

A recente trégua em Gaza, intermediada pelos Estados Unidos e apoiada por organismos internacionais, foi celebrada como um sinal de esperança após meses de massacres e bloqueios. No entanto, à medida que os caminhões de ajuda humanitária atravessam os escombros e os diplomatas posam para as câmeras, torna-se evidente que o conflito não cessa, apenas muda de forma.
Cada cessar-fogo é uma pausa no ruído das bombas, mas não no funcionamento da engrenagem que as produz. O problema não é apenas político ou religioso, é estrutural.
Como observa o professor Marildo Menegat, a guerra contemporânea tornou-se uma modalidade de gestão da crise capitalista, uma forma de reciclar destruição em acumulação. Converteu-se no ramo mais rentável de um capitalismo em colapso de sentido.
O complexo militar-financeiro-industrial funciona como o motor de uma economia global que já não consegue se sustentar pela produção de valor, mas apenas pela produção de ruínas. Israel é, nesse sentido, não apenas um Estado em guerra, mas um modelo de sociedade em que a violência se tornou princípio de organização.
Cada míssil lançado, cada muro reconstruído, cada bairro reerguido em Gaza movimenta cadeias financeiras, contratos de reconstrução e tecnologias de vigilância que são exportadas como produtos de sucesso. O mercado da guerra opera como um setor estratégico: transforma o provisório em método, o medo em ativo e o território em mercadoria.
A fundação de Israel, nascida do trauma do Holocausto e do imperativo da sobrevivência, transformou-se gradualmente em um paradigma de militarização permanente. Desde 1967, com a ocupação dos territórios palestinos, a exceção tornou-se norma. O Estado social ruiu diante da privatização e da financeirização, e a ocupação virou política de governo. Os colonos, antes movidos por ideais nacionalistas, passaram a ser atraídos por incentivos econômicos, infraestrutura e proteção estatal. Hoje, fundos internacionais e corporações imobiliárias, em parceria com grupos religiosos, administram assentamentos como investimentos rentáveis. A guerra não destrói o capital: Ela o reorganiza. A reconstrução pós-bombardeio, vendida como humanitária, é também uma operação de mercado.
Como ensina Menegat, a guerra moderna já não é uma interrupção da normalidade civil, mas sua extensão lógica. É o modo pelo qual o capitalismo, incapaz de expandir-se pela produção, passa a expandir-se pela devastação. Em Gaza, esse processo é visível: cada ataque gera contratos, cada ruína cria oportunidade de reconstrução, cada trégua renova o ciclo de endividamento e dependência. A paz, nesse contexto, é apenas o intervalo contábil da guerra.
A fundação de Israel, nascida do trauma do Holocausto e do imperativo da sobrevivência, transformou-se gradualmente em um paradigma de militarização permanente. Desde 1967, com a ocupação dos territórios palestinos, a exceção tornou-se norma. O Estado social ruiu diante da privatização e da financeirização, e a ocupação virou política de governo. Os colonos, antes movidos por ideais nacionalistas, passaram a ser atraídos por incentivos econômicos, infraestrutura e proteção estatal. Hoje, fundos internacionais e corporações imobiliárias, em parceria com grupos religiosos, administram assentamentos como investimentos rentáveis. A guerra não destrói o capital: Ela o reorganiza. A reconstrução pós-bombardeio, vendida como humanitária, é também uma operação de mercado.
Como ensina Menegat, a guerra moderna já não é uma interrupção da normalidade civil, mas sua extensão lógica. É o modo pelo qual o capitalismo, incapaz de expandir-se pela produção, passa a expandir-se pela devastação. Em Gaza, esse processo é visível: cada ataque gera contratos, cada ruína cria oportunidade de reconstrução, cada trégua renova o ciclo de endividamento e dependência. A paz, nesse contexto, é apenas o intervalo contábil da guerra.
O capitalismo de guerra tornou-se o modelo geral de uma economia que precisa destruir para continuar existindo. No interior desse ciclo, o sionismo converteu-se numa ideologia de poder estatal e financeiro que aprisiona o próprio povo judeu num destino trágico. O que nasceu como resposta ao extermínio transformou-se em projeto de dominação territorial e religiosa. Em consequência, cresce o isolamento de comunidades judaicas em várias partes do mundo, forçadas a conviver com a identificação entre judaísmo e militarismo, entre memória e ocupação.
