
para Amália
por Alex Cabral Silva
Pela ponte até o foguete, todos tentavam parecer tranquilos. Além de acenos, também foram instruídos a sorrir. O mundo todo viu em câmera lenta aquele momento durar muito mais tempo. Se acomodaram ordenadamente no interior da cápsula, mas dessa vez, não era um ensaio. Tentavam não pensar se toda aquela ação seria mais uma prévia de outro adiamento. Tudo se repetia como o programado, mas nunca foram além da voz que disse que estava tudo ok para partir. Apertados, ombro a ombro, arrumaram espaço para a tensão e a ansiedade. Seus trajes reforçados e altamente tecnológicos, ainda não permitiam ouvir os pensamentos alheios. Ninguém imaginaria que Valentina estava repassando nas memórias, seus ritos pré-palco, dos tempos de balé. Rumaram para cima, apesar de toda a força contrária.
A tripulante mais jovem embarcada naquela missão descobriu cedo uma particularidade. Apesar da compreensão e encorajamento da família, por muitas vezes, se sentiu insegura, com uma revelação precoce. Ainda criança, partilhou aos pais que não conseguia deixar no chão as marcas de seus pés molhados quando corria com os amigos. Aprendeu a estar firme diante do desafio constante a algo tão natural a todo o resto. Se distraía com as folhas e nem sempre tinha medo do vento. Era genuinamente leve nos gestos e nas reações. Encontrou na dança um exercício confortável e de movimentos naturais para si. Se mostrou uma bailarina talentosa, nos tempos em que esteve numa prestigiada companhia, viajando o mundo. E sempre se apresentou com os pensamentos lá no alto ainda indagando dúvidas da infância. Quem vai pegar as estrelas se elas caírem? Resistiu pouco a ideia de deixar os palcos e seguir para o espaço.
Ocasionalmente, Valentina chegou mais cedo e mais rápido a compromissos. Avançou na vida elegante e sem pressa. Chegou antes, se deixando levar, mas sabendo onde queria ir. Sua imunidade à gravidade lhe concedeu um olhar único a tudo em volta, mas nem por isso, o mundo era menos pesado para ela. A maioria não percebia que aquela moça nem sempre estava a tocar os pés no chão. De seus pais, aprendeu que isso não a impediria de nada, a não ser que ela deixasse se convencer do contrário. Não considerou ser astronauta por conta dos filmes. Manteve os pés firmes em terra, por quase toda a vida, para acompanhar os que estavam em volta. Decolou para um estado incomum ao resto da tripulação, mas familiar para si, desde sempre.
A euforia dos colegas começou ainda com os cintos afivelados. Valentina passou todo o percurso olhando pela pequena janela. Viu variações de cores até identificar o que por tanto tempo imaginou lá de baixo. Foi a última a sair quando a Estação que orbitava a Terra e, aguardava sua equipe, se acoplou a cápsula. Chegou entusiasmada com aquela experiência. Observou os outros se ajustando à sua condição natural. Em poucos movimentos, percorreu todos os módulos que formavam aquela construção flutuante. Não usava as barras disponíveis, espalhadas por todo o lado. Não precisava se segurar em lugar algum. Se mantinha firme quando era preciso e se deslocava ágil e graciosa.
Mas a primeira caminhada do lado de fora, não incluiu sua participação, o que a deixou mais do que desapontada. Estava muito bem instruída de todos os protocolos e subiu sem ilusão alguma de seu papel naquela missão. Era uma das mais jovens a deixar o planeta e alcançar uma posição de destaque no programa espacial. Controlou sua ansiedade e adaptou as emoções que administrava, desde pequena, para sustentar-se em terra firme. Acomodou da melhor forma que pôde aquela frustração. Colocou em prática o que fazia para fingir respeitar a gravidade que não a vencia lá embaixo e que, ironicamente, não alcançava ninguém ali. O mundo é cínico até do lado de fora, pensou. Mas sua condição tão específica não era por acaso, já dizia a sua avó. Pensou nela enquanto subia. A tinha em mente todas as vezes em que estava só e distante de qualquer um, na Terra. Especialmente nos momentos em que se permitia acompanhar, bem de perto, as folhas planarem até cair. Imaginava como seria despencar. Por tantas vezes ouviu sua avózinha repetir que ela estava destinada a algo incrível, não importava o que ela escolhesse fazer. Queria que ela tivesse conseguido vê-la dançar. Mas no espaço, estava mais do que convencida de que ela a acompanhava de perto.
Algumas rotações depois, desde que chegou, Valentina seguiu ansiando por uma oportunidade de sair. Escutou junto de todos, em outro idioma, que fora identificado um problema. Acompanhou sem ser chamada a ir lá fora, a resolução daquela intercorrência. Mas no espaço, os imprevistos estão sempre aguardando uma oportunidade de se revelar. E diante do surgimento de mais um, encarou a possibilidade de resignificar a palavra destino. Foi instruída a algo bem específico e revisou suas ordens enquanto terminava de se vestir para encarar a imensidão de estrelas que os cercava.
A escotilha abriu para a bailarina. Valentina saiu andando. Em passos calmos, seguiu sem se ancorar em nenhum ponto, pelo caminho. Foi até os companheiros que necessitavam de assistência e lhes entregou o que era preciso para finalizar o reparo repentino. Regressou de imediato como lhe foi ordenado. Mas no aguardo do acesso de volta, ouviu um novo alerta. Tudo resolveu acontecer no mesmo instante. Um dos que ajudaram naquela demanda externa se soltou do ponto onde trabalhava. Valentina o viu passar enquanto ouvia no rádio compartilhado, todas as vozes tensas diante do que se relatava e do que só ela conseguia enxergar melhor, por conta de sua localização. Acompanhou seu colega se distanciar rapidamente. E apesar de ter pedido permissão para tentar alcançá-lo, ouviu a negativa enquanto já se deslocava em direção a ele. Todas as vozes ficaram mais altas. Especialmente as que vinham da Central de Controle, na Terra. Ordens em tom de reprimenda e indagações de quem não tinha um campo de visão claro do que Valentina fazia, a sufocavam em seu capacete. Determinada, ela limpou seus ouvidos de todo o ruído que tentava a conter. Aceitou que, para ter sucesso naquela tarefa que tomou para si, dentro da missão, não conseguiria acatando ordens. E em total controle de seus movimentos, rumou ligeira ao astronauta que se afastava desgovernado e sem capacidade alguma de sair daquela situação, sozinho. Enquanto seguia obstinada, em direção ao homem à deriva, deu uma olhada para baixo, à sua esquerda. Avistou aquela maravilha azul esférica. Nunca tinha tirado os pés do chão tão alto assim. E naquele palco infinito, performou um fouetté impecável, que apresentou para ninguém mais do que sua querida vózinha. Girou plena e coordenada, a poucos metros do colega que foi surpreendido com sua mão o alcançando. O trouxe de volta de braços dados como num passeio à Estação onde, provavelmente, seria censurada por sua atitude. Mas só estava preocupada em não derrubar nenhuma estrela.