
por Alex Cabral Silva
O fuso horário era um personagem naquela relação. Não estava tão além nem muito atrás. Era o primo do câmbio. Aquele troço que de repente mudava mais rápido que a vazão da água e que nunca estava a favor daquele casal. Nas chamadas de madrugada, cronometradas, Olivia indagava Jamile com frequência, sobre como era o futuro daqui a duas horas. E não pensavam na conta do telefone enquanto sussurravam novidades. Mas era nas folhas, com suas próprias letras desenhadas, que revelavam melhor seus corações. Relatavam, apaixonadamente, sobre cada segundo que passavam pensando uma na outra. Aquele relacionamento existia muito mais no tempo de deslocamento daquelas palavras carinhosamente colocadas num papel. Às vezes, as saudades vinham explicadas em fitas cassetes. E naquelas trilhas, se aproximavam um pouco mais. Jamile nem sempre abria uma carta recém-recebida no local combinado. Olivia, por vezes, também se sentou no espaço das duas, encarando, ansiosamente, páginas já desdobradas. Escreviam e liam em frente às cortinas d’água. Esse era o combinado.
A partida de Jamile ainda era um ontem diário na rotina de Olivia. Os envelopes mais volumosos denunciavam que fotos novas ganhariam suas cortiças. Mas os retratos só aumentavam a imaginação do que tinha ademais daquele flagrante revelado. Apesar de tudo o que sabiam, se despediam sempre pensando em como estava o mundo da outra longe dali. O próximo encontro era incerto. A data era um plano, um projeto em produção que consideraria a situação de suas contas bancárias e as provas semestrais. O local era indefinido. Talvez no meio do caminho. Quem sabe Olivia finalmente conheceria o sul. De repente Jamile voltaria onde tudo começou. Desde o último abraço apertado, rumaram para suas novas rotinas com o gosto do beijo que deram no aeroporto. O renovariam no próximo desembarque, repetiam a cada nova correspondência.
Jamile não tinha dificuldades em arrumar um lugar para se apoiar e escrever. Nem mesmo o vento, respingos e turistas para todo o lado, lhe roubavam a atenção nos instantes em que contava sua vida a Olivia. Sua escrita era contínua e inabalável. Às vezes se permitia reparar no que estava em volta. Só cabia nela espaço para pensar no quanto queria poder ver seu amor entre os que fotografavam os véus eternos diante daquele mirante. Certa vez avistou um piá incrédulo com o que testemunhava naquela paisagem. Imaginou que aquela deveria ter sido sua expressão quando viu sua namorada pela primeira vez, num lugar parecido com aquele, mas bem longe dali. Ainda escutavam o som da queda d’água quando colocavam a cabeça no travesseiro, todas as noites.
Os carteiros, solidários à ansiedade comum às duas, até gostariam de ter o poder de apressar aquelas saudades declaradas em letras cursivas. Nem sempre os envelopes aguardados chegavam no dia prometido. O último de Olivia foi aberto num rasgo lateral rápido, mas com muito cuidado. Jamile adorava aquele lacre caprichado, vintage e fofo que sempre a emocionava. Mas aquele pedaço de papel, estampando selos de tão longe, instantaneamente drenou sua felicidade. O ruído dos turistas, de súbito também, ficou mais alto. Sentiu-se num lugar seco, raso, um rabisco triste da paisagem que lembrava tanto o lugar do primeiro encontro das duas. As poucas palavras que cruzaram toda aquela distância enxugaram mais do que os seus olhos. Não leu naquele recebido sobre como estavam os estudos e as disciplinas escolhidas para os próximos seis meses. Se sua amada tinha esquecido a moto ligada de novo. Aquele envelope viajou trazendo quase um bilhete para alguém que sempre ganhou diversas folhas preenchidas de histórias que, infelizmente, não estava lá para viver junto a quem escreveu. E isso ressuscitou a lembrança de conversas antes da despedida, a respeito do que nem sempre era possível evitar sentir e pensar. Jamile leu e releu as poucas linhas desdenhando do tempo, até ser advertida por um senhor. Já eram quase 16h e o mirante se preparava para fechar. Voltou