
A multiartista Ione Medeiros em momento de debate sobre teatro
A minha entrevistada é a pesquisadora, encenadora e pianista, fundadora e atual diretora do Grupo Oficcina Multimédia (GOM), Ione Medeiros. Durante nosso encontro ela falou de sua formação acadêmica, de suas referências no Teatro, do Grupo Oficcina Multimédia e muita mais. Confira!
JP – Olá lone! Você é mineira, de Juiz de Fora. Em qual bairro você nasceu? Sua família? Infância? Estudos primários e secundários? Formação Cultural? Eu sou mineira, de Juiz de Fora, nasci no centro da cidade. Minha família era toda de lá. Depois, com dez anos, eu fui estudar num colégio em Petrópolis. Depois me formei em Letras, Filosofia, Línguas Latinas, e Piano. E também Literatura Francesa. Depois que eu deixei Juiz de Fora e fui para Belo Horizonte. Então, minha infância e adolescência foram dessa maneira. Uma parte em Juiz de Fora. A outra em Petrópolis. Depois universidade. E, enfim, saí de Juiz de Fora.
JP – Você iniciou sua carreira na música e, a seguir, migrou para o teatro. Como foi esse processo? Sim, comecei minha carreira na música. Minha mãe era pianista. Na realidade, comecei a estudar piano com seis anos. Com dez anos, eu até gravei um disco, música latina, para criança. Mas já estava tocando relativamente bem na minha idade, até formar. E a minha família queria que eu continuasse como pianista, que eu fosse aperfeiçoar, sair do país. Ao ir para Belo Horizonte, eu encontrei a Fundação de Educação Artística, um lugar de música contemporânea, muito aberto às artes. E optei pelo teatro. É bom lembrar que eu gostava muito de cinema, de dança, de literatura. Para mim, a música é um esporte fundamental. Mas eu queria diversificar, lidar com o coletivo. Porque o teatro é arte coletivo. JP – Quais são as suas principais referências no âmbito teatral? Desde referências intelectuais até aquelas que lhe ajudaram na prática teatral. Na realidade, quando eu saí da música e fui para o teatro, comecei uma história um pouco diferente. Não é pautada assim em modelos de dramaturgos convencionais mais voltados para o teatro especificamente, baseado no texto, numa história, numa dramaturgia cenográfica bem adaptada à linguagem teatral. Eu já misturava objeto, imagem, dança, literatura. Eu já fazia um teatro mais abstrato. Não tinha história, não tinha personagem. Os cenários não eram descritivos. Então assim. Eu achava Hélio Oiticica com aqueles parangolés, inspirava a gente, com aquela performance dele aqui no Brasil. Tadeusz Kantor na parte do teatro com aquele amor pelos objetos, que eu sempre tive paixão pelos objetos. Marcel Duchamp, com aquela desconstrução de pegar o material do quotidiano e transformar aquilo numa outra coisa, mudar o significado das coisas. Essa turma toda que já estava mudando as coisas de lugar. Como a minha área era mais multimídia, nessa época ainda não tinha muito, foi uma coisa que eu fui criando com o grupo e usando minha experiência de musicista para ir juntando essas linguagens e compor essa linguagem multimeio. O grupo foi criado como grupo de arte integrado, abarcar todas as artes. Por isso, eu criei esse grupo em 1977, foi uma escolha mais adequada para o que eu queria fazer. JP – Você fundou o Grupo Oficcina Multimédia. Comente sobre o processo de criação do Grupo. Ano? Objetivos? Constituição do grupo inicial? Eu fiz parte em 1977 da criação desse grupo, que nasceu num curso no Festival de Verão de Ouro Preto. Então chegou o compositor argentino Rufo Herrera, com uma proposta de arte integrada na encenação. Como ele também era músico, eu senti uma afinidade muito grande com essa linguagem. Então eu fiz parte da criação do grupo. Trabalhei durante seis anos com o grupo. Depois, o Rufo voltou para a composição, e eu dei continuidade, assumindo a direção, assim meio por acaso, porque a linguagem era muito nova, e eu seguia as ideias, e foi assim que eu assumi a direção meio que no experimento. Lembrando que os anos setenta eram voltados para o experimento, arriscar, quebrar o convencional. Era tudo muito novo. Mais tarde foram aparecendo similares em outros lugares do mundo. Mas essa ideia de não se basear apenas no texto para fazer teatro, incluir a dança, o cenário, de incluir a imagem e o vídeo, isso era tudo muito novo. Foi assim que começou o grupo. E, durante um período, nós tínhamos grupos que demoravam mais tempo. Dois, três anos de alguns espetáculos e até mais. Pessoas ficavam mais tempo, porque havia esse objetivo de trabalhar em grupo. E, mais recentemente, eu tenho um núcleo, com dois atores que estão há vinte e dois anos comigo, e atores que chamamos para o processo de criação, dependendo da montagem. JP – Você também se preocupa com a formação dos atores?! Você também leciona ou se atém às atividades do Grupo? Para eu me manter como artista na área de teatro ou fazer experimentos meu suporte foi ser professora de música no Centro Pedagógico da UFMG. Depois fui para a escola primária. Depois, fiz