
De tudo o que foi dito mesmo antes de sua estreia, Vale o Escrito despertou a curiosidade de todos por trazer, pela primeira vez, bicheiros e suas famílias, falando abertamente sobre suas histórias. Foi comum até aqui ouvir os relatos de quem viu de perto e participou de alguma forma, do destino desses personagens ao longo de décadas. Juízes, promotores, investigadores, jornalistas e historiadores, seguem ajudando no relato dessa produção criada pelo jornalista Fellipe Awi. Mas está no convencimento dessas pessoas a falar, somada a uma pesquisa impecável o grande triunfo dessa produção. A série documental dividida em sete episódios, já disponível no Globoplay, vai longe em mostrar a origem e como o jogo do bicho mapeou a cidade do Rio de Janeiro e definiu as relações entre os setores mais diversos, tornando-se impossível desassociar essa contravenção do carnaval, por exemplo. Os Andrades, Garcias e várias outras famílias que tiveram seus nomes ecoados na Marquês de Sapucaí ao longo dos anos, já eram velhos conhecidos de quem já fez sua fézinha em um dos 25 bichos disponíveis para se apostar. Suas origens no mundo do samba enquanto se fortaleciam em seus negócios é apresentada com equilíbrio pelos que ainda seguem na ativa e pelos que viram as lendas tomarem poder e espaço, muitas das vezes, sem precisar fazer muito esforço. Apesar da milícia na capital carioca dar sinais de condutas similares a da máfia, reside no jogo do bicho a verdadeira referência a esse tipo de organização. Pontos de venda foram adquiridos diversas vezes com muito sangue e sem muita conversa. Tais métodos ainda são usados e seguem se repetindo nos últimos anos, com o desaparecimento da velha cúpula que organizou as áreas onde a jogatina estaria disponível, com a intenção de que brigas por território, não viessem a acontecer mais. As definições do espaço de cada um são creditadas ao bicheiro “aposentado” Capitão Guimarães. Figura sombria dos tempos de DOI-COD que se encontrou na contravenção e fez sua reputação junto de alguns dos homens mais temidos da história carioca. Ao lado do lendário Castor de Andrade, Anísio, Miro Garcia, Luizinho Drummond, fizeram perdurar uma paz entre suas famílias que parecia quase impossível de se abalar. Mas quem monta um reino produz herdeiros. E os mesmos viram a calmaria se esvair, junto das vidas de alguns de seus filhos. Tipos que como eles aprenderam a ter gosto pelo samba e já nasceram com a ganância por poder e por muito dinheiro. Diante disso, não levou muito tempo para as brigas passarem a ser dentro das famílias e não entre as famílias. E no modus operandi de alguns da velha guarda, não se mete nas brigas da casa de alguém até que esse alguém se meta com o vizinho.
Esses novos relatos que trazem luz a detalhes das vidas desses tipos fortalecem o quanto esse meio ainda guarda histórias que explicam muito da capital fluminense. Artistas, políticos, atletas, personalidades diversas, costumavam a negar contato com muitos desses contraventores. Negavam contato, mas não convivência. E os que pareciam querer omitir qualquer tipo de relação, costumavam falhar nessa intenção nos desfiles de carnaval ou num velório na quadra da escola.
O tempo e as prisões seguidas de solturas quase imediatas de vários deles, os fizeram personalidades de muita visibilidade. Suas operações não eram ocultas e quando uma nova geração passou a questionar o espaço do outro, tiros em saídas de academias e bombas instaladas em carros, se tornaram a nova rotina.
Vale o Escrito chega perto de ser um recorte definitivo do mundo da contravenção no Rio, com os relatos de seus protagonistas sobreviventes e de diversos coadjuvantes ilustres. Só não o é, porque a história do jogo do bicho tem tudo para seguir rendendo episódios inacreditáveis e traumáticos por, quem sabe, mais 130 anos. Os que há décadas se juntaram para formar uma cúpula acompanharam a mesma ser desdenhada por tipos que viram nascer. E esses mesmos testemunharam as primeiras digitalizações de seus negócios, com a chegada de aparelhos Caça-níqueis que fizeram circular mais discórdia também, tamanha a quantidade de dinheiro imediato que essa nova tecnologia trouxe. Tecnologia que gerou insegurança nesses patronos do jogo e do samba, afinal, máquina de jogo não tem como fugir do flagrante.
Na fala dessas lendas e de tantos que de perto acompanharam suas histórias vislumbra-se projeções não só para esse negócio, mas detalhes diversos que contribuem para uma compreensão muito melhor da participação de tipos que hoje rotineiramente ilustram as notícias policiais e como o jogo do bicho, também participou de suas histórias.