
JP – Olá, Natalie! “Entre: silêncio, palavra e delírio” é sua mais nova produção. O que você nos apresenta?
Olá, Chico. Obrigada pela disponibilidade e pelo interesse no livro “Entre silêncio, palavra e delírio”. O livro é resultado de uma residência artística que realizei na Casa do Povo, em São Paulo, e da pesquisa artística que venho desenvolvendo, na qual procuro refletir sobre memória, sobrevivência e testemunho. Partindo das minhas experiências familiares, fui expandindo esses conceitos, buscando compreender essas palavras e suas relações.
Na residência na Casa do Povo, tive a oportunidade de “mergulhar” em uma biblioteca, ainda sem forma, de livros em iídiche. Uma língua que não leio, não falo, mas sei escutar. E saber escutar, aqui, significa resgatar memórias reais e inventadas. Memórias de alguém que quer pertencer, entender, perpetuar.
Diante daqueles livros sobreviventes, que lutavam por um espaço, borravam fronteiras e tempos, entendi que estava diante da história da minha família.
Esse livro teve origem em um diário que escrevi ao dialogar com esses livros. Ao reler o diário após a residência, percebi que todas as palavras usadas eram tentativas de traduzir os silêncios, as palavras excessivas e os delírios que reconheço desde a infância. Para lidar com essa “familiaridade incômoda”, fui retirando as vozes altas e os falatórios, deixando apenas o que me parecia essencial: as vozes baixas, as palavras ainda não sabidas, os sons internos. Convidei a curadora Galciani Neves para, juntas, explorarmos a melhor forma de traduzir esse silêncio. Chamamos a designer gráfica Fernanda Porto para pensar o livro. Dessa troca nasceu uma obra tátil, silenciosa, que exige tempo e atenção.
JP – Como você define o termo “memória”?
Será que memória é um termo? Parece-me que “termo” nos leva a algo formatado, definitivo. Penso a memória como algo que está sempre nos escapando, mas que tentamos resgatar e manter. Mais do que palavras, a memória se dá através e com o corpo: como um abraço aconchegante, que te envolve, dá chão e, ao mesmo tempo, te faz flutuar.
No meu trabalho, entendo o conceito de memória como algo vivo, em constante movimento de espaço e tempo. Memória é o sentir, e a sensação que esse sentir deixa: uma marca.
JP – Por que a sua memória familiar lhe interessa? Quais são os silêncios que você apresenta na obra?
Entendo que, para nos constituirmos como indivíduos, precisamos primeiro pertencer. Quando crianças, nos vemos através do olhar do nosso entorno: ouvimos suas falas, aprendemos a ler seus corpos e, assim, criamos imagens e crenças, existimos.
As memórias da minha família, sem dúvida, me constituem. Muitas vezes se apresentam amargamente, outras tão doces… insuportáveis, reconfortantes. Por muito tempo, neguei todas elas. Enterrei-as. Mas elas sempre ressurgiam. Memórias são como o vento…
Minha avó era silenciosa. Não falava sobre o campo de concentração; dizia que o número marcado em seu braço era o telefone de uma amiga. Ou seja, não havia palavras capazes de expressar sua experiência. Meu avô, por outro lado, escreveu 14 romances. Nos almoços de domingo, sentava-se à mesa e narrava detalhadamente as histórias da guerra.
O silêncio era confuso e, ao mesmo tempo que me parecia mais agradável que as palavras, me dava medo. Deixava-me numa zona ao mesmo tempo desconhecida e familiar. O silêncio não era páginas em branco, mas páginas vazias. Como preenchê-las? Como entendê-las?
Nessa obra, tive a oportunidade de experimentar esse silêncio: as páginas vazias criam um ritmo, uma textura, uma presença. Nada fácil vivenciar a ausência… Ainda hoje, folheando as páginas vazias dessa obra, tenho estranhamentos, dificuldades em responder à falta de palavras, à falta de certezas. Por outro lado, tenho um prazer incrível em roçar nas possibilidades que os vazios nos dão. Fico vulnerável. E o que é a vulnerabilidade senão a audácia de viver?