concurso e integrei o Centro Pedagógico da UFMG, que é uma escola voltada para crianças e adolescentes. Essa minha vocação para formação e para ser professora sempre gostei de saber e da confiança. Participei de vários festivais de inverno, durante quinze anos, sempre atuando nessa área de formação mesmo, mais de artes. Fazia muitos cursos, coordenando muitos cursos, nas áreas, misturando tudo, um pouco como nós fazíamos no multimédia. Escrevendo para os cursos dos festivais de inverno, a proposta para as crianças passarem por várias experiências. Nós fazíamos educação física, para eles caminharem, fazer percurso na montanha. Além disso, tinha teatro, dança, música, artes visuais, muitas outras coisas. Até futebol eles jogavam juntos. Era uma formação bastante diversificada, que eu aplicava nos festivais de inverno. E entrei em muitos festivais de inverno também sendo professora do Centro Pedagógico da UFMG. Eles tentavam envolver os professores da UFMG para esses festivais de inverno que são uma proposta da universidade. E eu tenho muito orgulho e interferiu muito nas minhas experiências. Todos os processos que nós fazemos em todos os espetáculos já se constitui como de formação de atores. São processos demorados, em que nós entramos em contato com os fundamentos de cada obra, estudamos, fazemos seminários, fazemos cursos especializados, procuramos nos informar para assistir exposições que tenham afinidade com a proposta do espetáculo, assistimos filmes. Cada montagem é um processo de formação. Tem textos e nós ampliamos a fundamentação da montagem. JP – Qual é o seu principal autor de teatro brasileiro? Justifique sua resposta. Nelson Rodrigues. Eu fui conhecer ele mais tarde na minha vida. Ele é essencialmente brasileiro. De repente, você vai fortalecendo a sua identidade aí você encontra sua ressonância num autor fora da gente mesmo. Nós com sentimentos, mais madura, vai se conhecendo como brasileiro, com sentimentos, com propósitos, com desejos, alucinações, com as nossas falhas, e o Nelson Rodrigues é aquele que desvenda o universo do brasileiro, seja da classe média, seja da periferia. Ele é um voyeur da alma humana, um Shakespeare dos tipos brasileiros que me encanta. Eu já fiz outras encenações baseadas em autores estrangeiros, e adorei encontrar Nelson Rodrigues com quarenta anos de experiência e acho que foi muito bom esse encontro para entender um pouco mais e ressoar com ele em termos de linguagem, em termos de conhecimento humano. Então, o Nelson Rodrigues é o meu autor preferido. JP – Qual é o texto de teatro que você ainda tem interesse de levar aos palcos? Eu tenho vontade de fazer outras montagens de Nelson Rodrigues. Me surpreende como ele é atual, me surpreende como ele é popular, porque tem uma linguagem direta, frases curtas, atinge muito as pessoas. Todo mundo tem um pouquinho de Nelson Rodrigues pelas abordagens que ele faz. Então, ele é cativante. Me surpreendeu. Não sabia que tantos brasileiros gostavam de Nelson Rodrigues. Ele também foi muito divulgado em montagens na televisão, em filmes. Foi um encontro com um dramaturgo que representa a nossa realidade, a nossa maneira de ver, sentir e pensar. Com os erros e acertos do brasileiro. JP – No momento atual você está dirigindo a encenação de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. Como nasceu este projeto? Como é a sua montagem? O meu encontro com Nelson Rodrigues começa com Boca de Ouro, que eu tentei fazer há alguns anos atrás e não consegui, acho que eu não estava pronta para fazer Boca de Ouro. E aconteceu, agora recentemente, e foi aquele encantamento com Nelson Rodrigues, com tudo que ele trás. E, conhecendo Nelson Rodrigues, eu tive interesse em aprofundar o conhecimento sobre esse dramaturgo e cheguei em Vestido de Noiva, que é o ícone, que lança o Nelson Rodrigues como dramaturgo moderno, como teatro moderno, com a montagem ds Ziembiski, é uma renovação da cena, da iluminação, do texto, da maneira dos atores se portar em cena, de ensaiarem muito, de decorarem o texto. Um teatro novo que está procurando uma maneira nova de fazer teatro. E também a complexidade de Vestido de Noiva, pela questão de ser um personagem acidentado e que não é ela quem está lá. É o inconsciente dela. Isso é muito revolucionário. E é muito adequado a uma peça de 1943 ao início da psicanálise que estava começando a ser divulgada. A valorização do inconsciente. Para além da vida inteira, quem somos nós para além das aparências? E, com essa personagem que está inconsciente, ela não tem censura. Então tudo vem a tona. Delírios, desejos, sonhos, vontades. Tudo que ela quer. Isso é muito estimulante. Porque não é um modelo linear, que tem idas e vindas. E, já Nelson Rodrigues coloca três planos: memória, alucinação, e realidade. Na realidade nós vivemos um pouco assim. A nossa vida é feita de memória, de alucinação, nós somos sonhos e desejos, e realidade. Só que ele potencializa isso no teatro de uma forma incrível. Na