
por Alex Cabral Silva
O tempo de casa para o trabalho era uma eternidade mal aproveitada. Já chegava cansado. Nem sempre era possível ler um livro. Pelo caminho, ouvia os sons que vazavam dos fones alheios. Alguns não escutavam música no modo particular. Em cada vagão, expressões identificáveis de quem vinha de longe para dias tão longos quanto aquele percurso. Na repartição, não encontrava por parte de quem lhe cabia se reportar, empatia ou algo similar, pelo desgaste diário daquele deslocamento. Chefe algum, por toda a sua carreira, acenou compreender que os roubos de cabos e que o estado precário das composições que o traziam, eram parte do motivo que o atrasava quase todos os dias. Olhou para baixo muitas vezes, ao lhe ser recomendado acordar mais cedo. Foram muitos patrões, que não se submeteram ao que ele passou para conseguir aquele emprego. Tipos despreparados, indicados por outros igualmente inaptos para delegar e acumular tanta responsabilidade. Personagens que não estudaram o que ele estudou e que o avaliavam sem método, critério e preparo algum. Arcava com os prejuízos de gestões incompetentes e tentava diminuir os danos a população que, todos os dias, esperava com senhas em mãos, sua vez de tentar resolver seus problemas. Estava subordinado, há tempos, a todo o tipo de absurdo. A chefia de seu departamento, era mais um símbolo indigesto do poder nas mãos erradas. Sentia que aquele convívio o acinzentou. Era gentil mas contido naquele ambiente em que não conseguia demonstrar muitas emoções. Acreditava estar pronto a se desfazer com o vento, a qualquer hora, sentado à mesa, se abrissem a janela.
O retorno para o descanso era igualmente demorado. Pelo trajeto, tinha mais chances, na volta, de apreciar o rastro cultural deixado nos bairros que formavam o caminho diário, repleto de símbolos e histórias que o educaram sobre onde nasceu e cresceu. Cruzava aquela parte da cidade onde era possível encontrar, até hoje, gerações de músicos que faziam seus instrumentos chorarem. Em cada estação, identificava um episódio de sua biografia, onde a alegria se impunha, mesmo em momentos difíceis, numa área que parecia ser lembrada, especialmente, em uma determinada época do ano. Buscou lutar para melhorar a qualidade de vida de quem tomava o trem como ele todos os dias, há tanto tempo. Mas no centro da cidade, batalhava com a pouca influência que tinha em mãos, num espaço gerido por quem não dava a mínima para a história de seus vizinhos.
Desde pequeno, se descobriu numa época do ano em que o resto da cidade e o mundo voltava os seus olhos para a alma de uma festa libertária. Quase cinquenta dias antes da páscoa, tudo mudava. Sentia que existia de outra forma naquele período. O subúrbio transbordava e se exibia além de seus limites mostrando o seu papel fundamental no coração daquela cidade. Passou por diferentes fases, por tantos fevereiros. Se hipnotizou pelo cavaquinho, quando criança. Se realizou no pandeiro pouco tempo depois. E já na adolescência, entendeu que o seu corpo era a melhor forma de externar e performar como aquele som definia sua vida toda até ali. O samba ditava os seus passos, sua pulsação e apontava o horizonte. Era um ritmo diário em seu coração.
Das rodas, para as quadras chegando até a principal avenida do bairro, dançou a história de suas esquinas e a exaltação a heróis que musicaram dramas, amores e revoluções de outras épocas. Aos poucos, conquistou seu segundo mestrado. Um título que entendia ter o mesmo valor do que o que recebeu na academia. Aprendeu a história de seu lar e a reproduziu nos passos que encantavam a todos. Circundava a majestosa companheira que exibia numa elegância singular, o estandarte de azul inigualável. Aquela cor, sua paixão desde criança, iluminava além de onde ele conseguia imaginar. Aquela tonalidade o equilibrava antes e depois de desfilar junto de sua enorme família, que compartilhava com ele o amor por uma escola que o ensinou o bonito da vida.
