
Ao longo de quase cinco décadas, todos os membros do U2, em algum momento, consideraram sair da banda. Essa é uma das revelações, entre tantas, destacadas em Surrender – 40 músicas, uma história, livro de memórias do vocalista Bono. Mas, de acordo com o autor, está no som que os quatro produzem juntos e na cumplicidade entre amigos de adolescência, o que assegura a longevidade de um dos grupos mais importantes da história do rock. Lançada em 2022, a publicação cobre diversos momentos da vida do músico que, para promovê-la, se lançou numa breve turnê, à época, performando seus relatos, num show de (quase) um homem só.
Bono – Stories of Surrender, registro documental dessas apresentações, chega no Apple TV+ depois de uma entusiasmada recepção no último Festival de Cannes. Trata-se de um recorte visual musicado e recitado por Paul Hewson, nome de batismo do artista. Com segmentos que homenageiam seus pais Bob e Irís, sua esposa Ali e seus parceiros de banda Adam, The Edge e Larry, o show percorre episódios marcantes e fundamentais para a formação de um cantor que ouviu do pai, por muito tempo, que não passava de um barítono que acreditava ser um tenor. Num habitat inusual aos olhos de muitos fãs, Bono divide com a audiência momentos e inspirações que o levaram a escrever sucessos, junto de seus companheiros, enquanto tentava conciliar sua fé ao papel de astro do rock. Com elementos cênicos simples, mas carregados de simbolismo para cada história revisitada, a apresentação conta com o diretor musical Jacknife Lee, a violoncelista Kate Ellis e a harpista Gemma Doherty, que rearranjam alguns dos grandes sucessos do U2, ressignificando canções de diversas eras do conjunto.
Por quase toda a vida, Bono cantou seu caminho para os palcos e além. Identificou na primeira guitarra que ganhou do irmão, um escudo. Reconheceu na música um meio de acessar o pai, um tenor (como ele) que se silenciou após a morte de sua mãe, quando ele tinha apenas 14 anos. E através de suas letras descobriu a melhor forma de se expressar.
Stories of Surrender é uma gravação íntima e impecavelmente bem produzida. Com filmagens em Nova York e em Nápoles, o documentário faz um uso deslumbrante do claro-escuro, numa cinematografia de movimentos leves, conduzida por Erik Messerschmidt (vencedor do Oscar de Melhor Fotografia, em 2021, por Mank). Sua câmera vislumbra a distância e por vezes circunda o cantor, levando o espectador ao sofá a se sentir no teatro, mais próximo de toda a ação. Com cortes suaves, o filme ressalta um Bono reflexivo sobre ter crescido num país à beira de uma guerra civil em moldes sectários e que disserta sobre os mais diversos temas. Do pai católico e da mãe protestante, passando por conflitos internos de uma vida rock n’ roll onde a presunção e o exibicionismo se fazem tão presentes.
Longe do início de uma jornada solo e de qualquer indício de que o U2 está perto do fim, esse documentário é uma forma inventiva e graciosa que o letrista encontrou de promover o seu livro e homenagear quem o ajudou a escolher as melhores palavras para contar sua história até aqui. Em desabafos melódicos, partilhando o entrelinhas de algumas canções, o tenor vindo do punk-rock versa sua vida além dos discos e se expõe a vontade num território familiar e ao mesmo tempo incomum, para os que se acostumaram a vê-lo em alguns dos maiores estádios do mundo.