
Aurelio Wander Bastos*
* Professor e advogado.
Costa – Gravas , aos 92 anos, é o cineasta de Uma Bela Vida ( Le Dernier Souffle) desse profundo e inusitado filme, o último suspiro ,uma incerteza da eutanásia
O cineasta baseou-se em livro do filósofo Regis Debray ( autor do mais corajoso livro de minha juventude, “Revolução na Revolução” , que estava fora do cenário político), e do médico Claude Grange.
Não seria o melhor título para sua história, mas é o mais profundo documentário sobre o direito de morrer.
O filme tem de tudo isso mas trata da tragédia da morte, dos médicos diante do anúncio de uma biópsia aos pacientes num grande hospital francês de doentes terminais de câncer.
Doentes de câncer que, muitas vezes ou quase sempre, estão sujeitos a “cuidados paliativos”, na certeza do “flagelo da morte”, que sempre assusta os médicos diante do seu próprio e real fracasso
Eu pessoalmente enfrentei esse desespero, ainda jovem. Cortei, superficialmente, o lábio superior guando fazia o ginásio, ao soprar a gilete de fazer ponta de um lápis.
Já na universidade, a pequena pinta interna começou a aparecer, de forma mais realçada, na boca.
Nada demais quando, por ocasião do golpe militar, em abril de 1964, fui chamado a dar explicações por um policial de Montes Claros, depois de uma primeira invasão dos militares da Universidade de Brasília( UnB), onde eu estudava.
Não tendo nada a dizer ao coronel responsável pela detenção dos estudantes, saiu-se o oficial com o seguinte comentário: “- Você tem uma pinta no lábio, toda pinta se transforma em um câncer, vai embora e cuide-se daqui para a morte “.
Daquele dia em diante eu, no flagelo de minha cabeça só via a pinta aumentar, até que um dia o Dr Neder médico da Universidade de Brasília, criada pelo inesquecível Darcy Ribeiro, diante de meu sucessivo pânico, me disse: “Mandarei extrair a pinta no Hospital Distrital”.
E, assim foi feito com um sucessivo curativo de seis pontos .
A pinta foi colocada em um pequeno vidro para análise, um horror, tão grande que, quando mostrei o frasco ao meu professor na universidade, o querido jurista Sepúlveda Pertence, em panico.
Diante daquele momento trágico me sugeriu que levasse para aquele vidro para análise do conteúdo em Uberaba onde vivia minha mãe.
Peguei a minha bolsa de estudos do mês de abril, aluguei um táxi e fui para minha mãe em Uberaba, minha terra do coração.
Cheguei em casa de madrugada, bati na janela e ela veio me atender: “Que é isso meu filho?”. Respondi: ” Estou com câncer”.
No desespero mesmo fomos para o Hospital do Câncer. O Dr Helio Angoti, no seu gabinete, minha mãe tinha sido professora da filha dele. O médico deu uma olhada no vidro e em seu conteúdo e seguiu para o ambulatório.
Minha mãe em prantos, por lá fomos ficando .No fim da tarde a nuvem do flagelo total e aparece o médico com aquele vidro: “Aqui só tem uma hiperqueratose que não e câncer ,vá descansar, quando melhorar vai lá em casa para conversarmos um pouco e comer um frango”.
Com medo, procurei um médico psicanalista, o Dr Tolstoi, que me iniciou, durante o tratamento, na minha vida de aprendizado politico.
Eu passei a ir a um hospital (a UNB estava sob intervenção desde 9 de abril, foi a primeira vítima institucional de 1964) fora da universidade.
Ele me colocava em uma cama, espécie de divã, e me fazia repetir a frase: “Eu não tenho câncer,eu nao tenho câncer”.
Assim o tempo passou, a Universidade de Brasília reabriu as portas. E, continuei.
No filme de Costa Gravas, Uma Bela Vida (O último suspiro, em francês), o personagem central, com a noção do envelhecimento, é o filósofo Fabrice Touassaint, interpretado por Denis Podalydes .
Na história, o personagem descobre uma mancha adormecida no corpo.
Ao lado do irmão (interpretado por Fabrice Scott), o filósofo Fabrice Touassaint repensa o cotidiano, depois de uma consulta a um médico.
O encontro do filósofo com o médico Augustin ( interpretado por Kad Merad), especializado em cuidados paliativos, é o ponto central de Uma Bela Vida.
O filósofo Fabrice descobre as diferentes maneiras de encarar a vida e a morte, pelas histórias dos pacientes do médico Augustin.
Há um jovem em desespero, já na etapa final do tratamento paliativo, que sonhava com tantas coisas e queria ir embora, uma senhora que queria ver os filhos e do outro lado está uma senhora em prantos, uma jovem senhora abatida pelo câncer e que passa por tratamentos de quimioterapia e radioterapia, enfim, o filme é uma reflexão sobre as proximidades da morte.
No elenco feminino do filme, nos episódios relembrados pelo médico estão a personagens interpretadas pelas atrizes Charlotte Ramplimg (inglesa), Hiam Abbass (palestina), Angela Molina (espanhola ), Karin Viard (francesa).
Aos 92, o genial Costa Gravas preside, desde 2017, a Cinemateca Francesa, tem em sua biografia profissional o grandioso filme Z (1969), vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, entre outros.
Quando o filme Z foi lançado, em 1969, ele foi proibido no Brasil pelo regime militar. Sua exibição só foi liberada 15 anos depois, em 1980. Eu estava ali, na plateia brasileira, que aplaudiu de pé, em plena redemocratização
Costa Gravas, assim como o seu primeiro filme de sucesso, Z, continuam super atuais. O longa-metragem Uma Bela Vida é imperdível.