
Essa semana conversei com o artista plástico e especialista em moda Fernando Viana. Nascido no Rio Grande do Sul, ele revela que a influência para as artes começou dentro de casa quando ainda era pequeno. O pai tinha como hobby criação de esculturas, a mãe pintava tecido. Esse misto de arte acabou gerando um fotógrafo de moda que viveu fora do país, tronou-se estilista com experiência em up-cycling de materiais e hoje vive no Rio de Janeiro. Confira!
JP – Fernando, você nasceu em Uruguaiana, no interior do Rio Grande do Sul. Como foi a sua infância? Suas relações familiares? Onde você estudou? Como se deu o seu interesse pelas artes plásticas?
Eu nasci em Uruguaiana, RS, cidade que faz fronteira com Argentina e Uruguai. Morei no campo até os quatro anos. Depois, na idade escolar, fui para a escola municipal de Uruguaiana. Na sétima série fui pra o colégio Marista. Entrei na escolinha de arte com nove anos, numa tentativa de minha mãe de controlar minha rebeldia na escola. A escolinha era um espaço de arte para todas as idades, senhoras e senhores aposentados…em casa tinha o apoio total de meus pais. Minha mãe pintava tecido para amigas e colegas. Meu pai tinha a escultura como hobby e trabalhava de voluntário num festival de música nativa como produtor de palco e no carnaval também. Minha casa sempre foi muito musical, se ouvia do clássico ao Pop. JP – Como foi a sua experiência como fotógrafo de moda? Depois de me formar em turismo e publicidade & propaganda, na PUC de Porto Alegre, voltei para Uruguaiana, onde trabalhei no departamento de turismo e desporto da prefeitura municipal. Logo abri minha agência de publicidade, na qual comecei com a fotografia em preto & branco, 35mm. Só fotografava retratos e fazia uma exposição anual na galeria de arte local (a Grafitti). Depois de sete anos, em 1998, comecei então a fazer encartes de moda para Zero Hora. No mesmo ano fui pra Londres estudar inglês. Decidi zerar minha vida e repensar tudo. Juntei um dinheiro pra ficar alguns meses sem trabalhar e ver o que faria.
JP – No período de 1998-2013, você viveu em Londres, momento em que deu uma guinada na sua carreira para o campo do estilismo. Onde você estudou? Com quem você teve aulas? Quais são as suas referências?
Aproximadamente seis meses depois de minha chegada em Londres, quando já estava me preocupando com meu dinheiro lá, saí de noite para caminhar e encontrei um lixo enorme de camisetas pretas inacabadas de amostras de tecidos em várias cores e texturas. Coletei tudo aquilo, comprei uma agulha de artesanato, uma linha de algodão branco e comecei a emendar, remendar, e criar com todo aquele material descartado pela indústria da moda. Com algumas peças fui para Porto Belo Road Market (no Nothing Hill) vender elas. Através de uma amiga conheci Basi Szkutnicka, diretora da London College of Fashion. Fui selecionado pra participar num desfile de 10 talentos de Mercado e apresentei uma coleção de nove echarpes de seda, de dois metros, com forma de asas de borboletas brasileiras, pintadas na mão. Basia me encaminhou pra alguns cursos técnicos (como Garment Construction 1, 2, 3) oferecidos pra emigrantes e locais a preços bem acessíveis. Ela me recomendou imensamente um curso com uma senhora que ia se aposentar logo e tinha trabalhado com Chanel, antes da segunda guerra mundial. Lá com esta senhora, aprendi muito, foi uma aprendizagem difícil, mas rico, e que me ajudou depois nas minhas criações. Fazia também cursos de inverno que eram oferecidos pela Central St Martins School of Art, na época de Natal e Ano Novo. Ali aprendi mais sobre os tecidos, técnicas de tingimento, etc.. O resto da minha formação na moda foi através de curiosidade, experimentos, sempre reutilizando materiais descartados, retalhos de tecido, etc.. Comecei a pintar para coleções de grifes inglesas. Pintava retalhos de linho pra aplicações. Cada retalho tinha uma pintura a mão ou de flores, ou