
Essa semana tive a honra de conversar com a curadora de arte Denise Mattar, que realiza um brilhante trabalho na mostra
que foi inaugurada ontem, no Centro Cultural Correios, no centro do Rio. Nosso bate-papo foi um passeio pela história do centenário de Darel Valença Lins. Confira!
JP – Você poderia comentar sobre o projeto curatorial da exposição Darel – 100 Anos de um Artista Contemporâneo?
A exposição no Centro Cultural Correios do Rio de Janeiro celebra o centenário de Darel Valença Lins, que, até os últimos anos de vida, manteve-se lúcido, ativo e apaixonadamente criativo – deixando um potente legado para a arte brasileira no século XX. O artista é considerado o mais importante litógrafo do Brasil, e, no cenário atual, em que a gravura é, muitas vezes, relegada à condição de “arte menor” — preconceito gerado não por sua qualidade, mas pelas distorções do mercado — Darel ergue-se como símbolo de uma arte acessível, democrática e profundamente sofisticada. Em 2005, fiz uma longa entrevista com ele, que resumiu sua trajetória com uma citação poética: “Um pássaro não canta para ouvir uma resposta, ele canta porque tem uma canção”. Essa frase define a essência de sua criação.
JP – Darel se insere em qual geração de artistas brasileiros?
Darel nasceu em 1924 na zona da mata pernambucana, e, revelou tão cedo seu talento, que, aos treze anos, começou a trabalhar como aprendiz de desenhista técnico na Usina Catende. Desde a adolescência, compreendeu que a arte era, para ele, um meio de expressão imperioso, e ainda muito jovem mudou-se para o Recife, tornando-se funcionário do Departamento Nacional de Obras e Saneamento-DNOS. Perseguindo seu sonho, em 1946, pediu uma transferência para o Rio de Janeiro. Dois anos depois abandonou o emprego público para fazer o que queria – ser artista – e nunca mais parou…Sua inserção no circuito de arte tem início no final dos anos 1940, e segue até seu falecimento.

JP – Quais são as questões que a arte produzida por Darel nos apresenta?
A vivência da juventude de Darel na Usina Catende, junto a um regime praticamente escravocrata impregnaria toda sua futura obra de uma dimensão trágica – que é sua força. Com o prêmio de viagem do SNBA, recebido em1957 , Darel viveu por dois anos na Europa, um contato que revelou-se angustiante, pois ele percebeu que todas as cidades se equivalem, na confusão do traçado urbano e no labirinto de informações – um excesso que gera, paradoxalmente, angústia e uma profunda sensação de solidão. Na volta ao Brasil, criou as Cidades Inventadas, um tema recorrente, que ele desenvolveria em gravura, litografia e pintura. Entre 1967 e 1973, a obra de Darel espelha a Guerra Fria, e ele capta a perplexidade de um mundo dividido entre o progresso e o apocalipse, ecoando os gritos das ruas de 1968. O fantasma do holocausto nuclear e a corrida espacial, permeiam sua produção, na qual anjos e engrenagens surgem como figuras ambíguas: ora salvadoras, ora ameaçadoras. Na segunda metade dos anos 1970, uma crise criativa impulsionou Darel a novos caminhos. Aproximou-se de um grupo de jovens semimarginais da Baixada Fluminense, e se deixou fascinar por sua realidade intensa. Mas seria nos anos 1980 que Darel se reinventaria mais radicalmente, mergulhando na figura humana — sobretudo a feminina. As mulheres de Darel são mistério e desejo, beleza e dor. Prostitutas, figuras do submundo urbano, heroínas anônimas cujos corpos se impõem pela poesia do traço. Em ambientes velados, entre lençóis e penumbras, essas figuras ganham contorno e alma. São mulheres reais, plenas de sensualidade, mas com uma pitada de tristeza e nostalgia. Nos anos 1990, Darel incorpora imagens de revistas e jornais a composições híbridas que questionam os caminhos da nossa sociedade, e, nos anos 2000, surpreende novamente pintando flores imensas, carregadas de cor e sensualidade.
JP – Quais são as características do fazer artístico de Darel?
