
A aprovação da chamada PEC da Blindagem pelo Congresso Nacional recoloca em pauta uma questão central para a democracia brasileira: até que ponto o sistema político pode se transformar em um escudo de autoproteção contra a justiça comum? A proposta de condicionar o prosseguimento de ações penais e até a manutenção de prisões em flagrante à autorização do plenário da Câmara ou do Senado não apenas fere a isonomia da lei, mas também abre espaço para uma perigosa convergência entre política, crime organizado e elites econômicas.
Historicamente, a imunidade parlamentar foi concebida como proteção da palavra, do voto e da atuação política contra perseguições arbitrárias. No entanto, a PEC amplia esse instituto a ponto de convertê-lo em uma blindagem institucional para práticas criminosas. Se aprovada em definitivo, um parlamentar acusado de homicídio, tráfico ou corrupção só será processado se seus pares permitirem, o que, em um parlamento atravessado por corporativismo, troca de favores e fisiologismo, significa transformar o Legislativo em tribunal de exceção para os próprios membros.
Essa mutação não pode ser compreendida isoladamente. O Brasil atravessa uma situação em que três dimensões se entrelaçam: a captura política, o controle territorial e a sustentação financeira ilícita. O sistema político, já vulnerável ao capitalismo de compadres, torna-se ainda mais permeável ao ingresso de parlamentares diretamente ligados a milícias, facções e cartéis. O domínio territorial, exercido em grandes áreas urbanas e rurais, converte-se em capital eleitoral, ao mesmo tempo em que garante uma base social coercitiva para manter esses grupos no poder. E a sustentação financeira, revelada em sucessivas operações da Polícia Federal, mostra como atividades ilícitas, como combustíveis, transportadoras, apostas e criptomoedas, alimentam tanto as estruturas criminosas quanto o mercado formal.
Nesse cenário, um capítulo fundamental é o da blindagem orçamentária. As chamadas emendas secretas, distribuídas de forma opaca e sem transparência efetiva, criaram um sistema em que recursos públicos são utilizados como moeda de troca para fidelidade política, irrigando bases eleitorais e consolidando currais em áreas inclusive dominadas por milícias e facções. Ao mesmo tempo, os fundos partidário e eleitoral, que movimentam bilhões de reais, asseguram às cúpulas partidárias o controle quase absoluto sobre quem terá financiamento para se eleger ou se perpetuar no poder. Esse arranjo garante uma espécie de reeleição perpétua dos administradores desses fundos, já que concentram recursos e decisões. A recente inclusão dos presidentes de partidos no foro privilegiado completa a blindagem: aqueles que controlam os cofres bilionários da política passam a responder apenas ao Supremo Tribunal Federal, reforçando a distância entre elites dirigentes e qualquer possibilidade real de responsabilização.
Trata-se de um círculo vicioso: o crime organizado financia campanhas, os eleitos atuam em sua defesa, o parlamento aprova mecanismos de blindagem, e o capital ilícito é reciclado em operações financeiras sofisticadas que se misturam ao capital legal. O que antes parecia excepcional torna-se parte constitutiva do funcionamento do Estado.
Esse processo brasileiro não pode ser dissociado da crise estrutural do capitalismo global. Desde as últimas décadas do século XX, a aceleração da automação e a digitalização das cadeias produtivas reduziram drasticamente a proporção de trabalho vivo empregada na produção de mercadorias. Como o valor no capitalismo só se constitui através do tempo de trabalho humano abstrato, a substituição crescente por trabalho morto, isto é, máquinas, algoritmos, inteligência artificial, gera uma insuficiência estrutural de produção de valor.
Esse declínio não elimina a produção de bens, mas mina a base que sustenta o sistema, a valorização do capital. O que se segue é a hipertrofia de uma esfera financeira fictícia, uma espécie de capitalismo de cassino, que desloca o centro da acumulação para bolhas especulativas, derivativos, fundos e moedas digitais. Esse capital fictício não resolve a crise do valor, mas a posterga, criando um sistema cada vez mais instável e dependente de fluxos especulativos.
