
Estreou Sonhei Com Você no teatro Poeirinha.
O texto de Susana Ribeiro é potente, realista, humanista, anti-patriarcado, apresenta uma crítica à valorização do uso excessivo da imagem e das telas na sociedade contemporânea, sobretudo em função do desenvolvimento dos meios técnico-científicos. Computadores, celulares, entre outros, intensificam a produção de imagens, valorizando o virtual, em detrimento do contato físico e íntimo. O texto sublinha que está faltando a pele na pele, o olho no olho, o abraço apertado repleto de carinho e afeto, sentir o coração.
O texto narra o encontro improvável entre Simone, interpretada por Susana Ribeiro, uma fisioterapeuta, de classe média e que já alcançou os cinquenta anos de idade, e Daniel, interpretado por Nicolas Vargas, estudante de cinema, e vinte anos mais jovem, no ápice da experimentação.
Simone será personagem de um documentário de Daniel. Durante as filmagens, entre uma conversa e outra, começam a se aproximar e a desenvolver uma certa intimidade, descobrindo semelhanças entre os mesmos. A partir desse momento de aproximação, Simone deixa transparecer toda a sua plenitude, seus desejos, enquanto Daniel revela inseguranças e preconceitos em relação àquela mulher mais velha e de uma geração anterior a sua.
Simone é uma mulher da “geração analógica”, do contato físico, de uma época em que as pessoas se viam e conheciam presencialmente. Um mundo onde a tecnologia digital não era tão presente como é hoje. E, a partir do encontro presencial, começavam a desenvolver relações sociais e íntimas. Para Simone, o encontro com Daniel lhe proporcionou um momento de liberdade, de exercício da sua plenitude, de realizações sexuais, uma forma de se libertar do domínio do patriarcado e do preconceito estrutural.
Por sua vez, Daniel pertence a uma geração bem mais atual, que dialoga pelos modernos meios técnico-científicos, como as redes sociais, internet digital, smartphones, e aparelhos celulares. Ele é virtual, valoriza a imagem através de uma lente ou câmera. A aproximação de Simone despertou no jovem momentos de insegurança, tensão, medo, e preconceito.
O texto deixa transparecer o conflito de gerações, visões de mundo divergentes. Contudo, eles também se aproximam, trocam olhares, passam a conviver, e percebem que não são tão diferentes assim. Há aproximações.
O mito de Narciso e Eco, diretamente relacionado com a questão da imagem, é apropriado para narrar a história de Simone e Daniel. Ele atravessa o texto. Como Narciso, que ficou preso à própria imagem refletida na superfície do espelho d’água, a sociedade contemporânea também está fortemente impregnada pela imagem. Homens e mulheres presos à imagem da tela, por meio de selfies, fotos, entre outros. Daniel vive essa realidade virtual. Está preso à tela. E Simone, que embora seja do mundo analógico, também tem que lidar com a própria imagem, com a percepção que ela tem de si mesma e da sociedade na qual ela está inserida, machista, do patriarcado, do preconceito estrutural, que ela tem de lutar para destruir e se libertar. Narciso está em Eco, e vice-verso.
Os dois atores têm uma atuação de qualidade. Eles estão juntinhos e misturados, entrosados e afinados. Dominam o texto com firmeza, e passam com clareza; dominam o palco, se movimentando e deslocando intensamente. Eles se apresentam em pé, sentados, e deitados sobre aquele tapete roxo. Estão livres para atuar e interpretar, e emocionar.
A direção é da própria Susana Ribeiro, que focou no texto, e deixou os dois atores a vontade para interpretar livremente os seus personagens.
A cenografia criada por André Cortez é mínima. Os dois atores atuam sobre um tapete roxo, com duas cadeiras. Há também um pequeno balde com sabao líquido, e um lençol.
Os figurinos criados por Susana Ribeiro são simples e adequados. Roupas do quotidiano em tons verde e cinza.
A iluminação criada por Bruno Aragão apresenta um bonito desenho de luz, impera a luz branca e lilas, e realça a interpretação dos atores de seus personagens.
Sonhei Com Você é um texto que apresenta uma reflexão crítica sobre o lugar central que a imagem ocupa no mundo contemporâneo; dois atores com atuações convincentes e de qualidade; e uma direção que valorizou a livre interpretação dos atores, deixando-os a vontade no palco.
Excelente produção cênica!