
Por Henrique Pinheiro – Economista e produtor executivo de cinema – Colunista convidado.Quando o AI-5 foi decretado, em dezembro de 1968, eu tinha apenas sete anos.
Minhas lembranças são fragmentadas, quase sensoriais. Mas o que faltava em compreensão sobrava em atmosfera. O silêncio daquele Natal falava mais alto do que qualquer discurso.
Desde o golpe de 1964, nossa casa nunca deixou de ser visitada.
Desde o golpe de 1964, nossa casa nunca deixou de ser visitada.
Agentes do DOPS apareciam com regularidade quase ritual. Entravam sem pressa, como quem cumpre um protocolo burocrático.
Dirigiam-se sempre ao mesmo lugar: O escritório do meu pai. Uma sala ampla, tomada por estantes de livros. Ali permaneciam por longos minutos, examinando títulos, lombadas, autores. Não iam além daquele espaço. Era uma vigilância calculada. Um recado sem palavras: Ele continuava sob observação.
Meu pai, João Pinheiro Neto, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente da Supra , autarquia responsável por elaborar o projeto de Reforma Agrária no Governo João Goulart,.já havia sido cassado pelo AI-1, na primeira lista após o golpe.
Meu pai, João Pinheiro Neto, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente da Supra , autarquia responsável por elaborar o projeto de Reforma Agrária no Governo João Goulart,.já havia sido cassado pelo AI-1, na primeira lista após o golpe.
… Tentou o exílio, buscou asilo com o embaixador da Espanha, mas foi preso antes de conseguir sair do país. Ainda assim, conservava algo raro naquele tempo: O otimismo. Acreditava que os militares devolveriam o poder em pouco tempo. Que o desvio era provisório.
O AI-5 encerrou essa esperança. Foi como uma pá de terra sobre qualquer ilusão de normalidade democrática.
Meu pai nunca gostou do Natal.
O AI-5 encerrou essa esperança. Foi como uma pá de terra sobre qualquer ilusão de normalidade democrática.
Meu pai nunca gostou do Natal.
Dizia ser a festa mais injusta que existia: Poucos à mesa farta, muitos na escassez.
O excesso o incomodava. A comida sobrando o angustiava. Sempre sugeria que cada convidado levasse um pouco da ceia para casa, como gesto mínimo de reparação.
Mas o Natal de 1968 foi diferente. Mais pesado. Mais triste. Pela primeira vez, ele parecia convencido de que os militares não sairiam tão cedo. E, para ele, nada podia ser mais cruel do que celebrar em meio à permanência da injustiça.
Naquele mesmo Natal, ganhei um autorama. Era o sonho de consumo de qualquer menino da minha idade. A caixa, no entanto, estava aberta, com sinais claros de uso. Estranhei, mas não questionei meu pai — criança não fazia perguntas difíceis naquela época. Procurei minha mãe. Ela respondeu com naturalidade desconcertante: o autorama era usado. Tinha pertencido ao filho de um amigo do meu pai, um homem em dificuldades financeiras que precisara vender o brinquedo para atravessar um momento duro.
Para um menino de sete anos, a explicação caiu como uma revelação precoce. Como reclamar de um presente usado sabendo que outra criança havia perdido o seu no próprio dia de Natal? O brinquedo deixou de ser apenas um objeto de desejo e passou a carregar um peso silencioso, uma lição que eu ainda não sabia nomear, mas já sentia.
Lembro de vozes baixas, sussurros entre adultos. A palavra “frustração” pairava no ar.
Mas o Natal de 1968 foi diferente. Mais pesado. Mais triste. Pela primeira vez, ele parecia convencido de que os militares não sairiam tão cedo. E, para ele, nada podia ser mais cruel do que celebrar em meio à permanência da injustiça.
Naquele mesmo Natal, ganhei um autorama. Era o sonho de consumo de qualquer menino da minha idade. A caixa, no entanto, estava aberta, com sinais claros de uso. Estranhei, mas não questionei meu pai — criança não fazia perguntas difíceis naquela época. Procurei minha mãe. Ela respondeu com naturalidade desconcertante: o autorama era usado. Tinha pertencido ao filho de um amigo do meu pai, um homem em dificuldades financeiras que precisara vender o brinquedo para atravessar um momento duro.
Para um menino de sete anos, a explicação caiu como uma revelação precoce. Como reclamar de um presente usado sabendo que outra criança havia perdido o seu no próprio dia de Natal? O brinquedo deixou de ser apenas um objeto de desejo e passou a carregar um peso silencioso, uma lição que eu ainda não sabia nomear, mas já sentia.
Lembro de vozes baixas, sussurros entre adultos. A palavra “frustração” pairava no ar.
Nós, crianças, éramos mantidas à distância — como era comum naquela época —, mas sentíamos tudo.
O ambiente não precisava de explicações.
Minha mãe tentava preservar algum traço de normalidade. Um esforço quase heroico.
Minha mãe tentava preservar algum traço de normalidade. Um esforço quase heroico.
Mas o AI-5 foi mais um golpe sobre um homem já ferido, embora ainda esperançoso.
Eram gestos assim — pequenos, quase invisíveis — que revelavam quem era João Pinheiro Neto. Um homem marcado pela política, pela injustiça e pela derrota momentânea, mas que jamais perdeu o senso de justiça social. Aquela e tantas outras atitudes moldaram nossa formação, nossa maneira de olhar o mundo.
Naquele Natal, aprendi,sem saber, que ditaduras não precisam gritar. Às vezes, elas apenas silenciam uma casa inteira.
Eram gestos assim — pequenos, quase invisíveis — que revelavam quem era João Pinheiro Neto. Um homem marcado pela política, pela injustiça e pela derrota momentânea, mas que jamais perdeu o senso de justiça social. Aquela e tantas outras atitudes moldaram nossa formação, nossa maneira de olhar o mundo.
Naquele Natal, aprendi,sem saber, que ditaduras não precisam gritar. Às vezes, elas apenas silenciam uma casa inteira.