Darel fez desenho, gravura em metal, óleo, guache e pastel. Foi pioneiro no uso artístico da litografia, tornando-se o mais exímio litógrafo do Brasil, e criou linguagens inovadoras ao utilizar simultaneamente várias dessas técnicas. A partir dos anos 1980 passou realizar fotomontagens associando colagem, pastel, guache e desenho. Em meados dos anos 2000, além das pinturas em grandes dimensões, também fez experiências com videoarte. Sua obra múltipla percorre todos esses caminhos intensamente, atravessando décadas com coerência e reinvenção.
JP – Como está montada a exposição?
A exposição reúne 95 obras e apresenta um panorama da obra de Darel até os anos 1990. Estão representadas as suas gravuras iniciais, inclusive “Um ciclista”, a litografia com a qual ele recebeu o prêmio de viagem ao exterior. Um grande conjunto apresenta as Cidades Inventadas, da litografia à pintura, uma fase amplamente reconhecida pela crítica e pelo público, assim como a série Anjos e Máquinas. Tem lugar especial na exposição a fase dedicada ao grupo de jovens semimarginais, quando os desenhos de Darel tornaram-se livres, vibrantes, cheios de cor e movimento, oscilando entre o traço nervoso, que captura o instante, e momentos densos, quase dramáticos, que revelam, com lirismo e verdade, a fragilidade desses jovens. A fase das mulheres será apresentada na sala Darel para maiores. Há uma indisfarçável atmosfera erótica, nessa produção sobre a qual Darel dizia: “No final da vida, Cézanne pintava maçãs. Morandi amava as garrafas, hoje, pinto belas mulheres, belas bundas”. Trazemos também a fase das colagens que é inédita, na qual Darel toca uma dimensão ainda pouco explorada pela crítica: a da memória cultural compartilhada. A fase das flores é apenas apontada na exposição, mas também será apresentado o minidocumentário “Darel e Ralkólnivov” de Allan Ribeiro (14 minutos), no qual o artista realiza um desenho filosofando sobre o personagem de “Crime e castigo” de Dostoiévski. Durante o período expositivo, que vai até 30 de agosto, será apresentado, do mesmo diretor, o documentário “Mais do que possa me reconhecer”, premiado no 18º Mostra de Cinema de Tiradentes.
JP – Qual é o lugar que Darel ocupa na produção artística brasileira?
A trajetória de Darel Valença Lins é marcada por encontros decisivos com artistas que, como ele, moldaram a paisagem da arte brasileira. Conviveu com nomes como Goeldi, Lívio Abramo, João Cabral de Melo Neto, Iberê Camargo, Portinari, Di Cavalcanti, Mário Cravo Jr., Djanira e, na Europa, Morandi — este último, talvez, o que mais tenha reverberado em sua busca pela essência na simplicidade.Sua obra foi objeto de atenção de grandes críticos e escritores. Clarice Lispector, Vinicius de Moraes, Olívio Tavares de Araújo, Mário Pedrosa, Frederico Morais, Casimiro Xavier de Mendonça, entre outros, escreveram sobre ele com admiração e respeito. Suas palavras são testemunhos da força estética e ética de um artista que se manteve íntegro frente aos modismos e ao mercado.
JP – Como Darel define a arte?
Darel não cantava para ser ouvido, mas porque tinha uma canção. E sua canção, feita de sombras e luz, de mulheres e cidades, de flores e colagens, ecoa como um canto firme gravado na história da arte brasileira.
JP – Quais são os seus projetos futuros?
No dia 16 de julho, agora, inauguro, no Museu da Fotografia de Fortaleza uma exposição que reúne 23 looks de Lino Villaventura e um conjunto de fotografias captadas pelas lentes de: Bob Wolfenson, Cecilia São Thiago, César Dutra, Cris Vidal, Debby Gram, Fernanda Calfat, Gentil Barreira, Hick Duarte, Miro, Patricia Devoraes, Rogério Cavalcanti e Tripolli. Vai ser maravilhosa! E em agosto, na Caixa Cultural de Brasília, apresento os 100 anos do, também pernambucano, Reynaldo Fonseca.