
por Alex Cabral Silva
Já não bastasse as recomendações não solicitadas, organizar uma mudança como aquela era absurdamente desgastante. Quem é que sabe o tamanho da mala que o outro deve levar? Quem é que sabe o quanto da vida cabe naquele pedaço de fibra com um fecho frágil? Entre roupas íntimas e calçados supostamente adequados para a região, Cindy tinha expectativas maiores do que o que caberia em sua bagagem. Decidiu levar de sua vida o que valia a pena mudar de lugar. Não cedeu espaço para certas memórias e já havia se desfeito de algumas, assim que resolveu partir. Sempre esteve ciente que as lembranças não estão nas coisas. Mas arrumou uma maneira de despejar algumas de dentro de si.
Pela sala não sobraram muitos móveis. Alguns já estavam lá quando chegou. Foram seus tanto quanto dos que ainda estavam por habitar aquele imóvel imenso que hospedou sonhos diversos daquela inquilina, agora de partida. Por mais difícil que fosse, tentou não se apegar a detalhes do que experimentou naquele espaço. Tampouco se dedicou a se educar o mínimo sobre para onde estava indo. Deu de ombros também, aos que acusavam o que deveria ser providenciado para aquele recomeço, decidido de forma repentina e, de certa maneira, afoita, para os mais próximos.
Cindy resolveu ir embora. Não prestou contas com porquês. Declarou, pelo menos, por consideração, onde e quando. Até mesmo o como, alguns não sabiam. Muitas versões para a sua partida, foram especuladas em diversas despedidas que anteciparam a iminente data de dizer tchau. Adeus era demasiadamente dramático. Nos dias de hoje todo mundo se acha a qualquer distância. Ainda tinha idade para sumir no mundo, acreditava, por mais difícil que fosse, conseguir desaparecer. E essa nem era sua intenção. Só não queria levar ninguém junto. Das coisas que pensava em fazer por conta de onde escolheu ir e da distância que estaria dos que amava, pensou em voltar a escrever cartas. Há décadas não redigia uma. Talvez chegassem mais rápido as cartas nos dias de hoje.
As quatro malas prontas não estavam pesadas. As olhando a distância, entre três caixas que também embarcariam, divagou para uma taça vazia o simbolismo de partir leve, carregando somente o que entendeu merecer seguir com ela. A garrafa de vinho descoberta no armário, por acaso, seguiu fechada porque o abridor já estava empacotado. Pelo corredor imenso, admirou os quartos que pouco entrou e que também não serviram de porto para os amigos que passavam de repente. Se espalhavam, as visitas, pelos sofás da sala imensa e alguns pernoitavam até no pé de sua cama de rainha, uma herança dos antigos moradores. Teorizava com alguns sobre quem viveu lá antes e quantos acordaram e foram dormir naquela habitação guardada numa construção icônica, na região central da cidade. Aquele imóvel era grande e suficiente para acolher sonhos diversos. Teve muitos ali, na maior parte do tempo, no quarto de escrever.
Apoiada na escrivaninha onde tomou decisões importantes em pensamento e por escrito, Cindy se permitiu escutar, uma última vez, o trânsito lá fora. Num imenso mapa mundi, impecavelmente desenhado num papel antigo, observou seu destino marcado por um dardo. O acertou num golpe único e sem reavaliar o acaso atingido por um movimento inédito ao seu braço. Prometeu cobrir a marca na parede por conta daquele lançamento, mas iria partir sem cumprir com sua palavra. Preencheu pouco aquele aposento. Sempre se sentiu em perfeita harmonia com os móveis mais velhos. Acomodou-se e adequou muito bem tudo o que levou para aquela casa. Queria poder levar alguns itens de antes de sua estadia ali, ao sair. Mas não destrataria aquela residência se apossando do que já estava lá há tanto tempo. Tinha um carinho especial por aquele canto com o mundo enquadrado na parede, porque ali pensava mais livre e com o coração desacelerado. Circulou por outros cômodos sem cruzar com qualquer sensação de estranhamento naquele lugar. Cindy ainda se sentia muito em casa, naquele lar já desconfigurado e sem muitos resquícios de sua presença como moradora. Sentou em alguns cantos e admirou aquele apartamento pela última vez. Andou e deslizou com suas meias pelo mesmo caminho naquela madrugada e terminou no quarto de escrever, toda vez que se colocou de pé.
