
por Alex Cabral Silva
Era um torneio antigo em estádios modernos. Essa afirmação era repetida à exaustão pela imprensa. Fãs, especialmente de outros continentes, destacavam empolgados o tal nível de excelência por toda a parte. O teto que abria e fechava. O telão de frente e verso. O gramado retrátil e as arquibancadas que se multiplicavam, se preciso fosse. Era tudo super tecnológico e promovido o tempo todo por quem narrava, comentava e reportava da beira do campo aquele evento. Mas uma daquelas arenas guardava uma particularidade. Um detalhe que era defendido pelos membros da confederação internacional daquele esporte, que arrumaram rapidamente uma justificativa para aquela herança dos tempos em que o futebol era o assunto principal. O Fosso.
O vão entre o campo e a torcida parecia maior visto de perto. Aquele espaço, algumas vezes, conteve os torcedores mais exaltados que o tempo e a modernidade não conseguiam segurar. Ao longo de anos, aprimorou-se aquela construção que sempre esteve em conflito com a preservação da história daquele lugar e de tudo o que já havia se testemunhado ali. O dinheiro ainda encontrava obstáculos em alguns símbolos históricos que não admitiam ser redesenhados de qualquer jeito, em nome dos novos tempos.
Simon realizava o sonho da vida de qualquer garoto que ambicionava um dia poder jogar nos grandes templos daquele esporte. Como tantos outros, começou o caminho para pisar nos gramados sagrados como pegador de bolas atrás da trave. Era ágil e não favorecia nenhum jogador. Não deixava qualquer sinal de predileção atrapalhar sua tarefa. Repunha a bola de imediato para quem fosse cobrar o escanteio e lançava ao goleiro tão logo um tiro de meta era marcado. Estava sempre alerta a parte do campo em que precisava atender e, com os olhos na partida, seguia encantado e concentrado com suas obrigações.
Até as quartas de final, viu alguns dos grandes momentos daquela Copa. Movimentos e lances que por todos os ângulos que a TV fosse capaz de mostrar, nunca seriam como dali, por detrás da rede, na altura de onde tudo se passava, a poucos metros da história acontecendo. Buscou bolas em partidas épicas e seguia com o mesmo vigor do primeiro dia naquele trabalho. Leu na internet contos sobre aquele estádio, junto de nomes que se imortalizaram naquele piso e que viveram suas derrotas mais sofridas, também. Simon sabia onde estava e apesar de bem jovem, compreendia o papel que aquela arena teve na história de outros garotos como ele, no passado.
Faltando pouco mais de 4 minutos para o fim da partida, um de seus ídolos ajeitou a bola para bater uma falta. Daquele ponto, era como um pênalti, para ele. Da marca em que estava, não costumava a perder. Era um goleador jovem mas já bastante vitorioso, que fazia até mesmo os torcedores adversários aceitarem mais rápido as derrotas. Segundo a Confederação Internacional de Futebol, era o melhor jogador do mundo. Simon estava de acordo, mas não pelos mesmos critérios que aquela instituição usava para conferir este título. Uma bola atingida pelos pés daquele craque, com frequência mudava o placar. Era a hora de tirar o zero do marcador. Esses momentos deixavam o gandula mais perto do jogo. Como se fosse um dos companheiros em volta do principal nome daquela seleção. Simon se colocou tranquilo na altura da trave que, ele acreditava, veria mais de perto ainda, aquela bola entrar. Segurou firme a que tinha em mãos sabendo que não iria repô-la naquele lance. Estava certo que caberia ao goleiro buscar a que premeditava estar em rota de colisão com o fundo da rede. O apito do juiz precedeu o fim da certeza de Simon e de tantos outros. Não foi a barreira que saltou muito alto, nem mesmo o goleiro que, na verdade, só acompanhou com os olhos aquele lance. A bola encobriu todos e foi encontrar lugar no vão que separava a torcida, agora em silêncio, de toda a ação em campo.
Simon acompanhou a trajetória daquele chute até onde foi possível. Ouviu o grito de um zagueiro que pediu a ele agilidade na reposição. Lançou a pelota que segurava sem ao menos olhar para quem lhe cobrava atenção e caminhou até aquele espaço escuro e profundo além dos painéis de publicidade. O fosso era imenso. A torcida parecia muito mais distante do campo, vista da beira daquele buraco que não estava tão isolado assim do trânsito de quem trabalhava dando todo o tipo de assistência à partida. De pé e alheio ao jogo atrás dele, o gandula encarou o abismo que engoliu uma das bolas que ele tinha fé, estava predestinada a dar a vitória a seleção de seu ídolo. Eram muitas a disposição naquele torneio de recursos infinitos e quantias absurdas. Mas Simon entendia ser preciso buscar aquela exilada no buraco que não conseguia avistar o fundo. Se colocou a descer de forma displicente e sem ser notado por ninguém mais próximo. Seguranças, fotógrafos, voluntários, absolutamente ninguém, impediu o garoto de se arriscar naquele perigo real e bastante flagrante. O gandula se segurou na borda com as duas mãos e sem saber a profundidade de onde se arriscava, se soltou apertando os olhos.
