
Estreou Leão Rosário no teatro do CCBB RIO 2, de Adyr Assumpção, espetáculo solo, de vozes e objetos.
A dramaturgia é de autoria do próprio Adyr Assumpção.
O texto tem como inspiração um personagem do teatro, Rei Lear, da peça teatral redigida por William Shakespeare, e um artista brasileiro, um homem preto, que possui uma memória africana na sua manifestação artística, Arthur Bispo do Rosário, um indivíduo atormentado, que produziu obras belas. Como resultado dessa mistura de um personagem ficcional com um personagem da história do Brasil, Adyr produziu uma história bonita, potente, bem estruturada, e encantadora.
Adyr se apropriou do texto teatral de Shakespeare que se passava na Inglaterra e o aplicou ao contexto africano, se passando na costa atlântica da África, de onde vieram os nossos ancestrais. Foi desse espaço africano que partiram os ancestrais do lado materno de Adyr. O texto se configura numa viagem do teatro e da ancestralidade.
A narrativa se passa numa África atemporal, no Reino de Oió, Ifé e Benguela, banhada pelo oceano atlântico. Naquele espaço, um rei ancião, Leão Rosário, com o intuito de diminuir o peso dos anos, dos cargos, negócios, e tarefas, decidiu repartir seu vasto império entre as suas três filhas e deixar a maior parte do território para aquela que mais o ama. As mais velhas, Makeda e Akosua, com adulações e falsas afirmações, dizem que o amam acima de tudo. Agotimé, a mais nova e verdadeira, surpreende afirmando que seu amor por ele é do tamanho de seu dever.
O Rei se enfurece com a resposta, deserda e expulsa Agotimé, que parte e se casa com o Rei das Florestas.
Leão Rosário divide o reino entre as duas outras filhas, com a condição de morar, em ciclos mensais, com cada uma das duas.
No caminho de Leão Rosário surgem Sundiata, que passa a servi-lo, e Sotigui, o griot que procura acordar a consciência do rei.
Contudo, ao contrário do que pensava Leão Rosário, Makeda e sua irmã Akosua começam a tramar contra ele. Elas querem que ele diminua a sua escolta, inicialmente, pela metade, e, num segundo momento, a vinte e cinco homens. Como ele não acata, elas acabam por abandoná-lo à própria sorte.
E ao ficar a esmo, perambulando pelos caminhos e florestas, ele começa a entrar num processo de enlouquecimento. Se sente velho, enfraquecido, debilitado não tem ninguém para auxiliá-lo. Está magoado com a “ingratidão filial”, e as atitudes das filhas (“bruxas desumanas”) o leva a um processo de demência.
Mas, o rei ancião não desistiu. E ele próprio preferiu enfrentar a inclemência do tempo, ser companheiro dos animais noturnos, como o lobo e da coruja, e do sofrimento extremo da miséria. Sozinho e na solidão enfrentou o mundo. Conversou com os ventos, relâmpagos, e trovoes. E, chamou pelos orixás, entidades divinas, como Oxalufom, clamando pelo amor aos mais velhos, e solicitando auxílio.
Se sentindo desrespeitado, ultrajado e menosprezado, Leão Rosário já em processo de passagem da razão para a desrazao, da lucidez para a insanidade, ele instala um tribunal para julgá-las. Makeda o expulsou de casa, e Akossua proibiu o seu séquito de homens de entrar em sua residência e os ameaçou de colocar na forca. Nesse momento, a luz sobre a plateia se ascende, e ele a chama para juntos participar do julgamento, servindo de juri.
A seguir a instalação do julgamento, ele caiu em sono.
Nesse momento ressurge a figura de Agotimé, a filha que o ama por dever, a quem ele não deu parte alguma, e é casada com o rei das florestas. Ela ordena ao seu esposo que vá resgatá-lo e traga-o de volta. E assim procedeu. Ele encontrou-o velho e louco, dormindo. Ao traze-lo para perto de si, Agotimé lhe deu uma nova roupa, uma farda.
Agotimé e Rosário foram presos. No cárcere, eles lembraram de histórias antigas, enquanto aguardavam serem julgados por Makeda e Akossua. Agotimé devera ser enforcada e seria colocada a culpa em seu pai.
Ao fim do julgamento, Akossua e Makeda foram a óbito. E, Agotimé partiu para sempre, enforcada. E, ele ficou sozinho no mundo, conversando com os elementos da natureza, com vozes e objetos.
O espetáculo é bonito, cuidadoso, bem construído e argumentado, nos apresenta o resgate da nossa matriz africana, os legados da ancestralidade, o sentimento de ser um afro-brasileiro, e uma importante reflexão sobre envelhecimento, solidão, e loucura.
Adyr compõe um Leão Rosário já em idade avançada, dando sinais de exaustão. Após a ingratidão das suas filhas, passou a ser um homem sozinho, solitário, que perambulava pelas terras do seu reino, atormentado, triste. Ele tem uma boa atuação, firme, segura e correta. Passa o texto com clareza, de forma que não é difícil compreende-lo. Lembra um narrador de histórias, que consegue manter o público atento.
A direção é de Eduardo Moreira, que focou no texto, e deixou Adyr a vontade no palco, livre, para interpretar o seu Leão Rosário.
O texto é uma importante reflexão para retornarmos a entender que somos africanos também. Somos prioritariamente africanos no ponto de vista da nossa formação, da nossa memória, e podemos narrar histórias que se passam nesse continente, tão explorado, tão massacrado, tão violentado pela lógica colonialista e imperialista.
A dramaturgia serve ainda para pensar a ancestralidade brasileira, que tem um forte vínculo com essa costa atlântica africana. Adyr e Bispo do Rosário são descendentes da chamada “diáspora africana”. Resistencia!
Adyr realiza o espetáculo solo, dialogando com vozes gravadas, das suas três filhas, do Rei das Matas, Sundiata, e Sotigui. E com objetos e adereços em bambu.
O figurino é bonito, original, e adequado. Nele podemos ver duas referencias ao Bispo do Rosário. O primeiro é no início do espetáculo, o manto, que é uma releitura do avesso de um manto que o Bispo durante muitos anos preparou para se encontrar com Deus. Foram bordados nomes de pessoas e de entidades do mundo afro-americano e africano-brasileiro. E a segunda referencia é a farda, inspirada numa criação do próprio Bispo. Foram substituídas as medalhas presentes na decoração por bandeirinhas dos países africanos. Destaque para a bordadeira Stela Guimaraes, que bordou o manto e o fardo.
Ao longo do espetáculo, Adyr utiliza uma túnica branca, e segura um cajado na mão.
A cenografia foi criada por Jorge dos Anjos, original e criativa. No chão do palco há um tapete estampado com características africanas. Ainda integra o cenário os três corpos das filhas de Leão Rosário, feitos de bambu, pelo artista Lucio Ventania.
A iluminação criada por Eliezer Sampaio é bonita, adequada, e realça a representação do ator nas diversas cenas.
Leão Rosário apresenta um texto original, que possibilita pensar a nossa ancestralidade brasileira, que tem um forte vínculo com essa da costa atlântica africana na qual se passa a peça; tem bonitos figurinos; e um ator experiente e reconhecido, com uma atuação expressiva.
Excelente produção cênica!