A escolha de seu destino, repetia a si mesma, não era aleatória. Era o lugar ideal. Ficava no meio do caminho para voltar ou seguir além. Estaria num ponto estratégico, disse ao ex-namorado, antes de lhe contar que o amava, que estava de partida e que queria terminar a relação, nessa mesma ordem. Escolheu sua nova casa baseada em critérios fundamentais e inegociáveis. Considerou o que era essencial para si porque também queria tentar ser mais feliz, como parecem os outros, de vez em quando. Não era um lugar logo ali, mas pelo menos não se sentiria tão apartada dos que entendia serem necessários em sua vida. Era mais perto que a China e mais longe que a Argentina. Estaria distante o suficiente para tentar novidades.
As horas antes do embarque, foram de saudades antecipadas. Pensou em violar uma das caixas e garantir a última taça de vinho, honrando a louça remanescente que sobrou nos armários quase vazios e que ocultava uma garrafa há tempos adiada. Esse foi um presságio para um brinde que Cindy resolveu fazer sozinha. Não conseguiria dormir naquela madrugada, sabia. Mas a garrafa seguiria selada, por hora. Reconheceu um rolo de papel higiênico alocado erroneamente entre outros itens que parecia ter guardado displicentemente numa das embalagens que profanou sem sucesso. De fato, o banheiro já estava desprovido de seus insumos mais básicos. E sentada num ambiente azulejado, de outra época, pensou alto sobre sua partida aproveitando a acústica impecável que existia só ali. Não selou a caixa aberta de volta porque acreditava saber onde estava a fita adesiva.
Não deu ouvidos a maioria queixosa a sua mudança. Ignorou tentativas de análises a essa decisão de partir, da mesma forma que desdenhou de aconselhamentos da confraria de personal organizers, graduados por realitys da TV. Mas uma coisa concordava com todos que protestavam com o seu êxodo. Um novo lugar não lhe garantiria mudanças. Pelo menos, as que entendia necessárias. Tais pensamentos iluminavam as dúvidas que sempre dançaram no entorno do discurso decidido que Cindy sempre fez aos amigos. Não permitia expor qualquer sinal de autoquestionamento. Se apresentava mais segura ainda, quando inquirida pelos mais próximos sobre essa mudança. Partiria porque entendera que nada de novo surgiria ao cruzar a esquina. Que tudo ali era muito óbvio e sem chances de surpresas. Era uma jogada com as cartas que entendia adequadas. Era um blefe ousado de uma moça que nunca comprou um baralho.
Ninando a garrafa que madrugava com ela, recapitulou os acontecimentos mais importantes que a levaram a decidir deixar aquele imóvel e rumar para longe. Era renitente quanto aos motivos que a convenceram a partir. Escutou os que estavam à sua volta até questionarem suas razões e pouco se permitiu avaliar algumas opiniões, especialmente, as mais intrusivas. Dos amigos que sempre a convenciam a terminar as reuniões eventuais de sexta a noite em sua casa, Cindy ouviu algumas banalidades. Até concordava com certas falas de quem chorou e reclamou de sua partida. Sim, como deixar aquele apartamento tão legal, que ela pagava tranquilamente? Vibrou muito quando encontrou aquele imóvel perto do trabalho, dos lugares prediletos e no caminho de linhas de ônibus para todo o lugar. Sentiria mais falta daquele espaço do que de alguns agregados que usufruíram dele. De sua família, supostamente compreensível, recebeu o apoio de quem repetiu que ela faria muita falta. Não partilhou muito sobre sua partida a eles também, especialmente porque, os mesmos não exibiram muito interesse a respeito. E do ex-namorado, um querido, escutou que o que estivesse faltando em sua vida, nem sempre é sobre onde mas quando. Que entendia que ela alcançara realizações diversas e que parecia imprudente largar tudo em uma aventura tão preenchida de incertezas. Ao cara que lhe fez companhia por mais tempo que ela conseguiu administrar, Cindy ofereceu o equilíbrio que julgou ser necessário ao se despedir dele. O esclareceu que não sabia se ele seria capaz de assimilar, processar, aprender que, não é ele que sabe o que falta em sua vida. Que suas vontades não são aventuras a não ser que, ela mesma, as intitule como tal. E que em nome do amor que tinha por ele e que, infelizmente, não estava à altura do que o rapaz entendia merecer, partia para preencher o que lhe faltava. Lamentava que ele se convenceu, por conta própria, que era o ‘alguém’ capaz de fazer isso. Lamentava muito mais que ele achasse que ela buscava se sentir completa, através de outra pessoa.
