
O texto de Marcia Zanelatto é denso, questionador, crítico e potente, narra o encontro de pai e filha no teatro, local de reaproximação, após um longo período de afastamento. Ele é um senhor de idade, ator maduro, tendo participado de diversas produções. Por sua vez, a filha está dando os seus primeiros passos como atriz. Portanto, na vida real, eles têm uma relação familiar.
No espaço cênico, os dois juntos irão atuar como profissionais do teatro. Eles encenam Rei Lear, de William Shakespeare. O pai na figura do rei, e a filha como a caçula do monarca, Cordélia.
Lear, com o intuito de diminuir o peso dos anos, dos cargos, negócios, e tarefas, decidiu repartir seu vasto império entre as suas três filhas e deixar a maior parte do território para aquela que mais o amasse. As mais velhas, com adulações e falsas afirmações, disseram que o amavam acima de tudo. Cordélia, a mais nova e verdadeira, surpreendeu afirmando que seu amor por ele é do tamanho de seu dever. Como ela se recusou a fazer juras de amor ao rei, foi expulsa do reino e nao teve do pai nenhuma parte do seu território.
A traição das filhas mais velhas, que rejeitam o pai em suas próprias casas, leva Lear à loucura e à vagância na tempestade. Cordélia, apesar da exclusão, é quem socorrerá o pai.
Ao se apropriarem do texto do escritor inglês e realizarem as respectivas interpretações dos seus personagens, a imagem refletida na tela superior acaba por espelhar a sua própria vivencia familiar e passam a refletir sobre as suas experiencias reais. Diversas questões despontam como o lugar dos afetos, os mecanismos de poder e hierarquia na estrutura familiar, o patriarcado e o machismo estrutural, o tempo, o envelhecimento e finitude.
Os personagens da peça se misturam aos da vida real, mesclando realidade e ficção, e promovendo reflexões.
A filha reflete sobre a longa ausência do pai, e questiona como ele poderia se imiscuir em sua vida e nas suas opções íntimas. Pergunta o motivo da figura materna não aparecer na história de Lear. E o pai argumenta que a sua presença acabaria com a tragédia.
Um dos momentos marcantes da encenação se dá quando o pai é banhado por sua filha. Completamente nu e dentro de uma caixa de vidro, a filha lhe ensaboa com uma esponja. Ao final, ela comenta que o avô dela expulsou seu pai de casa por ele querer ser ator. E perguntou: não seria meu pai a Cordélia do meu avô, pois se recusou a obedecer às suas ordens?
Mesmo tendo sido expulso de casa em função da opção profissional, o filho cuidou do pai na sua velhice, no fim da vida, quando dependia de alguém para lhe banhar. Como também Cordélia foi ao socorro de Lear na floresta, onde estava abandonado e padecendo.
Outro momento interessante se deu quando os dois tiraram suas vestes, ficaram nus, e, a seguir, se vestiram novamente com as roupas trocadas. A filha vestiu as vestes masculinas do pai. E este último vestiu as da filha. O pai vestiu a calcinha da filha numa inversão total de valores, destruindo as hierarquias familiares e os papéis definidos. Ele permaneceu assim até o encerramento da apresentação. E pareciam se sentir muito bem!
O texto busca o tempo inteiro questionar valores, aqueles que dominam a sociedade, subverter hierarquias, e destruir verdades absolutas e universais. E tal fato acontece num palco de teatro, espaço de resistência.
Os dois atores apresentam atuações consideráveis e dignas de crédito. Ricardo Kosovski e Luiza Kosovski apresentam corretas interpretações dos seus personagens, e emocionam. Eles exprimem sentimentos. O pai é um homem lúcido, busca impor os valores masculinos e dominadores, patriarcais, como também tem seus delírios. Por sua vez, a filha não aceita a submissão, expõe momentos de rebeldia, questiona o machismo estrutural, e quer a explosão do patriarcado. Estabelecem diálogos firmes, coesos, e vibrantes, e se movimentam intensamente naquela ribalta. Numa ação de total liberdade, ele tiram as vestes e ficam nus dentro do contexto da peça. E, a seguir, num ato em contramão, de forma avessa, numa inversão, eles vestem as roupas dos sexos opostos. Uma transgressão total!
Ademais, durante o decorrer do espetáculo, Luiza constrói um terràrio, a representação de um ecossistema dentro de um vidro fechado, contendo areia, pedras, terra e plantas de pequeno porte. É um microcosmo, uma mini representação da natureza e do universo.
Os terrários aludem ao contínuo ciclo da vida. E o seu cultivar sugere também o cuidado dedicado ao pai, já enfraquecido e oscilando entre realidade e delírio.
Pai e filha estão no palco. Por sua vez, nos bastidores, está o filho de Ricardo e irmão de Luiza, Pedro Kosovski. Nessa tríplice atuação familiar, Pedro realizou as marcações precisas e certeiras, e deu uma direção para a correta e equilibrada atuação dos dois atores.
Os figurinos criados por Fernanda Garcia são simples e adequados.
A cenografia criada por Cenografia: Beli Araújo e Lidia Kosovski é correta, e é constituída por diversos elementos cenográficos. No fundo há estantes com potes de vidros tampados. No chão há vasos de plantas, e, na parte frontal, há uma mesa com diversos materiais, ingredientes para a atriz montar o terràrio.
A iluminação criada por Lina Kaplan é pertinente, e contribui para realçar as interpretações dos atores de seus respectivos personagens.
Devora-me è uma peça teatral com dramaturgia potente e crítica, que questiona a hierarquia nas relações familiares e realiza inversões; uma dupla de atores que mescla interpretação e emoção; e uma direção competente.
Excelente produção cênica!