
Num gesto de total indiferença à laicidade do Brasil, cultos religiosos seguem se estabelecendo como um palanque fundamental para a ascensão política. O recrudescimento do uso desses espaços como forma de garantir mais votos se agravou a partir de 2018, com pastores se apresentando, cada vez mais, como cabos eleitorais de luxo, promovendo e guiando candidatos radicalizados e assumindo protagonismo em algumas campanhas. Alguns destes mentores também se formalizaram em cargos públicos impondo a defesa de escritos bíblicos ao Congresso Nacional e até mesmo ao gabinete do chefe do executivo. De Brasília, assim como em seus templos, pregam contra a “volta do comunismo” e atacam pautas como o aborto, relacionamento homoafetivo e a descriminação das drogas. O flerte com a teocracia vem de longe e a chamada bancada evangélica cresce vertiginosamente a cada quatro anos. De acordo com o último censo do IBGE, hoje, os seguidores dessa doutrina representam 26,9% da população brasileira.
O poder de líderes religiosos no território nacional ganha uma perspectiva mais detalhada no documentário Apocalipse nos Trópicos (Netflix). Neste novo trabalho de Petra Costa a intimidade entre pastores e personagens eleitos é exposta graças ao acesso à rotina dos que, de forma egóica, contam como fazem valer suas vontades. Sempre em nome de Jesus, eles ditam pautas e interferem em votações dos mais diversos temas. E de seus aviões, advertem que contrariar suas vontades pode custar muito caro, graças a mobilização de milhões de fiéis que absorvem seus sermões sem questionar. No entendimento de muitos destes, os cristãos devem ocupar um papel de liderança em todas as áreas da sociedade. Essa interpretação é um dos alicerces da chamada Teologia do Domínio.
Petra escreve, dirige e produz uma obra indispensável para compreender como chegamos aos tempos em que a constituição não é o livro prioritário por uma parcela considerável dos políticos. Com uma câmera atenta e um olhar preciso, aponta detalhes de flagrantes de alguns eventos recentes que reviveram velhos traumas, nos últimos anos. E destaca o início da intervenção de pregadores religiosos, muito antes da ascensão e metástase de uma das famílias mais parasitárias e nocivas da história da política nacional. Assim como em Democracia em Vertigem (2019), também disponível na Netflix, as palavras francas da realizadora, em off, são um aditivo perfeito à história contada. Suas lentes alcançam personagens antigos e cada vez mais influentes nos mais variados gabinetes. E sua voz serena contrasta com o desequilíbrio de parlamentares que se plantaram na capital federal. As imagens de destruição na Praça dos Três Poderes, no dia 8 de janeiro de 2023, geram mais impacto com a fala da documentarista que discorre sobre os anos que antecederam uma nova ação golpista. Este episódio é um dos capítulos mais bizarros protagonizados pelos que, há tanto tempo, defendem o mote: Deus acima de todos. Suas condutas delitivas foram expostas pelos próprios e o filme faz um uso categórico dessas perspectivas registradas por telefones e transmitidas em tempo real, à época. Os que pediram aos céus uma intervenção militar, ajudaram a empurrar o Brasil à borda de um precipício. E hoje, já é sabido, que o abismo encarou o país de volta, sem piscar.
Apocalipse… revisa a política anti-vacina, os ataques ao sistema eleitoral e a apropriação do uso da religião como meio de propagar intolerância e atentar contra direitos assegurados constitucionalmente. Destacando anos recentes em que o Brasil foi governado através de lives e tweets, por um grupo que colocou em prática um projeto dedicado a sustentar, em todos os poderes, representantes terrivelmente comprometidos com certas crenças. Um recorte repleto dos principais momentos de uma ameaça ainda à vista e que tentou avançar além do ano de 2022.