
Texto e Fotos Carlos Monteiro
Onde estão meus gatos?* – primeira parte
Meus gatos têm muitos amores e muitos tutores; meus gatos não moram comigo. Meus gatos têm muitos lares e muitos familiares; não habitam o mesmo ambiente que eu, por vezes. Meus gatos não são ‘meus’, no sentido de pertencimento, têm valor afetivo como todo amigo de quatro patas deve ter; afetividade e companheirismo, com muitas pitadas de carinho e camaradagem, ingredientes perfeitos da receita do amor pleno. Têm uma dose gigantesca de ‘adoção’ temporária que se torna permanente, mas não moram comigo.
Muitos vivem ‘pelaí’, nas veredas tropicais, com vários logradouros para chamarem de seu. Vivem pelas ruas, avenidas, palcos iluminados, salpicados pelo brilhos das estrelas matutinas.
Tem a ‘turma do Manda-Chuva’ — seriado produzido por Hanna Barbera nos anos 1970 —, cujo personagem, ‘Guarda Belo’, vivia levando volta do ‘Manda’, que deveria ser carioca, apesar da trama se passar em Nova Iorque. Havia o ‘Espeto’, o ‘Bacana’, o ‘Batatinha’, o ‘Gênio’ e o ‘Chuchu’, todos serviram de inspiração para batizar, por mim, o bando que me seguiu, com afinco e observação, durante uma série de fotos que estava clicando para o meu livro Rio um estado de espírito – a história dos fantasmas cariocas. Eles ‘moram’ no Campo de Santana, palco histórico de vários episódios, político-sociais, durante os séculos 18, 19 e 20. Continuam por lá. Sempre que estou na área visito-os para a troca de uma pata de prosa, degustar umas sardinhas e ouvir reclamações em relação a concorrência provocada pelas cotias que insistem, territorialistas que são, dividir com a turma felina o mesmo espaço do parque central, um tanto quanto abandonado pelo poder público atualmente. Dois focinhos não se beijam; se respeitam! Saio de lá cantarolando alegremente, não o quem-quem musical de João Gilberto, mas de outro João; o Ricardo que fazia parte do lendário Secos & Molhados: “…E o guarda belo é o herói assim assado/Porque é preciso ser assim assado…”
Meus gatos não moram comigo. Ali, bem perto do Campo, está a igreja de São Gonçalo Garcia e São Jorge; Salve Ele! Ogunhê! Jorge, é uma espécie de segundo padroeiro, ‘não-oficial’, do Rio, já que São Sebastião encima a lista. No dia 23 de abril, feriado na metrópole, as comemorações são religiosas e festivas. Tanto sinos como atabaques retinem, ao alvorecer, pela Cidade Maravilhosa. A feijoada é de fé e o samba, batucado em todas as esquinas de terras cariocas, dá o tom do festejo que se estende até a hora final do Ângelus. É por lá que, sobre os bancos, vive Neném, uma Pelo Curto Brasileiro, de roupagem alvinegra, dengosa, afetuosa e, um tanto quanto preguiçosa. Como o Santo Guerreiro está sempre à porta do templo, fixada em guardiã do pórtico religioso. Dispensou o ginete alvo, quando em vez, se aboleta nos bancos em pau-cetim, dividindo, de forma sutil, o espaço com os fiéis e suas orações. O capelão, ao oficiar a missa, mantém um olho no gato e outro na hóstia. Ao sair daquele santuário me sinto abençoado pelos santos residentes e pela felina, que parece me sinalizar, com o olhar, cujas pupilas ficam diminutas: “Andarás vestido com as roupas e as armas de Jorge… miau! Salve Jorge!”
