
por Alex Cabral Silva
Antes do ônibus deixar o último ponto, Júlio espiou a hora. Os passageiros que já estavam de pé formavam uma pequena fila no corredor, denunciando que também encerrariam a viagem na próxima parada. Por mais que repetisse na cabeça que se levantaria mais perto de seu destino, o ansioso rapaz se pôs de pé e acompanhou o movimento dos outros. Desembarcou onde lhe foi indicado depois de uma senhora que levava uma bolsa de plástico, dessas que guardam exames, seguida de um garoto com uma mochila azul que ajudou uma moça que vinha logo atrás, a descer. Seguiram seus caminhos, os quatro. O de Júlio era a Rua Pacheco Leão.
Enquanto cantarolava a música da vez, Bianca escolhia, vagarosamente, o que usar. Passeava os olhos nas opções estendidas na cama. Já pisava com o par de tênis selecionado e customizado por seu cachorro. Só começou a se maquiar depois de guardar os vestidos preteridos. Escolheu um especial para aquele dia. Abriu a janela que raramente fechava e contemplou aquela paisagem que as cortinas não costumavam cobrir, também. Um pouco abaixo dos diferentes tons de verde que tinha como vista diária, flagrou Júlio, na calçada, do outro lado da rua. Revirou os olhos e foi buscar brincos que se espalhavam por cima da cômoda. Dedicou alguns minutos àquela decisão. Decidiu guardar na volta os que não combinaram com o figurino carinhosamente pensado para aquele encontro. Recolheu precariamente sua maquiagem e outros acessórios nas respectivas caixas e, pronta, observou Júlio parecer tentar adiantar o tempo, com suas passadas de um lado para o outro, lá fora. Escutou a voz da tia, mas não entendeu palavra alguma, mesmo depois de desligar o som. Lançou um beijo para o colega de quarto de quatro patas que contemplava outros sapatos, num canto. Buscou sua bolsa e partiu sem o relógio de pulso, propositalmente guardado numa gaveta fechada na mesinha ao lado da cama. Anunciou em voz alta sua saída sem receber nenhuma resposta de volta de quem morava com ela.
Antes de fechar o portão do prédio, Bianca notou Júlio atravessando, displicentemente, a rua. Repreendeu o amigo por não prestar atenção nos carros ao lhe dar um abraço apertado. Repetiram a palavra saudade, quase ao mesmo tempo. Ela agradeceu os elogios comuns ao bairro, a todo aquele verde e o quanto parecia ser possível respirar muito melhor ali. E ele sorriu ao ver o vestido que ela usava. Subiram a rua, cruzando com alguns jornalistas e outras personalidades televisivas flagradas com frequência, na região. Mas o rapaz não desviou sua atenção da moça que não encontrava há tempos. Se acomodaram num Café agradável a poucos metros do portão da casa dela. Ambos pediram um macchiato.
De imediato, Júlio prestou condolências pelo tio de Bianca. Questionaram-se por que se viam tão pouco com somente alguns bairros entre os dois. Relembraram o último encontro e ela ficou feliz em ver que ele estava distante da versão preocupante de alguns anos atrás. Contaram sobre os filmes e séries que viram nas últimas semanas. O rapaz foi consultado e cobrado do que tinha de bom para assistir entre tantas coisas lançadas. Riram do buraco reparado no all star dela. E ele até poetizou aquele detalhe divagando sobre a possível história daquele calçado, naquelas condições. Mas foi esclarecido com uma versão sintetizada sobre uma mordida de um companheiro fofo e travesso, que ele ainda não conhecia. Tudo o que tinham a colocar em dia, não caberia com todo o tempo do mundo disponível. Partilharam novidades mais recentes, no início, mas nada muito revelador. Ficavam sem se ver, mas nunca sem saber muito um do outro. Aquela era uma relação presencial, aromatizada pelo café que sempre os acompanhava em qualquer lugar. Todo novo encontro carregava o clima de novidade e intimidade que entusiasmava bastante, os dois. E tudo ainda parecia interessante, como na noite em que se conheceram. Não demorou muito para que Bianca analisasse alguma idiossincrasia dele. E como de costume, Júlio defendeu que não chegou tão adiantado assim, ao encontro marcado.