frutas, ou de paisagens (variava com minha inspiração). No mesmo ano, consegui um espaço no Spitalfields Market, um mercado emergente apresentando uma boa seleção de arte, artesanato e artefatos produzido pelos ateliês de artistas e artesões independentes locais. O mercado modificou toda a área e lançou muitas tendências na época. Era comum ver, John Galiano, Kate Moss, Boy George (que inclusive vendeu vinis lá), Lourdes Maria (filha da Madona) caminhando, comprando e se inspirado nos estilos e novidades apresentadas no Spitalfields Market. Lá mesmo, os estilistas vendiam diretamente para lojas independentes de toda a Europa, os EUA e até o Japão. Pesquisador de tendências de arte, e desenho e moda de todas revistas estavam sempre por lá. Era uma vertente de estilos, ideias e conceitos novos. Para cada artesão ou designer era um ótimo showroom, no centro do Londres. Consegui artigos em revistas de quatro línguas diferentes sobre meu trabalho. Vários compradores de lojas independentes de vários países, descobriram meu trabalho lá e começaram a me passar encomendas. Tive uma equipe flexível de até oito colaboradores artistas e costureiras trabalhando comigo no ateliê e fiz uma parceria com uma empresa familiar de confecção no bairro do meu ateliê para atender encomendas maiores. Com a popularidade e uma localização bem central perto da City, o mercado foi transformado pelos investidores da época em um Shopping Mall e agora vende produtos de grifes locais inglesas. Tem Bistrôs, lojas de life-style, ao lado de produtos importados e alguns artesões locais que continuam criando, produzindo e apresentando novos desenhos.
JP – Enquanto estilista você trabalha com a reciclagem, recuperando retalhos, materiais descartados, restos e amostras de tecidos. A esse trabalho de reciclagem de roupas você alia a pintura à mão. Explique essa característica do seu fazer artístico.
No meu trabalho primeiro eu utilizo sempre tecidos antigos, garimpados, restos de coleções, cortinas antigas, etc.. Eu então crio em cima disto, baseado nas texturas, cores, transparências, estampas, etc.. Componho com este material com tingimentos e pinturas para integrar as várias peças (no tecido uso preferencialmente fibras naturais tal como linho, seda e algodão). Portanto outros materiais são incluídos também especialmente em projetos de up-cycling de materiais, com o projeto de bolsas feitas com materiais de uso único e dificilmente reciclável que acabei de apresentar nas últimas portas abertas de Santa Teresa (último fim de semana de julho e primeira de agosto). JP – Qual foi a importância da diretora do Westminster College para o impulsionar da sua carreira? A Basia, diretora da Westminster, foi fundamental no meu processo professional. Com certeza um trabalho admirável do governo Britânico não só por encaminhar profissionalmente imigrantes, mas também fazer curadoria de profissionais no mercado. Achei o trabalho dela sensível, realista e prático. Me indicou cursos técnicos pertinentes, rápidos e bem ministrados com professores de qualidade top. JP – Quais são os principais consumidores das suas produções artísticas? Meu público não mudou muito desde 1999… Vários clientes do mundo das artes, curadores, cantores, músicos, a faixa etária ampla, o que me encanta. Um público que gosta de vestir peças únicas com estilo diferenciado e personalidade artística. No Brasil tenho uma parceria com Maria Oiticica que vende minhas echarpes e lenços, nas lojas dela nos aeroportos, na zona sul do Rio e outros pontos de vendas da marca como na Barra da Tijuca, etc.. Na minha loja em Santa Teresa, as peças são mais diversificadas: bolsas, broches, camisetas, vestidos de festa, saias, casacos, bijuterias, tudo feito na base do up-cycling, pinturas a mão e peças únicas ou edições limitadas. Lá meu público e mais eclético porque tem um muito fluxo de turismo brasileiro e internacional, acima do público local do bairro e Rio