
A bolsa treme com o barulho do celular e a moça, no Metrô, revira tudo até encontrá-lo.
Aciona o botãozinho e começa a ronronar:
– Sei. Compreendo. Está bem. Eu compreendo, sim. Não faz mal. Tudo certo, deixa pra lá. Entendo, entendo. Fica pra outro dia. Tchau. Um beijo.
Desliga e, enquanto guarda o telefone no fundo da bolsa, murmura entre dentes:
– Cachorro…
Uma crônica pode nascer assim. A gente escuta o diálogo (no caso, monólogo, pois só ouvimos as falas dela) entre a moça que está ao nosso lado, no Metrô, e alguém que liga para o seu (dela) celular. Quem terá ligado? Quem é o cachorro? O marido? O namorado? Um amigo? E o que ele fez para ser tratado com tamanho desprezo? Algo há. Não sabemos, claro, mas podemos e devemos tentar decifrar (pelo menos para o cronista e seus leitores) esse enigma. Correr atrás do personagem oculto e encontrar o “cachorro”.
Ou, no caso, “o mote” da crônica.
O mote de uma crônica pode ser a oscilação climática, a passagem ou permanência do tempo, as estações do ano, o amor perdido, o amor renascido ou recém-encontrado, a rua, o bairro ou a cidade onde a gente vive, o excesso ou falta de assunto, o trabalho ou a ausência dele, a dor ou a alegria (a dor costuma dar mais samba), os filhos, os pais, o time do coração e, até, “o cachorro” que liga para a moça.
Definição escolar e convencional diz que a crônica “é uma narrativa histórica que expõe os fatos seguindo uma ordem cronológica”. A se apegar à origem da palavra, garantindo que vem do grego chronos e significa “tempo”, faz todo o sentido. Mas por que “histórica”, se a narrativa pode ser atemporal, mundana, momentânea, circunstancial ou mesmo leviana – a depender, claro, do mote?
Instado a oferecer uma definição para o gênero no qual foi mestre maior, Rubem Braga mostrou-se crônico e definitivo:
“Se não é aguda, é crônica!”
Aconselho que se evitem as definições apressadas, pois a boa e velha crônica, como está dito, tem como matéria prima o tempo. E ao tempo (até para que os contratempos sejam evitados) deve ser dado todo o tempo necessário.
Depois que se encontra o mote, é só dar asas à imaginação (se possível, evitando usar expressões manjadas como “asas à imaginação”) e deixar que contraiam doenças agudas e exibam sintomas ou manifestações que se tornem crônicas. Na história que imaginei, mas que não tive coragem de escrever, a moça do Metrô desce na estação mais próxima e vai atrás do cachorro do telefonema, disposta a pegá-lo na mentira. Antes do encontro, para e se pergunta:
“E se ele falou a verdade, com que cara eu fico? Não seria melhor deixar essa história inacabada?”
Claro que seria. Para que estragar o dia dele, o dela, e o ganha-pão do cronista?