montagem dele fez esses planos bem localizados no espaço, e eu não optei por essa formaçáo. Mas apenas mudando a cena, usando a iluminação e o cenário de forma a trazer momentos de realidade e de alucinação, e de memória. No nosso processo de montagem realmente fizemos tudo aquilo que nós gostamos de trazer para cena objetos, que é o cenário, movimentar os atores, trazer um pouco de dança. O ator age, corre, movimenta, dança, e, sobretudo, o vídeo, dessa vez, dialogando com os atores, que, enfim, trazendo os elementos que já vem trabalhando há muitos anos para falar dessa história que é bem complexa. Temos também um narrador. A parte de vídeo foi feita na pandemia. Nós precisamos primeiro de fazer um teatro prático, uma rádio-novela, mas depois começamos a fazer vídeo, um ano fazendo seis atos em vídeo. E a montagem final, essa montagem que eu terminei, ela pegou esse elemento do vídeo que foi feito durante a pandemia, pegou o elemento da primeira montagem que ia acontecer antes da pandemia e nós não podemos estrear. Três montagens: a primeira antes da pandemia, a segunda na pandemia, e a terceira quando recebemos o convite do CCBB para fazer essa peça em todas as capitais interessadas. Dessas três montagens, nós temos um pouco da proposta inicial, que é o cenário e a vontade de fazer vídeo. Da segunda proposta tem a elaboração do texto, que escrevemos muito texto, e transformamos as cenas em vídeo. E, na terceira montagem, iniciamos algumas coisas já iniciadas, a primeira montagem, mais os vídeos da segunda montagem. E surgiu inclusive uma terceira montagem, mudando inclusive o elenco. Foi um processo bem longo, mas com muito aprendizado para todos. JP – Como você analisa o cenário teatral brasileiro nos dias de hoje? Houve avanços em relação ao período em que você iniciou a sua trajetória? O teatro vai mudando com o tempo. Eu sou de um tempo que os grupos eram muito grandes, que a preocupação com o ensaio era muito grande, as pessoas podiam se dedicar mais a ensaiar, as temporadas eram enormes, podia se viver de bilheteria, uma vez que ainda não tinham as leis. Podia se viver de bilheteria no teatro mais comercial, pode-se dizer assim. Mas as boas montagens conseguiam sobreviver, ficando mais tempo em cartaz. Não era tanta gente que fazia teatro, então os grupos iam se fortalecendo com essa mentalidade de ensaiar bastante, de ter grupos com atores mais fixos. E, com o correr do tempo, eu acho que esse perfil foi mudando. Os grupos foram se diluindo um pouco. Então, os atores começaram a fazer parte de várias companhias. Os grupos começaram a ficar menores. Aí surgem solos, duos. Muda um pouco o perfil daquele teatro com.mais atores, muita gente. E, começa a adequar a época. Porque sujeito às leis, incentivo. Tudo fica mais caro. Cenário, montagem, luz, ou seja, não é fácil fazer teatro, a dedicação, o tempo. Então, muda um pouco o formato do teatro. Mas o desejo do teatro continua. O desejo da arte é mais fiel às necessidades do homem se expressar falando um diretamente para o outro. Porque todas as áreas tem um intermediador. Uma música tem um instrumento. O cinema tem a tela. E o teatro é a dança. Quem quer comunicar, contar uma história é o teatro. É o teatro que fala, que tem o personagem. O teatro tem o personagem que representa algum setor da sociedade. O teatro permanece a grande surpresa pós-pandemia. É ver como o público correu para o teatro. O teatro você quer ver alguém. Ensinar. Você tem que ir para o palco, fazer esse ritual. Então, o teatro permanece. Eu acho que essas mudanças tem haver com a época social. Os temas também abrangendo questões mais importantes de serem vistas. Politicamente, o teatro vai evoluindo. A sociedade hoje exige uma necessidade de transformação. As suas denúncias. O teatro reflete a sociedade, o desejo de mudança, transformação. Então, é uma arte que exige isso. Muda a forma, mudam algumas coisas, mas o fazer teatral, o estar no palco falando para alguém, isso se mantém. Então, é o que eu vejo. JP – Quais são os seus projetos futuros? E, para finalizar, deixe uma mensagem para os atores e atrizes brasileiros. Dar continuidade ao Vestido de Noiva. Cumprir as temporadas já agendadas. Em dezembro, comemorar em Belo Horizonte, os oitenta anos da estreia de Nelson Rodrigues no dia 28.12.1953 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. E, quanto a mensagem para os atores e atrizes. Eu gostaria de dizer que teatro é uma profissão. Não tem tanto glamour como se fala. Exige muito. Exige muito conhecimento, muito ensaio, exige você lidar com o erro, você tem metas de se aprimorar a cada montagem, a cada dia que você se apresenta. Eu acho que mistura uma profissão com uma vocação, que é muito gratificante. Então quem tem essa vocação ela é de início. Te dá uma consistência humana. Então, eu espero enquanto eu puder fazer teatro, estar nos palcos, e me dedicar totalmente a essa concessão dessa linguagem. Viva o teatro! Viva o teatro brasileiro!