A política expansionista do governo israelense, ao usar o Holocausto como justificativa permanente, alimenta involuntariamente a reativação de formas modernas de antissemitismo. Esse ressentimento difuso, que se propaga em redes e movimentos populistas, volta a converter o judeu em bode expiatório de um sistema que é, na verdade, capitalista e global. O antissemitismo contemporâneo não é resistência ao sionismo, mas seu espelho distorcido: ele transforma as vítimas da história em culpados, enquanto absolve o capital que produz a guerra.
Do outro lado, a situação palestina também foi sequestrada por elites políticas e burocráticas. A Autoridade Palestina, em especial seu núcleo instalado em Ramallah, tornou-se um instrumento de mediação entre a ocupação israelense e as potências internacionais. Muitos de seus dirigentes administram fundos de reconstrução, segurança e infraestrutura em troca de estabilidade, participando da engrenagem que perpetua o bloqueio. A corrupção e o autoritarismo interno substituíram o ideal de libertação por um sistema de clientelas e privilégios. Essa captura política do sofrimento palestino é o outro lado do mesmo processo: a mercantilização da resistência.
Por isso, falar em “solução de dois Estados” é insistir em uma ficção. Tanto o Estado de Israel quanto o Estado Palestino, moldados segundo o paradigma do Estado-nação, estão presos a uma lógica esgotada. O que se torna necessário é pensar um espaço político radicalmente novo: um Estado único, multinacional e provisório, que não se fundamente na soberania territorial, mas na coexistência emancipatória. Esse arranjo seria uma ponte e não um destino. Em vez de delimitar fronteiras, dissolveria o vínculo entre cidadania e etnia, entre terra e propriedade, entre segurança e militarização. Seria o primeiro passo concreto rumo a uma sociedade pós-estatal e pós-capitalista, baseada na partilha dos recursos essenciais e na desmercantilização da vida.
A atual trégua pode representar um pequeno alívio humano, mas ela também expõe o cinismo de um sistema que transforma cada destruição em oportunidade de negócio. Israel exporta tecnologia de vigilância e segurança como quem exporta café ou soja; os Estados Unidos renovam contratos bilionários de armamento; o mundo árabe se divide entre o cálculo geopolítico e a impotência. Gaza, convertida em campo de experimentação, é o espelho mais cruel de uma era em que a barbárie se tornou racional.
Se Israel nasceu como defesa extrema contra o extermínio, sua verdadeira contribuição à humanidade só poderá se realizar quando transformar essa defesa em princípio universal, não mais a defesa de um Estado, mas da própria vida contra a lógica do valor e da guerra permanente. Antes da fundação do Estado de Israel, a Palestina histórica era uma terra de convivência múltipla, onde judeus, muçulmanos e cristãos partilhavam cidades, mercados e festas. Essa tessitura social, complexa e imperfeita, foi rompida não apenas pela violência colonial britânica e pelo nacionalismo europeu, mas pela emergência de um capitalismo que precisou fragmentar o comum para sobreviver. O sionismo político e o pan-arabismo nasceram ambos das cinzas de impérios e sob a sombra de um mundo que trocava a comunidade pela propriedade, a vizinhança pela soberania. A tragédia que se seguiu foi a tradução concreta da utopia liberal em ruína: a promessa de liberdade individual dissolveu-se em fronteiras armadas.
Hoje o planeta revive essa ruína. Os Estados-nação promovidos pelas burguesias liberais estão em colapso, corroídos pela financeirização e sitiados pela extrema direita. O pacto social que sustentava as democracias ocidentais desmorona diante da globalização do medo e da obsolescência do trabalho. Sem uma base material para o progresso, a identidade se torna mercadoria e o ódio, substituto da esperança. Israel e Gaza são o espelho ampliado do mundo: territórios onde a política já não regula a economia, mas é regulada por ela; onde o Estado já não é mediador de direitos, mas gestor da escassez.
Pensar um Estado único, provisório e multinacional na Palestina não é mera utopia orientalista, mas a antecipação simbólica de uma tarefa histórica global: reconstruir a comunidade humana além das fronteiras e dos valores que a destruíram. Se, no passado, judeus e árabes compartilharam ruas, ofícios e celebrações, é porque havia uma experiência concreta de coexistência que o capitalismo moderno dissolveu. Recuperar esse fio, mesmo que como horizonte, é recusar a ideia de que o destino da humanidade é escolher entre a barbárie autoritária e o mercado sem alma. Um novo espaço político, pós-estatal e comunal, poderia converter a trégua em Gaza num gesto inaugural: o primeiro sinal de que ainda é possível habitar o mundo sem possuir a terra, conviver sem vigiar e reconstruir sem destruir.