*Do livro “Miados de amor” (Páginas Editora – 2022)
(Continua…)
Onde estão meus gatos?* – segunda parte
(…continuação)
Meus gatos não moram comigo, mas habitam a casa de amigas e amigos. São ‘Frajolas’, tricolores em preto, marrom e branco – fêmeas por excelência, tigrados, monocromáticos, bicolores; de muitas raças, muitos amores e grandes humores, mas não moram comigo. Têm nomes pomposos, homenagens literárias; ‘Clarice Meirelles’, ‘Bukowisk’ e ‘Neruda’. Musicais; ‘Raulzito de Moraes’. Artistas e arteiros por excelência ao gênero Felis, aparecem como ‘Manolo Iglésias’ e ‘Paulo Autran’. Homenagens aos deuses do Olimpo – muitas vezes se sentem os próprios –, ‘Apolo’, ‘Zeus’ e ‘Atena’ ou aos nórdicos mitológicos ‘Frigg’ e ‘Odin’, que também rotula uma saborosa cerveja artesanal lager, e ‘Freya’. Há, ainda, os astrais, que vivem no mundo da Lua gatil: a própria ‘Luna’, ‘Mars’ e ‘Júpiter’, os imperadores; ‘Nero’, ‘Napoleão’, ‘Tibério’ e ‘Vespasiano’ – se acham -, os humanizados, ‘Sebastião’, ‘Luizinho’, ‘Paulo Roberto’, ‘Godofredo’ e ‘Serafina’, os criativos ‘Gaveta’, ‘Almofada’ e ‘Ecrã’ e, concluindo a lista, os ‘pé de chinelo’ ‘Pretinho’, ‘Bebê’ e ‘Baleia’. Nunca entendi bem essas ‘homenagens’; salvo pouquíssimas, diminutas, raríssimas e honrosas exceções, em tempo algum vi qualquer deles atenderem uma chamada nominal.
Também nunca percebi, desde tenra idade, a tal ciranda que incita a dar pauladas nos felinos; essa tal de dona Chica, com um sotaque afrancesado em ‘doberrô’, estimulava, desde sempre, à violência contra os animais. Melhor a versão nacional para Another brick in the wall do Pink Floyd: “…Ei, Chica/Deixa o gato em paz//Não vamos maltratar o pobre rapaz…”.
Meus gatos não moram comigo. Vivem na pedra do Arpoador, na Praça da República, no Aterro do Flamengo – obviamente o Manto Sagrado –, no cemitério da Consolação, no CADEG, na Monte Alegre, junto ao Museu Carmem Miranda no Flamengo — olha ele ’tra-vez aí, no Jockey Club, Passeio Público, até no IPUB e em lares, muitos lares, muito, confortáveis, por sinal, em várias cidades da Terra Brasilis.
Meus gatos não moram comigo, mas encimam letreiros: ‘O gato que Ri’, restaurante tradicionalíssimo de São Paulo ali no, não menos famoso, Largo do Arouche, no ‘O gato que Lê’, sebo com prateleiras cheias de charme e histórias da Vila Mariana, na Terra da Garoa, onde a personagem principal, ‘Lola’, dá boas-vindas aos leitores, na ‘Academia do Saber’ com seus gatos, aboletados sobre as vigas que sustentam o casarão secular, ou onde repousam sobre o verso esplêndido dos mais de 200 mil livros, à espera do comprador-leitor mais voraz e curioso. Fazem tanto sucesso, que a imensa loja, cheia de preciosidades, principalmente da Flor do Lácio, se tornou o ‘Sebo dos Gatinhos’. Pensam que são aves empoleiradas, tal qual é a parcimônia com que se refastelam nos sustentáculos de aço; são gatos alfarrabistas e sonhadores.
Meus gatos não moram comigo. A ‘Mila’, de pelagem do mais profundo ébano, divide com muitos companheiros os espaços do cemitério da Consolação, encravado em meio à Paulicea Desvairada, museu a céu aberto com o mais belo da arte tumular e cemiterial. Berço final de alguns Modernistas e do incrível Militão Augusto de Azevedo; carioca que retratou, no século 19, uma São Paulo em ebulição. Ela é minha fiel companheira nas incursões fotográficas, por mim, realizadas na necrópole mais antiga da cidade. Vai me indicando caminhos, locações e visões como que trasladando seu conhecimento do espaço, por telepatia simbiótica.
Meus gatos não moram comigo, isso me traz ônus e bônus. Não pago as contas (rs), o que em tempos bicudos, como os atuais, pode parecer uma vantagem. Qual o quê; mera ilusão, porém, não ganho afagos diários naquela chegada inusitada, não tenho ronronar, não há o ‘amassa pão’ em minha barriga, não sou acordado com as tradicionais lambidas matinais…
Meus gatos não moram comigo; sinto suas faltas…
*Do livro “Miados de amor” (Páginas Editora – 2022)