acelerada para casa, sabendo que faltava muito tempo até a melhor hora para sacar o telefone e fazer uma chamada. Fracassou antes mesmo do primeiro minuto ideal para diminuir o custo daquela ligação. Deixou um recado com quem atendeu e adiou o sono até onde conseguiu. Adormeceu inquieta com tudo o que crescia dentro de si, depois que abriu o último envelope. Estaria Olivia naquele bar que mencionou, certa vez, junto de alguns que estavam naquelas fotos enviadas, outrora? Aqueles que lhe causavam tanta inveja e, agora, ciúmes. Aqueles que, assim como a remetente, pareciam tão felizes nos retratos em que ela não podia participar, também. Despertou para um dia estranho e incomum. Seguiu com seus afazeres reflexiva ao que disse a namorada antes do último beijo. Sim, a distância é mesmo essa desgraça que sopra à nossa imaginação todo o tipo de insegurança. Eclipsando a razão e interditando a lógica, rememorou enquanto ligava sua moto. Foram alguns dias até Jamile receber um telefonema de Olivia. Surpreendentemente fora da hora em que se chamavam. Suas rotinas juntas, mesmo à distância, pareciam descompassadas, de repente. Não retornou de imediato o recado recebido. Não ligou de volta outras vezes depois. Presumiu que, após aquele bilhete, que não ousaria chamar de carta, seria questionada sobre o clima ou algo assim. E não tinha uma réplica adequada a uma indagação tão trivial vinda de alguém tão essencial em sua vida. Acomodou rápido todo o tipo de hesitação disponível em seu coração. Idealizou um cenário mais adverso, sem nenhuma fala direta da outra parte. Considerou tudo o que seu amor não queria lhe admitir por conta do que sentiu falta naquelas tímidas e preguiçosas últimas palavras encaminhadas. Jamile se entregou rapidamente e por inteiro a sua insegurança. Escreveu, num dia em que a vazão bateu recorde, que o inevitável parecia ter alcançado as duas. Que gostaria de conhecer uma comissária de bordo casada. Saber se existe uma fórmula ou algo do tipo para manutenção de um relacionamento a distância. Apesar de não querer comparar as situações. Em palavras sofridas e explicações confusas, terminou tudo. Do mirante, partiu de imediato para postar, com as mãos trêmulas e os olhos úmidos, aqueles sentimentos. E acenou à distância ao carteiro, fingindo não ansiar receber nada, nos dias seguintes. Mas as semanas foram ligeiras. Seguiu ignorando o telefone e a vontade de ouvir as músicas das fitas que lhe foram gravadas. Se convenceu que a resposta a sua mensagem poderia ser o silêncio. Que as últimas palavras breves vindas pelo correio talvez fossem as últimas de sua namorada. Que ficaria feliz se ela entendesse que não queria, de tão longe, ser alguém no seu caminho. Fingiu ser indiferente a chegada de um novo envelope. Encenou ser forte. Mas a data apressou sua respiração. Foi postada antes da sua. E em nome da história das duas, andou de volta o caminho até o mirante e abriu aquela carta imaginando se Olivia a teria escrito diante de sua Catarata. Leu aflita:
“Minha Jamile… não sabia como contar antes… E por mais que eu tentasse não pensar num dia ulterior… Não existe distância que negue que somos metades de um tudo maravilhoso, eu e você… Não queria viver sozinha na ideia de como vai ser quando finalmente pudermos estar juntas novamente… porque resisto daqui, exclusivamente para esse quando… e sempre temi a possibilidade de me despedir sozinha do idioma que falamos somente entre nós. Esquecê-lo naturalmente. Não conseguiria viver desacompanhada, à distância, imaginando nosso futuro, tão aguardado… Mas entre o que conseguimos e o que gostaríamos, está a realidade imposta, jogando em nossa cara, todos os dias, o que é possível… e não tinha dúvidas que a forma certa era te escrever aqui, diante do véu d’água do lado de cá… te contar que estou chegando.. e que agora vamos andar na sua moto…”
O volume d’água estava baixo naquele dia. Jamile pouco sentia o vento, os pingos. Encarou a paisagem com aquelas folhas umedecidas de uma cachoeira longe dali.