Enquanto descia, não conseguia entender se estava caindo ou escorregando pela parede que às vezes parecia ser curva. Rumou para baixo por mais tempo do que era capaz de identificar. Ao atingir o fundo, pensou antes de abrir os olhos que demorou mais do que os acréscimos que o juiz daria antes do fim. O dedicado pegador olhou em volta daquele lugar em que a luz chegava falha e que o som da torcida era como o barulho do mar, indo e voltando. Ali ouvia o apito do juiz mais alto e o escorregar de alguns jogadores na grama, em lances de divididas mais duras. Lentamente, avançou pelo caminho tentando encontrar a bola isolada pelo craque. Andava sem muita confiança por não conseguir ver muito bem onde pisava. A luz lá no alto era como um risco no céu. Estava num corredor sinuoso de baixo daquele campo de linhas brancas, predominantemente retas. Foi mais fundo do que imaginava atrás daquele objeto fundamental para a partida. Deixou para pensar como subir de volta, quando sua missão estivesse cumprida. Progrediu pouco até achar bolas pelo caminho. Firmava hesitante, seus passos. Nenhuma das avistadas primeiro era compatível com as que tinha disponíveis, lá em cima. Não ostentavam desenhos estilizados e tampouco marcas de patrocínio. Eram de outras épocas. Não guardavam nenhum chip ou recurso interno que diminuía a participação da arbitragem, cada vez mais. Na maioria, a simplicidade da costura era o detalhe mais bonito. O gandula pegou uma dessas relíquias e encarou aquele formato familiar e ao mesmo tempo inédito aos seus olhos tão jovens. A internet não fornecia aquela riqueza de detalhes que, vendo ali de perto, sentindo em mãos, levava aquele garoto acostumado a tantas cores a se encantar com aquele tom sépia, singular. Simon segurou o passado e só o largou quando ouviu boas vindas de uma voz na penumbra. O susto acelerou sua respiração. Só se acalmou quando achou no chão um par de chuteiras à sua frente. Não estavam largadas. Estavam nos pés de um homem uniformizado e pronto para um jogo que já havia terminado há mais de meio século. Era um rapaz um pouco mais velho que seu ídolo. Com camisa e short de algodão, falava como o seu avô e com um sotaque similar ao de jogadores que, naquele torneio lá em cima, foram eliminados ainda na fase de grupos. O escudo na altura do peito, lembrava o daquela seleção que já tinha voltado para casa, há poucos dias. Ao lado dele, um outro jogador se colocou a encarar Simon, também. Era um homem calvo e mais velho que o de roupas mais antigas. Seu uniforme era mais colorido e de material diferente do que o do atleta que se revelou primeiro. Tinham o mesmo sotaque, mas o jeito de falar, denunciava suas épocas. O escudo no peito, na camisa azul do jogador mais velho, não existia mais. O garoto se lembrava de ter ouvido sobre os uniformes daquela seleção antes da reunificação daquele país. Simon se aproximou dos dois que lhe indagaram por que estava ali. Os explicou que era um gandula e que buscava por uma bola que caíra no fosso. A motivação que levou o garoto a descer até lá arrancou aplausos e ele conseguia ouvir mais mãos batendo do que era possível enxergar, naquele lugar obscuro. Aqueles dois esportistas com camisetas de outrora apontaram com as mãos, que ele continuasse seguindo em busca do tesouro perdido. Se puseram ao seu lado enquanto o apanhador do fundo do campo, vagava olhando mais para baixo e encontrando outras tantas raridades. Viu misturadas, protagonistas de torneios diversos que ele mesmo já conseguia identificar. Bolas clássicas em preto e branco e algumas de nomes divertidos que se popularizaram muito, também. Pelo caminho, se deparou com outro personagem que reconheceu de imediato. Era um atleta baixinho mas um dos grandes nomes da posição que jogou. Impediu muitos gols e também fez outros tantos, subindo miraculosamente mais alto que gigantes que tiveram que vê-lo comemorar muitas vitórias. Era um zagueiro icônico que chegava rápido na área adversária e que definiu muitas partidas com a cabeça. O mesmo se colocou a ajudar Simon junto dos outros na busca pela bola perdida.
Enquanto avançavam naquele corredor sinuoso, o garoto passou a olhar eventualmente para cima. O chão já não trazia mais tantas novidades do passado. E Simon não escutava mais a torcida, o apito. Não sentia mais dali, as jogadas, as disputas de bola. Temia que o jogo tivesse acabado. Eram vários artilheiros, nomes marcantes do futebol que acompanhavam o jovem apaixonado por esse esporte, agora. Se solidarizaram com o rapaz que mergulhou num abismo só para repor uma bola do jogo. Andaram ao seu lado e o seguiram até ele parar.
