina em que a suspeita vale mais que a certeza, chegou ao lugar determinado a apurar mais nesta nova visita. Muito além das palavras que ouviu sobre aquele estabelecimento e a dedicação de todos que trabalhavam ali, ansiava em saber o que viria depois do último acorde. Não tinha garantia alguma que essa indagação contribuiria ao seu texto mas, tinha convicção que era necessária. O que viria depois que as luzes do clube se apagassem de vez? Entendeu que o quarteto daquela noite, era um representante exemplar do estilo mais tradicional daquele gênero. Sabia disso porque, ouviu no fim do balcão, antes de subir, uma senhora que o convenceu rapidamente que entendia do assunto. Entrou devagar e sem bater, na sala. O espaço estava bem mais vazio e o número de banquetas era ainda menor no canto. Uma reservada a ele estava posicionada no lugar de sempre. Sentou-se diante de sua entrevistada novamente de pé, posicionada com uma parte do corpo para dentro e outra para a sacada. Ela trajava as mesmas vestes, ainda livre de calçados e agora com uma estreita faixa de luz, vinda de fora, a destacando. Adam ganhou alguns poucos olhares tão logo se acomodou. O repórter seguiu seus planos de amarrar os assuntos mais importantes naquela conversa e questionou sobre os funcionários da casa. Afirmou que notou alguns cabisbaixos na ocasião de sua primeira visita. Um vento fraco ocultou a parte flagrante do rosto da dona do clube, mas seu cabelo não escondeu sua expressão de descontentamento. Para ela, essa era a parte mais difícil. Os clientes, os críticos de música e tantos outros que lamentavam o anunciado fim do clube tinham o seu respeito e agradecimento pelo carinho e zelo com aquele lugar. Mas a tristeza dos funcionários era o que mais lhe tocava forte quando pensava no encerramento. Providenciou para que todos além de cartas de recomendação, saíssem dali, com trabalhos garantidos. Cobrou favores e foi atendida prontamente. Adam a instigou mais sobre por que fechar um lugar de sucesso internacional e o que ela faria depois. O que ocuparia aquele sobrado no futuro? O além do clube naquela construção de muito mais de um século não era de sua conta, ela disse. Ela não demonstrava interesse algum do que seria feito. Indagou de volta ao repórter se ele sabia o que existiu ali ao longo de mais de 110 anos. Se ele acreditava que os antigos donos pensaram realmente do que seria feito na casa que passaram adiante ou que perderam. Adam afirmou que não se surpreenderia se alguns tivessem apego ao lugar. A mulher lhe serviu um seco talvez. Tanta coisa diferente ocupou aquele sobrado. Se outro clube de jazz fosse reaberto no mesmo lugar, ela não ligava. Não tinha compromisso nenhum com o que aconteceria depois. O repórter insistiu por que uma mulher jovem com um negócio tão famoso e histórico, queria encerrar aquele estabelecimento tão bem sucedido. Ela gostou de ouvi-lo chamá-la de jovem. Sem sair de onde estava, moveu seu rosto mirando Adam nos olhos. O educou que, nos primeiros anos daquela construção, uma escola de esgrima era o centro das atenções naquela rua. Uma tapeçaria se alojou ali por algumas décadas, depois. Um padeiro também tentou a sorte e uma gráfica teve uma vida mais breve ainda, naquele sobrado. Mas antes de sua família adquirir aquele estabelecimento, aquele espaço teve um sucesso que ela considerava muito importante para a região. A anfitriã alegrou-se ao saber que Adam conhecia a história do teatro que ocupou aquela casa antes do jazz chegar. Às vezes, ela achava que ele nunca deixou de existir totalmente. Estamos todos performando e tentando fazer o nosso melhor todos os dias, ela alegou. Com um florete, uma agulha ou uma massa em mãos. Um dia aquele sobrado passou a ouvir artistas recitando-se de forma melódica. O teatro seguiu existindo, graças ao testemunho de quem o prestigiou. O clube assim seguiria também, acreditava.
Para última dona do espaço que ganhou fama no mundo como um dos melhores lugares para se desfrutar um bom e velho jazz, triste seria se aquela construção que sempre teve lugar para todo o tipo de ofício, estivesse condenada. Estava fechando o clube porque queria se aposentar. Não tinha herdeiros, tampouco interesse em ter um. Sua linhagem acabava com ela, brincou com o jornalista. Não ia deixar o negócio para ninguém. Cuidou dele como aprendeu e fez o melhor que pôde com o que tinha. O que viria depois, desejava que fosse bom para quem passava por aquela rua. Para quem vivia ali ou visitava aquela cidade. Não estava surpresa que Adam sabia sobre o teatro antes do clube. A história foi recontada muitas vezes erroneamente, quando alguém tentou escrever um pouco mais além do som que se fazia ali. Improvisaram para incrementar seus textos e confundiram aquele sobrado com mais um negócio que um dia existiu lá dentro. Agradecia a todos pelo amor àquele estabelecimento que sua família manteve por mais tempo do que sonhou. Mas era hora de encerrar. Se pôr para dar lugar a um novo despontar. A dona do clube perguntou se o repórter ainda tinha mais perguntas. E Adam entendeu que aquele era o último encontro. Que não passaria mais horas pensando se a semana seguinte poderia chegar logo. Se levantou e agradeceu o tempo cedido a ele, deixando aquela mulher entre a sombra e a luz que a exibia tão bem. Não flagrou o belo adereço esférico e multi espelhado na sala em lugar algum. O jornalista ainda se conteve a porta e, afirmou, antes de partir, que lhe fazia bem aos ouvidos aquele quarteto tradicional daquela noite. Sem se voltar em direção ao entrevistador, a mulher concedeu um singelo: Bravo!
Adam não parou no bar. Saiu passando em meio aos que ainda esperavam uma chance de entrar. Não sabia se teria sido sua última noite no clube. Se aquela seria a última noite de todo o resto. Aceitar o fim é um ato individual. Assim como cada um naquela casa, diante daquele tablado, testemunhou grandes nomes da música performarem em alto nível. Mas o fim daquele lugar atingiria cada um que um dia conseguiu aproveitá-lo, de forma pessoal. A dona parecia ter bem clarificado com ela mesma que serviu mais do que doses de whisky e promoveu bons shows. Criou memórias, que mesmo experimentadas coletivamente, seguiriam de forma pessoal dentro de cada um. Adam tinha as dele agora. Não era sobre improvisações, virtuosismos. Voltava para casa com as palavras daquela mulher fascinante que apagaria a luz de seu negócio, cedendo espaço para novas histórias. De sua presença intrigante, seus pés libertos e tão à vontade. De seu vestido de veludo e do brilho único que emanava.
A alguns passos do fim da fila que já não era tão longa, o repórter foi surpreendido com uma luz intensa em quadrículos perfeitos lançada mais além de onde estava. Tomava aos poucos toda a rua, a calçada e as fachadas das casas ao longo daquele caminho. Emulava um clima intimista naquele exterior. E dali, o entrevistador ainda conseguia enxergar o clube. Ainda era capaz de sentir aquela presença na sacada. Se encantou ao reconhecer aquele item que ainda não deixara a sala, nas mãos de sua entrevistada, alumbrando o resto da noite.