Cindy divagou sobre conversas diversas ao longo das etapas que sucederam o dia que decidiu partir até aquela madrugada em que ela empacotou equivocadamente o papel higiênico. A cada passada pela sala, encarava as malas e as caixas. Refletiu sobre quando assinou o contrato de aluguel daquele lugar. Mas não de forma nostálgica. Não se cobrou por estar desperdiçando uma oportunidade única deixando para trás um imóvel tão valorizado e que cabia surpreendentemente em seu orçamento. Riu alto e sozinha, enquanto ajeitava as cortinas que não sabia quando seriam reabertas depois que partisse, das noites que terminaram com os amigos adormecidos pelo apartamento. De seu pé acomodado na cabeça de quem se ajeitou em sua cama imensa e do dia seguinte olhando pela casa, se não deixaria alguém que esqueceu de acordar, trancado, quando fosse trabalhar. E até das poucas visitas de parentes que chegavam em datas festivas cheios de ideias sobre a decoração daquele espaço. Era indubitável que sentiria saudades de pessoas e coisas. Era igualmente inquestionável, que pensou muito nisso, antes de lançar um dardo contra a parede e fincar seu destino em qualquer lugar além dali. Mas sua decisão de partir, nunca esteve condicionada a qualquer convencimento contrário por parte de quem estava em sua vida. Sempre foi sobre ir buscar o que queria, não importa se ela sabia como explicar isso aos outros. Estava imunizada a sinais que lhe fizessem questionar sua decisão. Mas ponderou quanto aos itens desnecessários, embalados na mudança.
Foram semanas separando e se desfazendo do que não embarcaria e Cindy agora olhava tudo fechado, pronto para ir, coçando os dedos para não abrir uma caixa e revisar o que foi arrumado com um senso de organização compatível com o seu estilo. Abriu mais uma sem critério algum ou memória do que poderia ter e, alinhou no chão, tudo o que guardou como se estivesse indo passar um fim de semana na praia. Juntou aqueles itens aos da primeira embalagem. Não quis olhar para a última por mais tentador que fosse abri-la também. Seguiu com a garrafa fechada.
Indagou-se por que em meio às coisas a levar, preencheu entre a bagagem, produtos, objetos, que não combinavam com uma viagem tão definitiva. Como se não pudesse comprar pasta de dente num mercado quando chegasse. Jogou em uma das caixas um tubo deveras espremido e que não limparia muita coisa. Reconheceu naqueles separados uma oportunidade de avaliar sua vontade. Ali, sozinha, sem qualquer interferência ou fala opinativa, questionou se era tarde demais. Se não adquiriu um ticket só de ida para um destino não tão definitivo assim. E meditou sobre as saudades que genuinamente sabia que sentiria dos amigos e dos lugares queridos, tão perto de onde acordava e saia para trabalhar. Era tarde demais para cancelar o que ainda não aconteceu? Ainda dava tempo de avisar a van que a buscaria, logo cedo, que não era mais necessária? E o mais importante, estaria o saca rolhas na última caixa? Admitiu para as paredes que o coração partido que estava deixando para trás, não estava totalmente equivocado. Nem sempre é sobre onde. Às vezes, pode ser sobre quando. E talvez não devesse rumar para tão longe e considerar um lugar um pouco mais perto.
E naquela casa que assim como os amigos e o bairro todo em volta parecia triste com sua partida, lançou mais uma vez ao acaso sua decisão de recomeçar. Regressou ao quarto de escrever, já com o sol vazando pelos cantos da janela e arrancou o dardo que tinha enterrado na parede e que definiu sua, agora questionável, futura localização por tempo indeterminado. Se virou para a parede oposta e deu passos curtos, se distanciando do mundo desenhado naquele papel que outrora foi dobrado antes de ser emoldurado. Como que num duelo, se voltou para trás repentinamente, lançando em seguida aquele pedaço de plástico com ponta perfurante contra um mundo farto de destinos. Lamentou não ter alongado antes e sorriu ao ver onde acertou.
Cindy abriu as cortinas e as janelas, deixando o sol que parecia ter nascido mais cedo, entrar. Rumou empolgada para abrir a última caixa. Não iria a lugar algum mesmo, a fita adesiva provavelmente estava dentro daquela última embalagem. Lançou ao acaso, mais uma vez, a decisão de um novo destino. Atingiu onde estava. Um novo lugar, já velho conhecido e que agora parecia inédito ao coração. De repente, as esquinas estariam diferentes, a partir daquele dia. Levou as malas para o quarto. Pensou onde diabos estaria o abridor de vinho, afinal. E se serviu de uma taça daquela garrafa, que era de rosca. Ao ouvir o interfone, buscou sua carteira e se preparou para pagar a van que não levaria a inquilina que resolveu ficar. Surpreenderia seus amigos depois de arrumar suas coisas de volta. Teve a ideia de lhes escrever uma carta os convidando para visitá-la em seu velho endereço. Mas seu ex, seguiria seu ex.