
Marcelo Moutinho
Quem tem hoje seus 45, 50 anos ou mais já, com certeza, ouviu seus avós ou pais falarem de Zaquia Jorge. Ela foi uma vedete e atriz do teatro de revista brasileira. Em Madureira, tornou-se proprietária do único teatro de rebolado do subúrbio carioca, o Teatro de Revista Madureira, no final do ano 1950. Era conhecida como a “Estrela do Subúrbio” e “Vedete de Madureira”. E a nossa coluna de hoje traz o jornalista e escritor Marcelo Moutinho, que além de outras coisas é o biógrafo oficial da “Vedete de Madureira”. Além disso, Marcelo Moutinho está lançando o livro “O último Dia da Infância”. Um bate-papo maravilhoso que fala de cultura e, claro, de samba. Confira!
JP – Olá Marcelo! Você está publicando mais um livro – O último Dia da Infância. Você poderia comentar sobre essa nova produção? Quais são as novidades da obra?
O livro é dividido em quatro partes. No preâmbulo, está a crônica em que trato da morte da minha mãe – ela foi atropelada na véspera do Natal – e da questão do luto. No epílogo, temos uma carta de minha filha Lia, então com oitos anos, para a avó falecida. Entre esses dois textos, há duas unidades, cada uma com 18 crônicas. A primeira unidade contempla o olhar sobre a infância, a família, a casa, abordando também o isolamento imposto pela pandemia. Na segunda, esse olhar se espraia pela cidade. São textos embebidos da experiência de caminhar pela rua, de observar lugares e personagens da cidade. Então o livro tem um movimento que vai da morte para a vida, e da clausura para a fruição plena do sol.
JP – Com a publicação você retorna ao gênero crônicas. O que o motivou a retornar ao referido gênero?
Eu, na verdade, nunca deixei de escrever crônicas. Tenho uma coluna no jornal literário Rascunho, na qual publico um texto mensalmente. “O último dia da infância” é fruto desse trabalho, claro que com um viés um pouco distinto, porque não se trata de uma mera recolha de textos, mas de uma obra orgânica, pensada como livro.
JP – Você poderia definir o que é uma crônica? O que caracteriza um texto desse gênero?
Quando perguntado sobre isso, o Rubem Braga certa vez respondeu: “Quando não é aguda, é crônica”. Muitos já tentaram definir o gênero, cuja principal marca á a hibridez. A crônica é literatura, mas também jornalismo. Trata da cidade, mas a partir do olhar individual e subjetivo do escritor. Quase sempre parte de uma situação real, mas não fecha as portas para a ficção. Tem, em sua gênese, a temporalidade, mas muitas vezes perdura por anos e anos. Portanto, é arisca, está sempre escapando do aprisionamento das definições. Eu diria que a crônica é uma literatura de bermuda e chinelos.
JP – Quais são os temas que mais lhe fascinam para serem levados a uma página escrita?
A alma das cidades, as aparentes desimportâncias que nos cercam, a passagem do tempo.

JP – Você é o biógrafo de Zaquia Jorge. O que foi singular na trajetória de vida dela?
Atriz, empresária e dramaturga, Zaquia foi uma mulher singular em muitos aspectos. Primeiro, pela coragem de se desquitar aos vinte anos, abrindo a mão da guarda do filho pequeno para seguir a vida artística – o marido era contrário. Depois, pela iniciativa de abrir um teatro em Madureira, um bairro do subúrbio do Rio, mesmo quando todo o meio artístico lhe dizia que aquilo era uma loucura. O Teatro Madureira foi o primeiro em uma área suburbana/periférica no Brasil e, para tentar fazer seu projeto vingar, Zaquia enfrentou com talento e jogo de cintura o conservadorismo da população local. Além disso, criou esquemas de publicidade pioneiros, como a distribuição de folders com descontos nas peças, e passou a escrever parte dos textos, levando para os palcos os dramas e o cotidiano daquela gente em geral esquecida pelo poder público e desprovida de equipamentos culturais. A trajetória de Zaquia, além de ajudar a contar parte da história do teatro, do cinema e da música Brasil entre os anos 1940 e 1950, é também uma história de pioneirismos e de autonomia feminina.
JP – Você nasceu em Madureira, região do subúrbio do Rio de Janeiro. O que você destaca culturalmente nessa região da cidade?
Madureira foi por muito tempo considerada a capital dos subúrbios. Isso graças à pujança de seu comércio, referência para a população de dezenas de bairros próximos, mas também à força de sua cultura. Ali estão duas das escolas de samba que são esteio da cultura brasileira: o Império Serrano e a Portela. Ali está o único núcleo urbano de jongo no Rio de Janeiro, o Jongo da Serrinha. Ali está o Madureira Esporte Clube, de onde saíram craques como Evaristo de Macedo, Didi Jair Rosa Pinto, Marcelinho Carioca e, mais recentemente, Paulinho (hoje em atividade no Palmeiras). Poucos bairros das áreas de elite podem oferecer credenciais assim.
JP – Você nasceu num bairro onde o samba ferve. Você também escreve sobre esse gênero musical. Qual é a importância do samba para a vida da cidade?
O samba está umbilicalmente ligado à história e ao cotidiano do Rio de Janeiro. Não só como gênero musical, mas também pela experiência da roda, essa prática que tem um quê ritualístico. Há uma roda de samba em casa esquina e, ainda que tenham diferenças entre si, elas se parecem num aspecto que está ligado à sua gênese. É na roda que o carioca brinda à alegria, purga as tristezas, vislumbra o futuro que já vem. “O que espanta miséria é festa”, dizia o compositor Beto Sem Braço, na frase que acabou virando o enredo do Império Serrano para 2025. Acho que essa frase define também o Rio. É cantando que a gente afasta a miséria. Se não a financeira, a existencial.
JP – Quais são os seus projetos futuros?
Ainda esse ano vou lançar meu terceiro livro infantil. E, no momento, trabalho numa antologia de contos, que provavelmente será publicada em 2026.