Ocasionalmente, o rapaz conseguia se passar por alguém que entendia de horóscopo, até o outro lado da conversa se aprofundar no assunto. Dissertava sobre sua ansiedade com detalhes e explicava esse costume até para os mais próximos. Achava que era preciso esclarecer sua pressa em tudo o que fazia. Sua pontualidade era valorizada, mas nunca passava alheia a sua presença com tanta antecedência em compromissos marcados. Era comum ouvir daquela amiga, que isso era por conta de seu signo. Bianca, por vezes, justificou ascendentes e detalhou características que validavam certos hábitos do amigo. Tudo encontrava razão, segundo ela, por conta dele assoprar velas no último dia do terceiro mês do ano. Confessou que tinha uma teoria sobre até onde aquela ansiedade toda o levaria e teve sua explanação adiada, por um atendente que lhes indagou se gostariam de fazer mais algum pedido. O olhar de Júlio ao relógio do celular a fez pedir a conta. Ele até tentou disfarçar ter buscado saber as horas e seguiu elogiando onde a amiga morava. O agradava muito aquele canto da cidade que nunca avançou além de onde estavam. E isso foi o suficiente para ela, subitamente, oferecer um passeio pelo lugar onde cresceu.
Seguiram em passos morosos pela rua da moça que depois de uma curva, passou a revelar a Júlio, novidades sobre o passado dela. Bianca apontou como ia para a escola, tudo o que já existira naquelas casas e onde comeriam o melhor cheesecake do mundo, que ficou combinado para a próxima visita. Aproveitaram aquele andejar intencionalmente lento tentando esticar os minutos e prolongar aquela tarde, ao máximo. Cederam passagem aos carros e fluíram pelo meio da rua, por quase todo o percurso. O tempo todo, uma história era revelada sobre um ponto específico, uma construção antiga. Bianca tinha tanto a contar sobre sua vida naquele bairro e por aqueles caminhos. E em meio aos seus relatos, seguia prometendo sobre o que ainda estava por vir e o que ela sabia que ele iria adorar.
Foram além de onde ele estava familiarizado, em passadas que os fizeram subir, algumas vezes. Júlio se encantava, a cada nova esquina, com o entusiasmo dela, que era muito melhor desfrutar, pessoalmente. Ombro a ombro, avançaram juntos, por vezes, contando o que já sabiam um do outro entre as novidades que ainda encontravam lugar naquela amizade que não começara ontem. O silêncio não ousou tentar segui-los. A única vez que ensaiou participar, foi oprimido pelo rapaz que questionou a amiga sobre a teoria dela quanto a sua ansiedade. Mas Bianca parou a caminhada repentinamente e o segurou pela mão, anunciando, em seguida, que haviam chegado.
A pausa dramática que não revelou os pensamentos da moça a respeito da pressa de Júlio para quase tudo, aparentemente, foi para anunciar que estavam num lugar impossível de adjetivar, para ela. Eram tantas lembranças, memórias compartilhadas, que ele nem mesmo buscou reparar os nomes nas placas em azul e branco, os CEPs que passaram. Olhando fixamente para frente, Bianca relatou que ali estava seu canto predileto em todo o bairro. De longe, se notava que aquele trecho sem saída, diante dos dois, parecia terminar com mais um espaço arborizado e encantador. Mas a moradora de quase toda a vida ali, alertou o visitante que aquela rua não tinha fim. Entraram numa vila guardada, ao final daquela passagem estreita, num espaço em que a arte se sentia de longe. O que mais seria possível se fazer ali, pensou Júlio, de imediato. Preciosidades em tela, cerâmica, prata nasciam nos ateliers perfumados por toda aquela flora vizinha. Contemplaram recompensados aquele lugar e, dessa vez, o silêncio lhes fez companhia. Seguiram pensativos, depois daquele momento, muitos passos além da vila.
Conforme se aproximavam da rua principal onde os ônibus buscavam e deixavam, Júlio indagou sobre quadras nas cercanias ao reparar o vai e vem de raquetes nas mãos dos que passavam. Bianca até se ofereceu para mostrar uma não tão longe de onde estavam. Partilhou o lugar de algumas aulas quando adolescente e surpreendeu o amigo com esse capítulo de sua biografia. O ensinou sobre o posicionamento correto para diversos golpes no esporte que ele apreciava tanto e nunca teve coragem de começar a jogar. Bianca riu da indignação e da cobrança por nunca ter dividido esse talento com ele. E destacou que era bom saber, que ainda surpreendiam um ao outro. Júlio brincou que a culpa estava nas perguntas sobre filmes o tempo todo, eclipsando as chances de qualquer mudança de pauta. A moça o lembrou que não estavam tão distantes da Academia de Cinema. Mas uma visita por lá, ficaria também, para uma próxima vez.
Cada novo rumo tomado, revelava lugares que ambos planejavam voltar, quando possível. Bianca explicou que por vezes considerou combinar de se encontrarem em tantos desses espaços e que a alegrava muito atestar a satisfação dele naquele passeio. Mas lhe confortava mais ainda perceber que os dias de imersão e isolamento do amigo ficaram num passado distante, curado e expurgado. E o lembrou que, foi ele mesmo que a ensinou, certa vez, que namoros acabam. Aquela era a versão do rapaz que ela conheceu e que mais combinava com ele. Feliz e presente, na vida de todos que o queriam tão bem.
