
Era o segundo dia do maior acontecimento esportivo do país, à época, quando os noticiários suspenderam a cobertura dos Jogos Pan-Americanos no Rio de Janeiro e voltaram suas atenções para mais uma tragédia anunciada. O Brasil ainda se recuperava do maior acidente da história de sua aviação e tentava lidar com um apagão aéreo que se prolongava, dificultando, severamente, a vida de milhões de pessoas, quando uma nova desgraça se abateu em território nacional. Nem mesmo uma competição olímpica conseguiu contornar a rotina de cancelamentos e atrasos que fez dos aeroportos um dos piores lugares para se estar no ano de 2007. E essa situação fora de controle é apontada por muitos como um dos agravantes para mais um desastre.
Perto de completar 18 anos, o impacto desse trauma se mantém destacado na memória nacional. Trata-se de mais um episódio em que vidas se perderam por conta da omissão em ações preventivas, ditas prioritárias, nos livros de conduta de empresas e nas falas ensaiadas com assessores. CEOs, diretores de agências públicas e políticos, gastaram palavras defendendo os seus compromissos com a segurança dos passageiros antes de tudo e desviaram-se de diversas acusações de negligência. E em pronunciamentos confusos, alguns tentaram dar explicações sobre como dez meses depois que duas aeronaves colidiram na região centro-oeste, um voo lotado, saído do Rio Grande do Sul, chocou-se com um prédio na capital paulista ao tentar frear numa pista que havia passado por reformas recentes. As obras, que foram entregues sem a instalação de um tratamento na superfície do asfalto que facilita o pouso em condições climáticas adversas, são um capítulo à parte desse dramático período. Pilotos e especialistas se debruçaram nos fatos e analisaram o que aconteceu. E a surpresa com a tragédia, não se fez presente em seus testemunhos.
Há tempos, já se acusava as dificuldades de se aterrissar nas pistas de Congonhas, em São Paulo. Incidentes recentes, naquele mesmo ano, evidenciaram, ainda mais, a situação do principal hub do país. Um aeroporto responsável por um movimento diário e intenso de pessoas se deslocando para os mais diversos destinos. Uma ilha com aviões que viu uma cidade se multiplicar no seu entorno e que sempre desafiou comandantes ao longo dos anos, com seu trecho curto e a escassez de áreas de escape. É descrito por vários como uma espécie de porta aviões cercado de casas e prédios. Mas a explicação para o que levou o voo TAM 3054 a colidir com uma edificação da própria companhia matando todos a bordo e mais 12 pessoas em solo, aponta para muito além das condições do clima, da pista e da aeronave.
O Brasil vivia tempos de crescimento em diversos setores. O aquecimento da economia proveu, também, a oportunidade de muitos finalmente voarem, levando companhias aéreas a aumentar suas malhas. Mas os aeroportos não seguiram no mesmo ritmo. O estrangulamento desses espaços que não se mostravam mais capazes de acomodar o aumento no volume de passageiros e de aviões, somou-se ao desgaste iminente de outro setor. Controladores de tráfego aéreo, uma categoria que também não acompanhou a expansão dos voos comerciais, reivindicavam melhorias nas condições de trabalho. E somada a essa realidade, a recém criada Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC), em 2005, era acusada de ter em seu quadro técnico profissionais despreparados. A Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO), era questionada pelas condições dos aeroportos num movimento de cobranças entre si, de grupos que, de longe, trabalhavam em comunhão. Logo, o que seria mais uma terça-feira chuvosa num terminal lotado, que vivia os dias tensos de uma crise aérea que se arrastava, se revelou um pesadelo muito mais grave e sem precedentes. Às 18h48 do dia 17 de julho de 2007, poucos segundos depois de tocar o solo, um Airbus A320, vindo de Porto Alegre, não conseguiu reduzir a velocidade e avançou além da pista escorregadia em Congonhas. A aeronave planou sob uma avenida de carros e colidiu com um prédio da TAM Express matando instantaneamente todos os 187 a bordo. As cenas de funcionários saltando das sacadas e de tantos outros clamando por socorro, são chocantes. O país acompanhou em tempo real, a tensão do fogo consumindo o espaço, num terreno que abrigava, também, um posto de gasolina. Tudo isso, após um avião da Gol ser atingido por um jato Legacy sob o estado do Mato Grosso, vitimando 154 pessoas, no dia 29 de setembro de 2006. Começava um novo luto enquanto ainda se tentava processar um desastre tão recente.
O relatório final do Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos (CENIPA) apontou uma combinação de fatores como causa do evento. A chuva e a ausência dos groovings, ranhuras na pista que ajudam a escoar a água, se somaram a outras considerações apresentadas pela unidade subordinada a Força Aérea Brasileira. A posição de um dos manetes, na aeronave, também teria contribuído para que o avião não diminuísse a velocidade tão logo chegou ao chão. Recomendações da fabricante AirBus, quanto ao protocolo da posição desses controles, numa situação específica, se agregaram à complexidade da investigação, multiplicando os porquês em volta dessa desgraça que matou 199 pessoas ao todo. A precariedade na funcionalidade dos órgãos que sustentam o setor aéreo ficou flagrante a cada novo fato revelado. O envio equivocado de uma peça aleatória, ao invés de uma das caixas pretas para a análise, nos EUA, foi mais um dos absurdos no processo de elucidação desse caso. A pressão da opinião pública era imensa e, eventualmente, o dispositivo correto foi identificado entre os destroços restantes. Destaca-se nesse obscuro capítulo, a ação heroica dos bombeiros que conseguiram diminuir as chances de um cenário muito mais calamitoso, cercados por uma alta concentração de combustíveis.
Em três episódios, Congonhas: Tragédia Anunciada (Netflix) coloca em sequência os dias e anos que sucederam um momento devastador para inúmeras famílias que perderam seus entes queridos. Dá voz a suas histórias pessoais e revela como alguns se refizeram e seguiram adiante nesse luto coletivo. Como lidaram com o desaparecimento de parentes que, com muita dificuldade, puderam ter seus restos mortais identificados numa força tarefa do IML de São Paulo. Reúne personagens que acompanharam de perto, em setores diferentes, a apuração dos fatos que culminaram num trauma brutal que cobrou o governo e as empresas aéreas a agir e parar de recitar cartilhas de conduta em coletivas de imprensa. É uma revisão de uma época amarga e tensa no país, destacando a participação de tipos que chocaram a população com sua total falta de empatia em declarações inacreditáveis. Expondo a velha transferência de responsabilidade entre as partes que não querem se comprometer com o que sempre coube a elas cuidar. Através de dados técnicos do mundo da aviação e do meio jurídico a série compila, também, fragmentos diversos de reportagens e inúmeros depoimentos, oferecendo um recorte detalhado da tragédia por meio de uma edição bastante dinâmica.
Congonhas… vai além das respostas apresentadas aos parentes das vítimas e de explicações à sociedade. Aborda o lugar que esse evento tem na linha do tempo dos desastres evitáveis e o que os envolvidos fizeram, desde então, para diminuir as chances de uma nova tragédia acontecer.