No Brasil, a captura política e mafiosa se encaixa nessa engrenagem mundial. O crime organizado não é um corpo estranho ao capitalismo global em crise: é parte de sua adaptação. Milícias, facções e esquemas ilícitos oferecem territórios de controle, votos e dinheiro vivo, enquanto os fundos partidários e os mecanismos orçamentários canalizam recursos estatais para sustentar a reprodução política dessa elite. Ao mesmo tempo, bancos, empreiteiras e fundos de investimento absorvem recursos ilícitos, transformando a criminalidade em um ramo complementar da economia fictícia.
A ultradireita brasileira surge como força ideológica e política que dá coesão a esse processo. Ao pregar a superação do Estado liberal, com suas instituições de freios e contrapesos, em nome de um Estado forte, centralizado e punitivo contra os mais pobres, ela fornece a justificativa simbólica para a institucionalização da violência e para a normalização da associação entre política e crime. O discurso contra o “sistema” esconde a construção de um sistema paralelo ainda mais fechado, em que a lei se aplica seletivamente e a blindagem parlamentar e partidária garante a perpetuação de elites criminalizadas.
O agronegócio, parceiro estratégico desse empreendimento, ocupa um lugar central. Sua força econômica e territorial o transforma em aliado natural das dinâmicas de captura, seja pela proximidade com milícias rurais e forças de expropriação da terra, seja pela sua integração ao capital financeiro global. Ao lado da ultradireita, o agronegócio participa do mesmo pacto de autoproteção, sustentando bancadas poderosas que reforçam o parlamento blindado e que, em troca, recebem isenções fiscais, perdão de dívidas e liberdade para expandir fronteiras agrícolas às custas da destruição ambiental e da violência no campo.
As Big Techs completam esse mosaico ao operar como mediadoras da nova ordem social. Plataformas digitais concentram dados, controlam fluxos de informação e modulam a opinião pública, convertendo a política em espetáculo e o cidadão em consumidor de narrativas fabricadas. A precarização do trabalho nas plataformas, a dependência da publicidade e a disseminação de fake news transformam essas corporações em pilares do capitalismo de cassino e em aliadas objetivas da ultradireita, ao criar um ecossistema informacional que normaliza a violência, deslegitima instituições liberais e reforça a cultura da blindagem.
Por fim, o controle das parcelas mais pobres da população pelas igrejas pentecostais funciona como base de sustentação cultural e subjetiva desse processo. Oferecendo pertencimento, disciplina moral e promessas de prosperidade, esses movimentos religiosos atuam como mediadores entre a miséria social e a ordem política, canalizando descontentamentos para a obediência e legitimando a ordem estabelecida. Bancadas religiosas no Congresso funcionam como linha auxiliar do projeto de blindagem, associando fé e poder numa engrenagem que converte a religião em dispositivo de captura política.
O parlamento blindado não é apenas cúmplice: é o dispositivo institucional que permite que o capital mafioso e fictício se fundam em uma mesma lógica de reprodução, legitimado pela ultradireita, sustentado pelo agronegócio, impulsionado pelas Big Techs e estabilizado pelas igrejas pentecostais entre os pobres. O Brasil não é ainda um Estado falhado clássico, incapaz de arrecadar ou de manter presença internacional. Mas avança rapidamente para uma forma híbrida, o Estado mafioso-neoliberal, em que instituições funcionam como fachada democrática enquanto o real poder é exercido pela convergência entre elites políticas, crime organizado, capital fictício e poderes sociais paralelos. A PEC da Blindagem, as emendas secretas, os fundos partidários bilionários e o foro privilegiado das cúpulas partidárias não são medidas isoladas: compõem a arquitetura jurídica de uma autocracia criminalizada, que encontra na crise global do capitalismo, na insuficiência de valor, no declínio do trabalho vivo e na financeirização fictícia o caldo perfeito para sua consolidação. Trata-se da consagração de um capitalismo mafioso de compadres, em que as fronteiras entre poder, crime, religião e finanças se dissolvem sob o manto da legalidade e no vazio estrutural de um sistema econômico em colapso. Como jaboticaba, esta é a contribuição sem dúvidas original que as elites brasileiras estão dando ao mundo neste momento de catástrofe mundial e declínio avassalador do capitalismo contemporâneo.
Como combinado eis o texto . Parece que vcs têm outro sobre a China, não?
Foto Zeca Ribeiro/Agência Câmara