Perto de uma esquina onde as buzinas anunciavam os limites para aquele paraíso revelado a Júlio, ele perguntou sobre como estava a tia da amiga. Entendeu que ela foi morar com a sobrinha há pouco mais de um ano e externou seu contentamento ao saber que ela estava melhor. Bianca valorizava aquela companhia diária, agora. Partilhavam, as duas, histórias de sua infância e causos divertidos do tio querido, que partiu tão cedo e que lhe deixou, sob seus cuidados, a guarda do companheiro de quatro patas, que a fazia pensar em comprar uma sapateira. Divertiram-se com a explicação a respeito da convivência das duas ser fácil, por conta da irmã da mãe da amiga, ser de Aquário.
O encontro terminou num cruzamento. Adiaram a entrada em lugares prometidos para a próxima visita, pela talentosa cicerone, porque a noite começaria mais cedo para os dois. O surpreendente passeio daquela tarde se encerrou com um abraço apertado e as falas de costume, com promessas de outros a se marcar. Consideraram, talvez, antes do aniversário dela, que Júlio aprendeu que na opinião da amiga, é quando o mês de abril realmente acaba, um dia antes do vigésimo dia. Quando o ciclo dos aniversários dos mais legais, se encerra. Celebrariam também, mais uma vez, a data em que se apresentaram um ao outro, quando ele foi de penetra e chegou tão adiantado, que conheceu a anfitriã da festa ainda na rua, antes dos convidados que o invitaram, chegarem.
Pronto para cruzar a via que fazia esquina com a Pacheco Leão, Júlio a lembrou sobre a teoria não revelada, a respeito de sua ansiedade. Bianca sorriu e se aproximou do rapaz. Disse a ele que acreditava que, toda a pressa do mundo um dia, o levaria a encontrar com ele mesmo voltando de onde estava indo. Só que, no caso deles dois, estava tudo bem se ele se atrasasse. Ela não pediria o macchiato dela, antes dele chegar. A moça ainda afirmou que nem tudo estava perdido, de repente. Riram antes dela justificar que notou ele olhando somente uma vez, a hora, no telefone. Em sinal de agradecimento a plateia de uma pessoa só, Júlio destacou que também não perguntou as horas a ela e isso merecia registro na ata daquele encontro. Mais um abraço selou aquele momento. Bianca o acompanhou com os olhos até ele chegar ao ponto e seguiu por sua rua, em direção a sua casa.
No aguardo do ônibus que o levaria, Júlio sacou o telefone e buscou a última mensagem com a moradora mais querida daquele novo bairro predileto. Digitou algumas palavras há tempo de guardar o aparelho no bolso tão logo o coletivo parou em sua frente. Se pôs a subir com a teoria da amiga na cabeça. Mas antes de ingressar, botou reparo nos que desciam ali, exatamente onde ele desembarcou, ao chegar. Reparou numa senhora com uma bolsa plástica em uma das mãos. Seguida de um garoto com uma mochila que ajudou uma moça que precisava de auxílio para descer. Entrou antes de ver o rapaz que saiu por último.
Bianca deixou bater a porta, logo depois de entrar em casa. Escutou seu nome e se antecipou a pedir desculpas, caso a tia estivesse tirando um cochilo. Adentrou o quarto, surpreendentemente escurecido e tirou o vestido, logo em seguida. O lançou sobre a cama, junto da bolsa e ligou a caixa de som. Cantarolou a música de mais cedo e não ganhou muita atenção de seu travesso e fofo colega no chão, com a língua pra fora, ainda atento aos calçados mastigáveis, no canto do cômodo. Escutou a voz de sua tia, novamente, apesar do volume. Abaixou o som e a ouviu perguntar se ela não iria mais sair. Falou alto de volta que já havia regressado. A tia aquariana disse que não sabia que ela tinha remarcado o tão aguardado encontro para mais cedo. Bianca revirou os olhos e sorriu brevemente. Sua expressão de graça àquela confusão temporal mudou quando notou que seu vestido estava repousado em cima de todas as roupas que ela guardou antes de sair. Na cômoda, percebeu suas joias, maquiagem e outros acessórios ainda espalhados no entorno de suas respectivas caixas. Mas a gaveta aberta, na mesinha ao lado da cama, lhe fez cair o queixo. Buscou na bolsa seu telefone que acusava uma mensagem recebida. E leu do amigo que vê-la no vestido do dia em que se conheceram, deixava aquela noite fantástica mais eterna ainda. Bianca largou o aparelho na cama e foi até a janela que não se recordava de ter fechado junto à cortina, antes de sair. Arregalou os olhos ao mirar o outro lado da calçada. No pulso, viu a hora marcada do tão esperado encontro chegar.