

Essa fusão, no entanto, não é acidental. O fato é que o Estado norte-americano já não atua mais como mediador entre classes, nem como instância de equilíbrio institucional. O que se observa é a emergência de uma oligarquia transnacional plenamente assumida, que orienta a política estatal como extensão direta dos interesses corporativos. Trata-se do colapso da política como forma histórica, substituída por uma lógica de administração de exceção permanente em favor das grandes corporações — em especial, aquelas que controlam infraestrutura digital, informação e finanças. Nesse sentido, tanto o trumpismo quanto o governo Biden foram sintomas distintos da mesma decomposição: a falência da soberania do Estado Nacional diante da crise do valor.
No início da modernidade, Thomas Hobbes concebeu o Estado como uma entidade artificial e soberana — o Leviatã — criado para interromper a guerra de todos contra todos. Sua legitimidade nascia do pacto em que indivíduos renunciavam à sua liberdade irrestrita em troca de segurança, mediação e ordem. Esse Leviatã era constituído não somente por corpos, mas por uma estrutura simbólica baseada na autoridade, no contrato e na previsibilidade.
Durante séculos, o Estado hobbesiano foi a encarnação política da forma social capitalista, mediando o valor, o trabalho assalariado, a cidadania jurídica. Sua força estava ancorada na capacidade de manter a circulação da mercadoria, o funcionamento do mercado de trabalho e o pacto social da modernidade. Seria o gestor e garantidor da forma-valor, que organizava a vida por meio do trabalho abstrato, da equivalência monetária e da temporalidade padronizada.
Hoje, essa mediação está em ruínas com a falência contínua dos Estados, endividados e sem poder para proteger seus próprios cidadãos. É hora de uma nova forma de controle: É hora das Big Techs. No mundo distópico que vai se formando, são elas que se apresentam para controlar a tudo e a todos. O Leviatã digital: Um poder sem contrato, uma dominação sem conteúdo, vai ascendendo como perfeito sucessor da forma de domínio dos Estados Nacionais.
As Big Techs não são somente competidoras do Estado hobbesiano.Elas são suas herdeiras deformadas, expressão do esgotamento interno da forma social moderna. Não representam mais os corpos dos cidadãos, mas os dados de suas navegações. Não fazem pactos, somente impõem termos de uso. Não protegem, somente extraem. Estamos diante de um Leviatã feito de algoritmos, servidores e redes neurais, cujas decisões não emanam de uma vontade soberana ou de um pacto político, mas de automatismos estatísticos voltados para a extração de valor residual num sistema em colapso. Se o Leviatã de Hobbes pretendia conter a guerra, esse novo Leviatã parece perpetuá-la em outra chave: A guerra cibernética, a competição algorítmica, a vigilância permanente, a guerra de todos contra todos por atenção, engajamento e dados.
A ascensão das Big Techs não se explica pela eficiência do empreendedorismo ou pelo avanço da ciência. Elas são produtos diretos do colapso interno da forma-valor, como analisou o pensador alemão Robert Kurz no corpo de sua obra. Para ele, trata-se de um sistema que, ao automatizar a produção, elimina sua própria substância vital — o trabalho abstrato — e se torna incapaz de continuar se autovalorizando.
Nesse vácuo, as corporações digitais surgem como mecanismos de sustentação da forma mercantil em sua fase zumbi: explorando a vida não mais como força produtiva, mas como resíduo emocional, comportamental e simbólico. São estruturas parasitárias que vivem da hiperconexão, da desinformação rentável, da financeirização do cotidiano, da vigilância total. No mundo distópico, por elas administrados, o controle social se dá pela força das Bets, da Realidade aumentada ou mesmo pela lógica das Redes Sociais.
Vivemos hoje o esgotamento das mediações históricas que sustentaram a modernidade capitalista. A política, o direito, o Estado e até mesmo a própria ideia de cidadania perdem seu conteúdo real diante da autonomização cega do capital, que já não necessita das antigas formas institucionais para se reproduzir — ou melhor, para continuar se movendo em sua marcha zumbi rumo à autodestruição. As tentativas de reação dos Estados nacionais, por legislações parciais ou de agendas regulatórias, são frágeis, tardias e incapazes de enfrentar o problema em sua raiz. A crise não está na ausência de normas, mas na falência da substância que essas normas pretendem organizar: o valor enquanto forma social central do mundo moderno.