E aos fins de semana, quando sozinho, aquele quase pandeirista rufava os segundos para realizar um sonho conquistado há exatos doze meses. Pela avenida em que ajudou sua amada agremiação a poetizar enredos com seus passos, deixou transparecer emoções que a rotina na repartição oprimia a maior parte do ano. Transbordou-se em lágrimas e suor na exaltação de um trabalho irrefutável e, de mãos dadas com a estimada parceira, viram juntos o escudo mais famoso de seu bairro alcançar a oportunidade de apresentar o talento de toda uma comunidade, na passarela mais famosa do mundo. Aquele funcionário público, de formação impecável e tão desconsiderado pela gerência do departamento em que atuava, não dividia, nem mesmo com os colegas, a felicidade de poder ajudar a exibir o estandarte de sua querida escola no maior espetáculo da Terra. Vivia aquela ansiedade sozinho, olhando pela janela, ao passar das estações. E ambicionava perdurar a catarse interna que o consumia naquela época do ano. Temia que aquele sentimento se esvaísse no meio da semana seguinte, como tantas vezes antes.
O grito de guerra do grande dia não o arrepiou. Nem mesmo lhe tomou uma furtiva lágrima. Estava sereno, atento e pronto para contar a história nos pés. Aquela passarela famosa exibia um horizonte inédito à sua vista, mas ele chegaria ao fim, como sempre, sambando. Exibiu o talento aprimorado por toda a vida. Aquele azul que via especialmente na quadra, nas fantasias e no estandarte lhe tomou os olhos como na primeira vez. A pista se iluminou naquele tom e numa paleta única, fez o caminho até o final. E de súbito, ele se despiu do anonimato. Não era mais um no trem nem no trabalho. Era reconhecível, de repente. Seu nome foi descoberto, falado, gritado e escrito. Foi homenageado, condecorado pela imprensa. Fez o que há tanto tempo já fazia com a mesma maestria de sempre. Cortejou sua garbosa parceira e junto dela, exaltou o estandarte que agora se exibia numa nova avenida que amplificava a apoteose ao fim. Desfilaram para mais gente do mesmo jeito que sempre fizeram e com mais amor ainda pela escola. Graciosamente, encantaram a cada bossa. Foi assediado pelo público arrebatado com a performance e deu entrevistas em espaços provisórios montados ao fim da apresentação. Distribuiu uma simpatia genuína. Todos queriam fotos e, poucos ali, conheciam, realmente, sua história e a de seus companheiros. Dos primeiros passos, das primeiras batidas. Foi abordado por seu chefe e pelo patrão dele, o governador. Fez selfies com um tipo que o via todos os dias e que não o reconheceu. Foi bajulado e como sempre explorado por quem não dava valor ao seu empenho e dedicação no resto do ano. Posou com muitos que clamaram por sua atenção antes de encarar seu reflexo no vagão de sempre, já parcialmente descaracterizado da noite emblemática. Pensou se aquele momento seria como muita coisa na vida que diz que acaba só para voltar mais tarde.
No dia seguinte, a noite passada ainda não tinha terminado. Seguiu escutando o som dos que vibraram com sua agremiação debutando na maior pista de sua história, junto da voz grave que anunciava as notas pelo trabalho feito. Abraçou sua companheira que ainda segurava o estandarte e ouviram a nota dez se repetir quatro vezes por conta de suas atuações. Mas a tabela classificativa exibiu um futuro já familiar para si e para toda a comunidade que se dedicou muito para aquele capítulo inédito. Voltariam para onde sempre estiveram, junto do amor que sempre nutriram pela escola. Apresentariam novos enredos na avenida do bairro com os recursos que dispunham, dentro da realidade financeira que nunca os impediu de cantar histórias apaixonantes, mas que não estava a altura de se manter entre as outras agremiações, que seguiriam na passarela mais famosa. A caminho de casa, desejou um amanhã surpreendente.
Tentou perdurar aquela catarse anual em meio ao festejo que lutava para não terminar. Tomou o trem de volta à rotina, misturado a rostos pintados. A camisa do dia tentava emular o tom único que identificava sua amada escola, orgulhoso de tudo o que fizeram e de até onde chegaram. Regressou ao trabalho, a invisibilidade diária, o desdém da chefia, a insalubridade e a incompetência de gestores que nem sabiam o seu nome e ainda seguiriam folgando pelos próximos dias. Acreditou voltar a se passar despercebido ao fim. Mas foi notado por um folião atento que viu nele o reflexo daquele azul que ele ostentava com tanto orgulho. Foi tomado por uma emoção que só conhecia na avenida, em passos elegantes, na cadência da bateria que o pulsava antes, durante e depois. Foi reverenciado por um rapaz que se acusou um súdito daquele talento posto ali, discreto, rumo à labuta. Um gesto seguido de aplausos de todo o vagão naquela quarta-feira ventosa, lá fora. Desembarcou pontual, aclamado e notado por anônimos para mais um dia longo e atravessou a rua sem se desfazer em cinzas.