
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante.
Clarice Lispector Felicidade clandestina.
Uma das melhores definições da relação de livro e leitor é a conclusão do conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector, que recorda sua descoberta da leitura, na infância. Toda traça bípede compreende perfeitamente a sensação de entrega à imaginação que, dizem os cientistas, exercita neurônios, ajuda o raciocínio, renova as ideias. A paixão pela leitura só é compreendida pelos viciados, gente malvista por quem inveja ou despreza a capacidade escapista do leitor.
Viciados que aguardam, ansiosos, a nova dose da droga. A conta-gotas chegam os romances inéditos com as aventuras do comissário Montalbano, do italiano Andrea Camilleri (1925-2019). Dos 34 livros da série, entre romances e contos, somente 19 tiveram edições brasileiras: dois em 2024, dois agora, neste segundo semestre de 2025. As editoras Record e L&PM publicam, cada uma, um título diferente no finzinho de cada ano – e bem poderia acelerar esses lançamentos.
Como Camilleri não está mais no planeta, os lançamentos atrasadinhos nem merecem alarde, mas discretas informações das editoras, gratas surpresas para os aficionados. “Um ninho de cobras” (Record, R$ 62) tem mais reviravoltas que telenovela brasileira, porém com a mão firme do autor. Montalbano e sua equipe se debruçam sobre o misterioso assassinato de um contador, cujo corpo, com um tiro na nuca, é encontrado dentro de sua casa de praia, trancada à chave. Gradualmente descobrem que o morto era um tremendo salafrário, agiota, chantagista e detestado pelos próprios filhos. Já em “Verão ardente” (L&PM, R$ 55), numa casa de praia infestada por baratas e camundongos surge o corpo de uma garota desaparecida há anos.
Jornalista, roteirista e dramaturgo, o siciliano Andrea Camilleri só foi conhecer o sucesso literário quase aos 70 anos, em 1994, quando deu vida a Salvo Montalbano e seus curiosos auxiliares, lotados em Vigata, cidade fictícia bastante semelhante a Porto Empedocle, onde nasceu, hoje ponto turístico para os admiradores do escritor. Montalbano cujo nome homenageia o escritor catalão Juan Vasquez Montalban, é um policial pouco convencional, que não perde uma boa refeição com as iguarias locais, experiente, sem a necessidade de ostentar brilhantismo dos personagens de Agatha Christie ou a brutalidade dos investigadores durões norte-americanos de Raymond Chandler e Dashiell Hammett. Seu suspense humanizado e divertido vendeu mais de 30 milhões de exemplares no mundo inteiro. Irreverente, foi militante comunista e sempre se posicionou contra a Máfia, sem, no entanto, dar protagonismo a seus integrantes nos livros, embora reconhecesse a presença da organização em todos os campos da vida na Itália, preferindo destacar personagens marginalizados, como os imigrantes ilegais, em suas histórias.
História da América Latina em 100 fotografias (Bazar do Tempo, R$ 170), de Paulo Antonio Paranaguá, parte das cabeças olmecas, imensas esculturas em pedra, no estado de Tabasco, no México, datadas de 1.200 anos antes de Cristo para iniciar o relato das civilizações pré-colombianas no continente. Pirâmides maias da Guatemala, as ruínas de Machu Picchu no Peru se juntam a imagens que apresentam a diversidade de povos quase aniquilados pelos europeus desde a chegada do italiano Colombo ao que seria o território da futura República Dominicana, passando por movimentos revolucionários até a política xenófoba norte-americana. Conflitos, golpes, transformações econômicas e sociais, violência urbana, cultivo e distribuição de drogas, festas populares formam um mosaico unido pela exploração de populações por invasores e a recuperação dessas regiões.
Casas estranhas 2: O mistério das onze plantas baixas (Intrínseca, R$ 50), de Uketsu, continua as investigações iniciadas no primeiro livro da série criada pelo youtuber e autor de histórias de terror. Desta vez, o especialista em plantas de imóveis curiosos, vai desvendar os segredos de muitas construções “incomuns” no Japão, reunindo os casos que têm características repetidas – quartos que desaparecem, corredores sem finalidade, apartamentos de onde é impossível fugir e casas projetadas para matar. Ele se junta novamente ao arquiteto Kurihara para analisar os desenhos, diários dos ex-moradores, registros jornalísticos e literários sobre os imóveis, construindo uma narrativa de tensão e absurdo fascinantes.
Aconteceu em Copacabana – Contos atemporais (Luva, R$ 54,90), de Adriana Sussekind, traz saborosas narrativas curtas sobre a vida no mais conhecido dos bairros cariocas. Ali estão porteiros, empregadas domésticas que “quase fazem parte da família”, estudantes que vestem o biquíni por baixo do uniforme do colégio para ir à praia depois das aulas, funcionárias de salões de beleza, idosos aposentados, velhinhas que querem acabar com a criminalidade nos morros vizinhos a seus apartamentos. Crônicas ou contos tratados com a familiaridade dos casos relatados no botequim ou nas areias das pracinhas e à beira-mar, as histórias tem o aroma da maresia e o sabor do mate gelado, pronto a ser degustado com biscoito
Globo.