Nesse contexto, as Big Techs não somente preenchem o vácuo deixado pelas instituições públicas; elas o ampliam, convertendo a administração da vida em um processo automatizado, orientado por algoritmos, plataformas e lógica de mercado em tempo real. A própria política, enquanto mediação simbólica e representativa, transforma-se em uma função residual, reduzida a protocolos de contenção, marketing de gestão e discursos de fachada. O Leviatã hobbesiano, figura da ordem fundada no pacto racional entre indivíduos, tornou-se um espectro sem musculatura nem soberania. Seu lugar foi ocupado por uma nova forma de poder desterritorializado, cibernético e opaco, onde a dominação já não se exerce por decretos, mas por interfaces, notificações e termos de uso que ninguém lê.
A gestão algorítmica da barbárie se apresenta, assim, como um substituto perverso da política: ela não emancipa, não decide, não representa — somente calcula, rastreia e prevê. É a administração do mundo como um banco de dados sem história, sem memória e sem horizonte. A própria vida humana se torna variável de um sistema que já não reconhece limites éticos, fronteiras nacionais ou vínculos afetivos. Trata-se de um mundo onde o colapso da política é mascarado por dashboards, relatórios ESG e promessas de inovação infinita — mas cujo fundo real é a impossibilidade estrutural de seguir adiante com a forma social capitalista..Quem é, na verdade, o inimigo principal?
A recente entrevista concedida ao Jornal Folha de São Paulo por Ricardo Zúñiga, o conhecido conselheiro do Governo Obama, vem reforçar o que já há algum tempo vemos com nitidez: O Estado norte-americano não atua mais como mediador institucional entre interesses divergentes, mas como operador direto das oligarquias que controlam os fluxos de valor e de informação em escala global. A carta de Trump ao Brasil, a qual fizemos alusão no início deste artigo, mencionando abertamente a anistia a Jair Bolsonaro e o fim dos processos de regulação contra as big techs, não foi um equívoco diplomático, mas uma declaração de guerra política travestido de tarifa comercial. Trata-se de uma interferência frontal e deliberada na política interna brasileira — mobilizada em nome da proteção de plataformas privadas que, cada vez mais, atuam como estruturas soberanas sem território. Zúñiga argumenta que desde o início estava claro que a gestão Trump não tinha interesse em manter um relacionamento “normal” com Lula.
“Não se pode culpar o governo brasileiro pela falta de comunicação entre os dois governos. Isso não foi uma decisão do lado brasileiro”, afirma.”
Zúñiga, é claro, ao apontar que não existe mais distinção efetiva entre o campo político e o campo econômico quando se trata dos interesses das corporações digitais. A própria noção de negociação comercial é deformada por exigências que não dizem respeito à balança, produtos ou tarifas, mas a controle de narrativas, proteção à desinformação e blindagem institucional das big techs contra qualquer forma de responsabilização pública. A política, nesse novo cenário, já não representa o espaço do possível, da escolha ou do pacto, mas se converteu em uma extensão administrativa da lógica corporativa — onde decisões são tomadas por CEOs e implementadas por presidentes.
Ao contrário do que muitos pensam, não foi a ação do filho de Bolsonaro que deflagrou a punição do Brasil através da política do tarifaço, e sim a ação direta das Big Techs, inconformadas que estão com as últimas decisões do STF, que lhes imputou responsabilidades no que for postado nas redes sociais que controlam, e de onde retiram seus lucros. Inadmissível é, pois, o silêncio de toda a mídia ao omitir este dado para o público brasileiro, não lhes dando o conhecimento total da situação. Nesse sentido, não dando condições para que o inimigo principal seja identificado neste episódio.
Enganam-se aqueles que acham que a derrota política dos bolsonaros nos levará a uma situação de completa independência e soberania. Não nos esqueçamos que a carta do Trump tinha dois eixos de insatisfação : O da chamada perseguição ao Bolsonaro e as responsabilidades dadas pelo STF às Big Techs.O problema se torna então muito maior, pois estamos atados às cordas de dominação digital das grandes corporações que controlam o conhecimento.Saber quem é o inimigo principal se torna fundamental para que tenhamos fôlego de sobreviver na barbarie que se vai instalando.