Do outro lado, a situação palestina também foi sequestrada por elites políticas e burocráticas. A Autoridade Palestina, em especial seu núcleo instalado em Ramallah, tornou-se um instrumento de mediação entre a ocupação israelense e as potências internacionais. Muitos de seus dirigentes administram fundos de reconstrução, segurança e infraestrutura em troca de estabilidade, participando da engrenagem que perpetua o bloqueio. A corrupção e o autoritarismo interno substituíram o ideal de libertação por um sistema de clientelas e privilégios. Essa captura política do sofrimento palestino é o outro lado do mesmo processo: a mercantilização da resistência.
Por isso, falar em “solução de dois Estados” é insistir em uma ficção. Tanto o Estado de Israel quanto o Estado Palestino, moldados segundo o paradigma do Estado-nação, estão presos a uma lógica esgotada. O que se torna necessário é pensar um espaço político radicalmente novo: um Estado único, multinacional e provisório, que não se fundamente na soberania territorial, mas na coexistência emancipatória. Esse arranjo seria uma ponte e não um destino. Em vez de delimitar fronteiras, dissolveria o vínculo entre cidadania e etnia, entre terra e propriedade, entre segurança e militarização. Seria o primeiro passo concreto rumo a uma sociedade pós-estatal e pós-capitalista, baseada na partilha dos recursos essenciais e na desmercantilização da vida.
A atual trégua pode representar um pequeno alívio humano, mas ela também expõe o cinismo de um sistema que transforma cada destruição em oportunidade de negócio. Israel exporta tecnologia de vigilância e segurança como quem exporta café ou soja; os Estados Unidos renovam contratos bilionários de armamento; o mundo árabe se divide entre o cálculo geopolítico e a impotência. Gaza, convertida em campo de experimentação, é o espelho mais cruel de uma era em que a barbárie se tornou racional.
Se Israel nasceu como defesa extrema contra o extermínio, sua verdadeira contribuição à humanidade só poderá se realizar quando transformar essa defesa em princípio universal, não mais a defesa de um Estado, mas da própria vida contra a lógica do valor e da guerra permanente. Antes da fundação do Estado de Israel, a Palestina histórica era uma terra de convivência múltipla, onde judeus, muçulmanos e cristãos partilhavam cidades, mercados e festas. Essa tessitura social, complexa e imperfeita, foi rompida não apenas pela violência colonial britânica e pelo nacionalismo europeu, mas pela emergência de um capitalismo que precisou fragmentar o comum para sobreviver. O sionismo político e o pan-arabismo nasceram ambos das cinzas de impérios e sob a sombra de um mundo que trocava a comunidade pela propriedade, a vizinhança pela soberania. A tragédia que se seguiu foi a tradução concreta da utopia liberal em ruína: a promessa de liberdade individual dissolveu-se em fronteiras armadas.
Hoje o planeta revive essa ruína. Os Estados-nação promovidos pelas burguesias liberais estão em colapso, corroídos pela financeirização e sitiados pela extrema direita. O pacto social que sustentava as democracias ocidentais desmorona diante da globalização do medo e da obsolescência do trabalho. Sem uma base material para o progresso, a identidade se torna mercadoria e o ódio, substituto da esperança. Israel e Gaza são o espelho ampliado do mundo: territórios onde a política já não regula a economia, mas é regulada por ela; onde o Estado já não é mediador de direitos, mas gestor da escassez.
Pensar um Estado único, provisório e multinacional na Palestina não é mera utopia orientalista, mas a antecipação simbólica de uma tarefa histórica global: reconstruir a comunidade humana além das fronteiras e dos valores que a destruíram. Se, no passado, judeus e árabes compartilharam ruas, ofícios e celebrações, é porque havia uma experiência concreta de coexistência que o capitalismo moderno dissolveu. Recuperar esse fio, mesmo que como horizonte, é recusar a ideia de que o destino da humanidade é escolher entre a barbárie autoritária e o mercado sem alma. Um novo espaço político, pós-estatal e comunal, poderia converter a trégua em Gaza num gesto inaugural: o primeiro sinal de que ainda é possível habitar o mundo sem possuir a terra, conviver sem vigiar e reconstruir sem destruir.