
Começo a coluna deste ano de forma diferente. A maioria dos artigos culturais recentes está sob o brilhantismo do filme Ainda Estou Aqui, eu inclusive, já dediquei artigo sobre assunto. Desta vez trago a vocês, caros leitores, o olhar de uma jovem, que inicia nesta coluna como estagiária, Mariah Macedo, sob minha supervisão, emprestando seu olhar atento e curioso sobre o cinema, objeto de seu interesse e cujos textos vem publicando. Abro este espaço ao seu trabalho com alegria em ver seu esforço e interesse pelo assunto, e claro, pele mérito de seus textos. E como não poderia deixar de ser, seu texto de estréia na coluna, nos traz suas impressões sobre o filme Ainda Estou Aqui. Seja bem-vinda, Mariah! A vocês, feliz ano novo e boa leitura!
Ainda Estou Aqui: E a cristaleira coberta de chumbo

Regime militar, Rio de Janeiro no início da década de 70 — os famigerados Anos de Chumbo — e os Paiva, uma família com uma vida perfeita; morando de frente para a praia, com a casa de portas abertas aos amigos e coberta de amor. Um dia, entretanto, Rubens Paiva é levado por militares e some do mapa. Eunice, sua esposa, busca pela verdade sobre seu marido durante anos, o que muda completamente o rumo de sua vida e a de seus filhos. Inspirado no livro de Marcelo Rubens Paiva e dirigido por Walter Salles, o longa-metragem cirurgicamente aborda a angústia vivida por uma família durante décadas de espera por uma resposta: O aconteceu com Rubens Paiva?
Mais do que apenas uma adaptação, o filme nos presenteia com um enredo rico e um elenco sensacional. Selton Melo dá a vida ao ex-deputado Rubens Paiva. Fernanda Torres brilha como Eunice, trilhando por uma jornada emocionante que termina em uma atuação sublime de Fernanda Montenegro, que com poucos minutos de tela e sem nenhuma fala, nos emociona ao final da obra.
Lembro de quando fui ver Ainda Estou Aqui, a sessão estava lotada. Minha amiga, sentada ao meu lado, comentou sobre a grande quantidade de idosos que estavam curiosos para destrinchar um pouco mais de nossa história; aquela que deixamos para trás. Confesso que achei interessante a comoção global e nacional gerada, não apenas entre aqueles que, assim como Os Paiva, viveram na década de 70, mas também entre um público tão diverso quando se trata de idade.
Por que “nacional” em itálico?
Porque nós brasileiros somos assim: costumamos não dar valor as nossas próprias produções, acredito que isso faça parte do “jeitinho brasileiro”, Nelson Rodrigues chama isso de “Complexo de vira-lata”. Quantas foram as obras, sobretudo cinematográficas, que nós já assistimos? (Posso dizer que assisti poucas.) Quantos foram os filmes, livros, músicas, pinturas que não demos valor? Será que precisamos que a nossa arte chegue ao público internacional para que ela seja intitulada como “excelente”? Onde quero chegar com essa reflexão é na simples afirmativa: Ainda Estou Aqui, assim como tantas outras criações, é um tesouro nacional, é nosso. E como nosso, é digno do nosso reconhecimento também.
São poucos os filmes que me deixam sem palavras, sabe quando você não sabe o que pensar? Ainda Estou Aqui me deixou assim, sem jeito. Algumas linhas e frases não seriam capazes de transmitir o sentimento que a obra me fez sentir. Costumo descrever algumas produções que tenho o privilégio de ter acesso, em um ou dois termos, mas acredito que um filme de tamanha magnitude não possa ser descrito com apenas uma palavra. Prometo a você, caro leitor, que nos próximos parágrafos tentarei lhe mostrar um terço do que gostaria de expressar, porém, acho válida a visita ao cinema mais próximo de você, para que entenda o que escrevi.
Creio que muito além de um patrimônio cultural, uma parte da nossa história, o filme nos evoca a observar os detalhes; a intimidade, especialmente quando se trata de Eunice, uma mãe, que de repente se vê sozinha e com uma angústia incessante no peito.
“Ao longo do tempo, percebi que a grande heroína desta história é minha mãe. Agora que ela está com Alzheimer, pensei que é hora de guardar essas memórias”. — Marcelo Paiva para a revista Época em 2015.
Durante a exibição eu senti essa inquietação. Uma inquietação tão delicada, mas ao mesmo tempo tão atroz. A atuação de Fernanda Torres me comoveu tanto, porque eu parecia estar ali, vivendo aquela situação terrível junto a ela, como se fosse sua sombra. E é interessante essa proximidade, esse abraço. Porque, mesmo diante de uma situação psicologicamente pesada, o amor dessa mãe por sua família, foi capaz de lhe dar sustento e prosseguir, pois sabemos que é preciso dar um jeito. E, afinal, eu acho que dentro de cada um de nós, existe essa criança que precisa de uma mãe forte e corajosa.
Para encerrar todo esse sentimentalismo…Quero confessar que poucos filmes me fazem chorar de verdade. Mas, Ainda Estou Aqui, me arrancou rios de lágrimas apenas com um olhar opaco e uma pele cheia de rugas. Era como uma cristaleira, cheia de porcelanas frágeis. Essa foi a sensação que Fernanda Montenegro, em seus poucos minutos de tela, me fez sentir. Uma atuação sem nenhuma palavra, mas arrebatadora.
“Fernanda Montenegro entrou para o Guinness Book por reunir a maior audiência já registrada para uma leitura filosófica, em agosto de 2024”. — Catraca Livre
Em suma, Ainda Estou Aqui é apenas uma amostra da nossa história, do que deixamos para trás e não nos lembramos. Dos gemidos angustiantes de um passado revestido por chumbo e opressão. E de uma luta em busca do alívio de saber o que aconteceu, não apenas com Rubens Paiva, mas com tantos outros desaparecidos, mortos e torturados durante a Ditadura Militar.
Assim como qualquer porcelana empoeirada, deixada de lado na nossa casa, Walter Salles, junto de Marcelo Paiva, reviram o passado e, delicadamente retiram o chumbo sobre elas. Assim como deve ser: Rever o passado para que não se repita o presente.
“Descansar não adianta
Quando a gente se levanta quanta coisa aconteceu.”
-É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo de Erasmo Carlos.
Por Mariah Macedo
Estagiária