JP – Quais são as características do seu fazer artístico?
Acredito que o fazer artístico demanda tempo para ser compreendido. De início, pode parecer algo intuitivo, mas, na verdade, com o tempo e a prática, percebi que, para mim, o processo necessita de persistência, estudo, pesquisa e troca. Parto sempre de algum incômodo, que vem como uma virose ou uma paixão. Sou contaminada! Invadida por uma questão, obcecada por uma palavra, inundada por uma dor. É assim que algo começa.
Na maioria das vezes, não sei qual materialidade darei a esse fluxo. Mas sei que gosto muito de trabalhar com outras pessoas, de me juntar, pois isso me permite usar técnicas que não conheço, ferramentas desconhecidas, mídias diversas. Sinto que o trabalho sempre ganha com a polifonia, com esse encontro de experiências e vozes.
Não imponho uma pressa, mas busco um ritmo. Assim, o trabalho vai se dando. Não é mágica! É uma construção bem sedimentada e pensada. Não em busca de uma resposta, mas sim de possibilidades. E essas sempre me abrem para mais perguntas.
JP – Como você define a arte?
Não gostaria de definir “a arte”. Se a definisse, ela não seria mais arte, e sim certeza. Vejo “a arte” como algo vivo, que me coloca diante do novo, daquilo que não havia pensado, imaginado, cheirado, sentido. Para mim, tem que ter um frescor (independente de ser bom ou ruim). Isso não significa que tenha que ser algo nunca visto, novo. A arte é o momento em que percebo como uma obra se abre para mim, como nos olhamos. Como se, a cada mirada, eu pudesse descobrir, desvelar algo. Não acredito numa visada totalizadora, totalitária e absoluta. Não gosto de pensar a arte de forma colonizadora, cheia de certezas, regras e hábitos. Só a arte (e aqui incluo a literatura) pode abrir caminho para transformações.
JP – Qual é a função que o artista deve cumprir na sociedade?
Como artista visual, gostaria de contribuir para o deslocamento, o desmoronamento das certezas. Como propunha Hannah Arendt, devemos buscar “ficar com uma questão”. Não cair na tentação de encontrar respostas rápidas e definitivas, mas sim manter a disposição para questionar. Essa deveria ser a função de um artista na sociedade.
JP – Como você relaciona Holocausto e arte?
A arte entra, e está, na minha vida como uma forma de me relacionar com o mundo. Ela me oferece uma lente que me faz ver sob novas perspectivas. Usar a arte para falar dos horrores e traumas que meus antepassados sofreram foi uma forma que encontrei de lidar com uma dor que não era diretamente minha, mas que me constitui. Já o livro “Entre silêncio, palavra e delírio” foi um modo de revisitar, repensar, reescrever não só as minhas dores familiares, como também as que sinto diante dos acontecimentos atuais, que me paralisam, mas também me dão uma urgência e um desejo de me pronunciar, me posicionar e tentar dialogar. Abrir espaços de possibilidades e reconstruções.
JP – Quais são os seus projetos futuros?
Continuar me apaixonando pelas palavras. Abrindo-as e me abrindo para novas possibilidades e escutas. Que a palavra se torne corpo e, como palavra-corpo, se constitua como fundo. Não o fim, mas aquilo que torna a palavra sempre uma possibilidade. Palavra-corpo é estar vulnerável: abrir a palavra e o corpo para novos sentidos e sentires; estado de possibilidades, onde a consciência se liberta do tempo e do espaço convencionais. Como uma loucura saborosa. Como comer areia banhada pela água gelada do mar… como dançar no meio da rua… como sorrir sem motivo…
A palavra pode me salvar ou me afundar. Mas meu projeto é que a palavra-corpo possa me aproximar do momento que me coloque em estado de transbordamento, sempre com uma escuta nova, e assim, não dar ouvidos aos monstros, ao tempo dos monstros que estamos vivendo.