
Rebeldes e Marginais: Cultura nos Anos de Chumbo
Falar da ditadura como período lastimável é lugar comum e fato inegável. Questionar qualquer aspecto desse período nefasto não comporta mais. No entanto, trazer à lembrança fatos desconhecidos, especialmente entre os jovens, é de extrema valia.
A cultura foi um ponto de resistência importantíssimo e apesar das circunstâncias contrárias, floresceu e deu frutos que seguem até hoje. Influenciou não só no pensamento crítico, mas diversas manifestações culturais criaram bases e alicerces para a cultura vindoura. Heloisa Teixeira, professora, pesquisadora, escritora e acadêmica, viveu com afinco esse momento. Estudou com tenacidade a produção cultural brasileira dessa época, escreveu sua tese de doutorado, artigos e livros. Juntou o vasto e rico material que utilizou e transformou no livro ‘Rebeldes e Marginais: cultura dos anos de chumbo’, edição da Bazar do Tempo, cujo trabalho é essencial para se entender ainda mais o fundamental papel da cultura nesses tempos idos da mão pesada da ditadura e da censura. Não há como se pensar o futuro sem entender e conhecer o passado. O livro nos traz memórias, relatos e documentos que merecem atenção. Um impulso na esperança de um futuro mais solar. Com a palavra, Heloisa Teixeira:
- Porque decidiu reunir esse material que já utilizou em outros títulos, artigos, teses, etc. e transformá-lo em livro?
Esse ano faz 56 anos da época da implantação da ditadura, então resolvi contar a história da cultura nesse contexto. Eu tinha muitos escritos, artigos, coisas na internet, então decidi juntar tudo com minhas memórias e minhas fontes. Tem Zé Celso pouco antes de morrer contando sobre a estreia do Rei da Vela, o episódio da polícia entrando no teatro, Sérgio Ricardo falando da cena histórica do violão, entre outros protagonistas que contam sobre a época com olhar de hoje, com suas lembranças. O livro tem também uma audioteca, videoteca, fonoteca, com muitas entrevistas, como a última entrevista do Hélio Oiticica entre outras tantas da época. Há um material muito incrível, documentos raros como o jornal com a manchete na primeira página com o AI-5, várias fotos. O livro não tem metade do que possuo, ainda há muito material. Mas reuni um material maravilhoso, relevante.
- Você viveu toda essa época de forma muito ativa. Qual seu olhar hoje de tudo que você vivenciou?
O meu relato é de memória. Era um tempo que havia muita praia, muito Eros, muita festa. A gente realmente acreditava que ia mudar o mundo. Tínhamos certeza que íamos vencer. Mas na verdade, estávamos muito longe. Era uma visão voluntarista, feliz. Até que na passeata dos cem mil, eles disseram: acabou a brincadeira. E acabou. Era um período muito eufórico no mundo inteiro e reverberava aqui. A rebeldia vinha de todos os lados, França, Califórnia e de outros tantos lugares. Tudo que acontecia nos alimentava aqui.
- Mas na contra mão, culturalmente foi um período de efervescência?
Foi o período de ouro da cultura brasileira, completamente fértil. Surgiu o teatro de Arena, o Oficina, o Cinema Novo, a MPB. Muita coisa nasceu daí. A cultura tornou-se muito valorizada como vetor político, como propulsora de mudanças. Até hoje essa força ficou.
- A contracultura chegou um pouco depois. Como foi essa realidade pra você?
Sim, foi um pouco depois de tudo isso. Eu estava na Universidade no meu primeiro emprego, onde se debatia tudo, sonhávamos juntos. Eu estava na universidade quando no dia 13 de dezembro acabou tudo. As universidades fecharam as portas, a UNE foi desativada, os professores foram presos, ou se exilaram, e os artistas também. Ficou aquele vazio imenso que eu chamei no livro de depressão pavorosa e fui tentando me arrumar ali dentro. Foi assim que descobri a contracultura, a poesia marginal, que já existia com certo humor e foi ganhando cores políticas, na trilha da oposição. Eu me interessei loucamente por isso e fiz minha tese sobre esse assunto. Fiquei muito fascinada com essa poesia que contava a história dessa geração, chamada AI-5 ou geração do sufoco, a geração que não tinha informação nenhuma. Só sabiam que o amigo poderia ter sumido ou estar morto. Foi uma geração de sobressalto e fazia uma poesia que demonstrava isso. Percebi que era um testemunho importante. Surgiram várias manifestações artísticas como; Tropicalismo, Asdrúbal Trouxe o Trombone, Novos Baianos, muita gente.
- Você se sentiu afetada de que forma?
Sim, me afetou muito. Eu chegava à sala de aula e recebia uma lista de tudo que não podia mencionar em aula e os autores que não podia citar. Havia muita denúncia mesmo. Toda essa literatura, o cinema, as artes plásticas, falam disso. E todos nós pensávamos e desejávamos a mesma coisa. Na realidade do cotidiano era muito difícil saber como se comportar.
- Como escolheu o recorte para o livro, diante do farto material que você dispõe?
Escolhi pelos movimentos mais claros da época, no teatro, nas artes plásticas, na música, na literatura.
- A nova geração conhece pouco sobre a ditadura e você já declarou isso. A que você atribui esse fato?
Eu acho que eles até se interessam, mas tem pouco material a respeito. Por isso eu fiz esse livro, inclusive com as fontes. É importante ouvir Zé Celso, Caca Diegues, Zelito Vianna e outros.
- Essas entrevistas são o plus do seu livro?
Sim. É um material inédito.
- Escrevendo o livro e revivendo esse tempo, qual a lembrança mais forte da noite do revellion de 1967 na sua casa?
Alegria profunda e radical. Esse revellion a gente marcou na praia onde tudo acontecia; de festas as passeatas. Nada era planejado, tudo ia acontecendo. Foi uma euforia total, uma festa apocalíptica, todo mundo muito feliz acreditando com um amanhã diferente. Tudo estava dando certo, cinema novo, Caetano e Gil e a gente acreditando piamente que íamos mudar o mundo. Logo depois a casa caiu.
- Os tempos eram completamente diferentes e tecnologia era algo impensável, no entanto, as ações na sua maioria davam certo. Como acontecia?
Tinha um verbinho muito usado: espalhar. Tudo que era importante, quem recebia a informação tinha obrigação de contar para outra pessoa. Todos se mobilizavam. Era o que funcionava. E dava certo.
- Qual a lição mais valiosa de tudo que vocês viveram?
Que sonhar é fundamental. Fomos uma geração muito generosa com a idéia de mudança. Naquele tempo tudo era coletivo. Era muito bonito isso nessa geração.
- Um assunto pessoal, mas relevante. Você assina esse livro “ Rebeldes e Marginais: Cultura nos Anos de Chumbo’ com o sobrenome que adotou recentemente. A troca do sobrenome a essa altura, não deu medo?
Não, nenhum. Fiquei muito bem comigo. Me sinto muito mais confortável.
- Um sonho pessoal e um coletivo?
Fico muito feliz de estar vivendo o que eu plantei há 60 anos. Foi o sonho que eu desejei e lutei. É muito gratificante, até espantoso. E como sonho coletivo, para o Brasil, acho que é um sonho de comunidade, da gente se ouvir mais, dividir mais. compartilhar, dividir riqueza, conhecimento e privilégios. O meu sonho é esse.