de janeiro em geral. Recebo também na loja física, figurinistas da Globo, que selecionam algumas peças para novela ou me enviam figurinos para pinturas especiais. Na loja recebemos também vestidos para serem pintados e/ou customizados por mim que são totalmente resignificados. Pessoas que tem uma certa consciência do impacto da produção em massa, e tem uma sensibilidade artística com certeza fazem parte dos meus clientes. JP – Quais foram os projetos que você desenvolveu em parceria com a organização Cancer Research? No final de 2009 encontrei no Spitalfields Market a Jen Ruppert, uma canadense que estava com um projeto de reciclagem com moda. Fizemos uma seleção de doze designers e nasceu a Revamp. Apresentamos o projeto para a Cancer Research, uma empresa de caridade que possui quase seiscentas lojas de roupas de segunda mão, em toda UK, abastecidas por doações. A Revamp tinha um designer em cada setor, chapéus, joalheria, malharia, bolsas, roupas casuais e de noite. A equipe utilizava materiais danificados que as lojas não poderiam revender em tais condições. A Cancer Research adorou o projeto e tivemos o desfile de lançamento na então, reinaugurada, British Library. Conseguimos mídia com artigos no Daily Mail sobre a Revamp e editoriais de moda em revistas. A produção da equipe era vendida na loja principal da Cancer Research de Marylebone, no centro de Londres.
JP – Ao retornar ao Brasil, você estabeleceu sua loja em Santa Teresa. Qual razão o levou a escolher o bairro? E, comente sobre o projeto das bolsas recicladas?
Voltando ao Brasil em 2013, Arnaud e eu ficamos um ano em um apart-hotel em Copacabana para pesquisar lugares para morar no Rio. Em um ano concluímos que Santa Teresa seria este lugar. Pela proximidade do centro do Rio, na época Arnaud trabalhava na Glória, e eu poderia trabalhar em casa como sempre fiz. Então encontramos uma casa dos anos 40, na rua Paschoal Carlos Magno e a reformamos, preservando ao máximo o original do espaço e criamos um Airbnb, um ateliê de costura, um de pintura e uma loja. 0 bairro é muito charmoso e oferece um contato privilegiado com a natureza que para mim é muito importante na criação. Acho o cenário perfeito para desenvolver um pólo de arte, artesanato, moda consciente… JP – A sustentabilidade e a reciclagem são preocupações do mundo atual. E está presente na sua prática artística. Apresente uma reflexão sobre essa questão. A indústria da moda é responsável pela emissão de 8% do gás carbônico no ar. Isto se deve principalmente pelo fast-fashion. Segundo a Forbes, uma peça de fast-fashion é utilizada menos de cinco vezes e gera 400% mais emissões de carbono do que marcas slow-fashion, usada aproximadamente 50 vezes e não estamos contando aí os descartes… 25% de tudo que é produzido vira lixo. O poliéster, um dos mais usados, emite 32 das 57 milhões toneladas globais e leva ao menos 200 anos para se deteriorar. Para sustentar isto tudo são necessários mão de obra quase escrava, e uma concorrência cada ano maior levada pelo preço (esse sistema globalizado da indústria da moda, só se sustenta por produção em massa a baixo custo e vendas frequentes como oferece a fast-fashion). Com produção em alta quantidade, em escala desumana, sem consideração ao consumidor, meio ambiente ou artesão, plus uma alta frequência de renovação dessa moda e condições de trabalho miseráveis, tudo para sustentar preços baixos e o mercado global dessa indústria, a fast-fashion é inviável, e um perigo para a humanidade. Isso envolve não só o meio ambiente, mas o social também. Com estes dados e fatos absurdos, devemos repensar, agora mesmo, o consumo. Precisamos privilegiar os mercados de escala humana e os circuitos curtos (fornecedor, mão de obra mais local que global) e sempre buscar reaproveitar materiais que já foram produzidos e ainda podem se transformar em outras peças com nova vida, maior valor artístico, etc., através do up-cycling.