Simon conteve os passos ao avistar em sua frente alguém reconhecível em qualquer lugar do planeta. A chamavam de Rainha. Da melhor de todos os tempos. E por mais que ostentasse uma braçadeira como a de vários outros ali, no fundo do fosso, sua liderança também fora dos gramados, sempre foi o genuíno gatilho para aquele garoto gostar tanto de futebol. Estava diante de uma deusa que pisava na bola que ele buscava. Ela sorriu para o apanhador valente e lhe entregou o objeto que ele se arriscou tanto, depois de algumas embaixadas e um toque que o menino matou no peito. Aplaudiram todos, mais uma vez, o bravo pegador de bolas que agora poderia voltar para sua tarefa que se dedicava como ninguém. Formaram um corredor para que Simon passasse de volta, mas antes de partir, o garoto se voltou para aquela última lenda, que cruzara o seu caminho. Hesitante, buscou palavras com dificuldade diante daqueles ídolos históricos a sua volta. Uma das atletas mais importantes de todos os tempos, lhe assegurou que ele poderia perguntar o que quisesse. O gandula buscou os rostos que conseguia enxergar naquele lugar de iluminação tão precária e do fundo do coração, indagou a todos, porque estavam ali. Ouviu do zagueiro também artilheiro, que não existe gol certo, antes do chute. Do que trajava um uniforme de algodão, que um craque só consegue ser tão bom quanto o seu time é. E do que usava uma camisa dos tempos em que seu país estava dividido, que sempre haverá uma nova partida. Uma nova falta, um novo pênalti, uma nova bola lançada na área. Treinar e se dedicar eram as únicas formas de construir um caminho que levaria a vibrar com seus companheiros, ao fim. Da maior jogadora da história, escutou que todos ali, já chutaram tão longe de onde queriam acertar. Todos ali, já lançaram uma bola ao fosso. Ela disse a Simon que uma jogadora caída, levanta junto do time todo. Só assim, se segue adiante. Na mesma dedicação que te prepara para tentar vencer, estão as respostas para aceitar as eventuais derrotas. Do outro lado do campo, tem alguém que também se preparou para tentar erguer aquela taça. Ali em baixo, muitos ditos favoritos, se encontraram ao longo de décadas. Aprenderam com suas frustrações e entenderam melhor o que fazem em campo. Avançaram junto aos ensinamentos que, só mesmo em momentos como esses, somos capazes de interpretar melhor.
O apanhador se despediu honrado pronto para voltar a partida que ansiava ainda estar em curso mais acima. Deixou para trás todos aqueles ídolos que lhe ensinaram algo atemporal e fundamental para a vida, muito além de uma partida de futebol. Se colocou a tentar subir ao avistar num trecho do caminho, a borda de onde se lançou, muito mais alcançável agora. Desistiu de se pendurar ao avistar o craque do torneio ali em baixo. Parecia ter acabado de chegar ao fundo do fosso. Estava desolado. Encarou o menino que era mais um dos tantos que o tinham como referência de alguém infalível, sentindo todo o peso da expectativa que o mundo tinha nos seus chutes. Simon sentiu os passos de todas aquelas lendas se aproximando novamente. O craque dos tempos de hoje, flagrou aquela seleção perfeita sem titulares ou reservas pré-definidos tomarem a sua volta. O garoto ficou ali, rodeado por aquele plantel que causaria inveja a qualquer agremiação. Fitou a bola em mãos, que recuperou para repor em jogo e a entregou ao seu ídolo. O craque se sentiu melhor quando ouviu do garoto que a partida ainda não havia acabado. O gandula pulou para tentar alcançar a borda que o levaria de volta ao campo e foi surpreendido com diversas mãos que deram sustentação aos seus pés.
De volta à superfície, Simon correu para trás de uma das traves. Deixou a decepção de seu ídolo agora na companhia de tantos talentos que, como ele, um dia também perderam um gol que se dizia certo. O goleiro ainda não tinha batido o tiro de meta da bola que Simon devolveu ao campo sem ver quem a pediu, antes de se lançar ao fundo daquele hiato entre o gramado e a torcida. O cronômetro acusava que restavam 120 segundos para o final. Na lateral, uma placa anunciava mais 6 minutos. Numa cabine de transmissão, um zagueiro lendário lembrava que a manutenção daquele resultado levaria a mais dois tempos de bola rolando, pelo menos. À beira do campo, um dos treinadores, um ícone dos tempos em que o próprio país se encontrava partido ao meio, tentava organizar e unir sua equipe. Na tribuna de honra, um senhor em cadeira de rodas ouvia a maior jogadora de futebol de todos os tempos, lhe comentar ao pé do ouvido, sobre aquela partida emocionante. Testemunhas diversas, que ao longo da história pisaram naquele gramado, cercado por um vão capaz de acomodar suas frustrações.
Simon buscou o craque ainda cabisbaixo em meio ao time que tentava o consolar, enquanto se reposicionava em campo. Choros de alegria, gritos, ofensas e estranhos se abraçando nas arquibancadas que, mesmo mais afastadas por conta do fosso, faziam qualquer torcida se sentir mais próxima da partida. O apanhador de bolas seguiu observando seu ídolo até ele olhar na direção de onde estava. Não teve certeza se foi visto de volta. Mas lhe mostrou uma nova bola que já estava em suas mãos, disponível para aquele jogo, que ainda não acabara.