
Tem ciência
Na imensa feira que ocupava todo o Centro da cidade de Feira de Santana de minha infância, ganhei uns trocados, nos anos sessenta do século passado, vendendo umas bugigangas que iam de palha de aço a caixas de fósforos. Eu gostava de pensar que já era um homenzinho, porque trabalhava para ajudar (ou, pelo menos, não onerar) minha mãe. Mas gostava, mesmo, era de deixar a caixa de mercadorias sob os cuidados de algum feirante amigo para seguir os passos do cordelista Rodolfo Coelho Cavalcanti.
O imenso poeta da sagrada e fundamental literatura de cordel, que me deixava orgulhoso pela deferência no diálogo semanal – “Bom, poeta!”; “Bom dia, menino!” –, batia pernas entre as barracas de feijão, farinha, milho, carne do sol, amendoim, requeijão, queijo de coalho, rapadura, declamando versos que atiçavam minha imaginação e que ficaram (alguns) para sempre na memória:
“Fim do século dezoito
Na Bahia apareceu
Um pregador cearense
Que dizia: “Quem sou eu?”
– Sou o emissário divino
Salvador do nordestino
Que ouve o conselho seu…”
E seguia ele, recitando trechos de folhetos sobre as vidas de Antonio Conselheiro, Lampião, Assis Chateuabriand, Jesus Cristo, Canção de Fogo e muitos outros.
Um dia tomei coragem e o interpelei:
– Seu Rodolfo, eu também quero ser poeta. O que devo fazer?
– Estude! – respondeu e deu um passo à frente. Em seguida fez meia trava, olhou para trás e piscou um olho:
– Mas não estude muito não…
O que ele quis dizer, não sei. Mas, com certeza, tem ciência.
Os burrinhos
Feirinha nordestina.
Acocorado a um canto, o velho feirante negocia sua arte: lindos burrinhos de barro que fabricava durante a semana e levava para a exposição semanal. Artista famoso e apaixonado por cultura popular passava pela cidade, em turnê, quando pela manhã foi dar um passeio na feira e se encantou com o trabalho do artesão:
– Que lindos! Quanto custa, meu velho?
– Cinco reais cada.
O freguês contou a mercadoria: dezessete burrinhos.
– Embrulhe-os para mim. Vou levar todos. Presentear meus amigos.
– Como assim, todos?! – perguntou o velho.
– Todos. Dezessete burrinhos. Vou pagar os oitenta e cinco reais.
– Todos, nem pensar. Posso lhe vender uns sete ou oito, no máximo.
Estranhou. Argumentou. Achou sem pé nem cabeça a decisão do velho e pediu explicações.
Ele deu:
– Meu amigo, são nove horas da manhã! Se lhe vendo esses burrinhos todos, vou fazer o quê o resto do dia nessa feira?
(Do livro O carioca de Feira de Santana, Editora Mondrongo, 2024)