
Estreou Um Julgamento – Depois do Inimigo do Povo, no teatro do CCBB-RIO 2.
Um projeto de Christiane Jatahy e Wagner Moura.
Obra criada a partir da peça Um Inimigo do Povo, de Henrik Ibsen, de 1883.
O texto original se passa em uma cidade do interior da Noruega. Na montagem, a história é ambientada no Brasil. O protagonista é médico de uma estação balneária no interior do país. Ao lado de sua filha, ele pede uma retratação pública e uma nova chance de se defender, para assim falar a verdade da sua descoberta sobre a contaminação das águas da cidade.
O texto de Christiane Jatahy, Wagner Moura e Lucas Paraizo é dramático, crítico, conflituoso, tenso, humanista, potente, e contemporâneo. Redigido no oitocentos, ele ainda se revela atual. Argumenta que verdades absolutas e universais, não mais existem. Prevalecem distintas versões para um mesmo fato. Apresenta uma reflexão sobre verdade e mentira, ficção e realidade, testemunho lícito, forjado ou coagido. Ademais valoriza os direitos fundamentais do homem, como a liberdade de expressão e de fala, o impedimento ao cancelamento, e o direito ao contraditório, bem como o direito de defesa. E apresenta uma contundente reflexão sobre o lugar que a família ocupa no mundo contemporâneo.
O texto também deixa transparecer uma visão de ciência, humanizada, que se preocupa com o bem estar e a saúde da população. Ao denunciar que a água do balneário está contaminada, imprópria para o uso, Thomas Stockmann está deixando transparecer uma preocupação sanitário-ecológica.
O elenco tem uma atuação surpreendente, de alta qualidade e merecedora de elogios. Como um todo, os atores estão unidos, entrosados e afinados.
Wagner Moura reluz com uma atuação ímpar. Ele é o sol que ilumina o palco. Ele assume com postura, garra e determinação o protagonismo, e ao seu redor gravitam os demais atores que fortalecem o brilho da sua atuação, uma vez que estão juntos e misturados. Ele faz um Thomas Stockmann, médico, que representa a voz da ciência, com argumentos baseados em testes e experiências, deixa transparecer a sua preocupação com o ser humano, ao denunciar que as águas do balneário estão contaminadas e alerta as autoridades locais. Para ele, a economia e o lucro importam menos que a vida dos seres humanos. O Estado deveria intervir, fechar o balneário, e subsidiar as famílias afetadas com a suspensão das atividades
Ao seu lado, Thomas tem a sua filha, Petra Stockmann, a defesa, interpretada de forma emocionante e vibrante por Julia Bernat. Ela se mostra amiga e companheira do pai na sua luta por retratação pública e uma nova chance de se defender. Ademais, ela é a voz feminina, quer falar na defesa pelo pai e como mulher, frente aos desmandos do patriarcalismo. Ela emociona!
Do lado oposto, na acusação está o irmão de Thomas, Peter Stockmann, o ex-prefeito da cidade, defensor dos interesses do capital, do lucro e da economia forte, custe o que custar. Para ele, a estação balneária nao pode fechar, pois é a mola que alavanca a economia do município. Danilo Grangheia faz um Peter voraz, cínico, desumano, forjador de provas, e intriguista, fomentador de discórdia e confusão, colocando todos contra Thomas, desde a sua família até a população.
Os três atores estão notáveis no palco!
Os três personagens são o centro da trama, realizando de forma convincente e verdadeira. A discussão que tem início no julgamento, extrapola o tribunal, e passa a envolver questões familiares, briga entre irmãos, discórdia e confusão. O texto deixa transparecer o conflito, o choque de ideias e posições entre os personagens. Visões distintas emergem e revelam as divergências.
Os demais integrantes do elenco completam de forma correta e adequada as encenações, bem como participam de vídeos que são exibidos.
No centro do palco há um grande telão que serve para diversas funções, como exibir o tempo das falas da defesa e da acusação; exibir as provas e testemunhos da defesa e da acusação; e o julgamento. Ele funciona como parte integrante da encenação.
O público participa da peça também com a função de júri. Este é constituído por espectadores que se voluntariam a integrá-lo. Eles são convocados a se posicionar num espaço reservado no palco, onde assistem ás etapas do julgamento, fazem anotações, e, ao final, são convocados a emitir o seu parecer. Eles não falam em momento algum.
Na noite em que assistimos, o júri decidiu que Thomas Stockmann não é um Inimigo do povo.
A direção de Christiane Jatahy é eficiente. Ela realizou as marcações precisas e certeiras, fez escolhas e direcionou o elenco para atuar de forma notável.
Duas cenas são marcantes, no nosso ponto de vista. A primeira diz respeito ao momento em que Thomas desmascara o jornalista corrupto. A segunda, o momento em que Thomas e Peter chegam às vias de fato. São cenas arrebatadoras!
Os figurinos criados por Marina Franco são corretos e adequados ao contexto de um tribunal.
A cenografia criada por Thomas Walgrave é clean, funcional, e apresenta os elementos dispostos corretamente pelo palco. Basicamente são as mesas onde ficam a acusação e a defesa, um telão no centro do palco, e, ao fundo, as cadeiras onde sentam os integrantes do júri popular. Um verdadeiro tribunal construído sobre o palco!
A iluminação criada por Thomas Walgrave é boa, de qualidade, e contribui para realçar a interpretação dos atores de seus personagens.
A peça teatral termina de forma apoteótica, com o samba de Candeia, Preciso Me Encontrar, de forma emocionante e arrebatadora.
A qualidade do texto fica iluminada num espetáculo marcado pelo equilíbrio e harmonia entre as criações artísticas – direção, atuações e concepção visual.
A montagem é uma verdadeira obra-prima!
Excelente e Imperdível Produção Cênica!






