
Minha convidada dessa semana é uma atriz e diretora espetacular e, assim como eu, adora bater longos papos. Nossa entrevista foi demorada, mas cheia de detalhes interessantes. Começamos falando de sua nova personagem na peça “Mãe de Santo”, que ela considera ser um espetáculo que fala para todos. “Toca o coração das mulheres negras. Eu acho que toca o coração de todo mundo. É um espetáculo que fala para todo mundo”. Seguimos com assuntos fortes, como o racismo. “Ser negro no Brasil é sofrer todos os dias” e chegamos ao Prêmio Shell que ela ganhou com “Chica da Silva”. Conheçam um pouco de Vilma Melo Schaefer, um turbilhão de talento e verdades.
JP – Vilma você está atuando na peça Mãe de Santo, sucesso de crítica e de público, que está na segunda temporada. Como surgiu o projeto? Qual é a importância da peça para a comunidade das mulheres negras?
O produtor, e meu amigo, Bruno Mariozz me convidou para conhecer uma pessoa. E eu fui com ele. Era pela manhã. E eu encontrei mãe Celina. Fui apresentada num bar da Praça Mauá, e ela com uma mala enorme do lado. Começamos a conversar. E eu rapidamente entendi o que o Bruno queria. Ele queria que nós fizéssemos um espetáculo sobre uma mãe de santo. E ela começou a narrar que ela estava indo viajar. Ela estava indo embarcar. Ela nos contou que ela viaja o mundo inteiro dando palestras sobre cura, sobre ervas que curam. E explicando a preparação dessas ervas, como cultiva, como colhe. Enfim, a sabedoria popular. Aquela mulher estava ali de calça jeans, uma blusa de malha, e contou como a avó dela tinha sido mãe de santo, como a mãe dela era mãe de santo, e como ela estava preparando a filha dela para também ser. Ela também contou a trajetória dela. Ela contou que é uma pessoa de São Gonçalo, que o terreiro é aqui no Rio de Janeiro, mas que ela permanecia residindo em São Gonçalo. Ela informou que participou das escavações na Praça Mauá para a criação do Museu. Toda a reurbanização daquele espaço, ela foi chamada para reconhecer objetos e artefatos que eles encontravam. Não só para nomear, mas também dizer para que servia. Aquela figura me impressionou muito. Me impressionou muito a forma como ela lidava com uma vida fora do terreiro. Ela é mãe de santo vinte e quatro horas. Mas ela vive também a vida em função de outras pessoas, dando palestras de cura, de ervas, no mundo inteiro. Então, eu disse ao Bruno que eu já havia entendido o que ele queria, mas me interessava mais o que está por detrás dessa figura que vem na cabeça da gente da imediato, que é essa mãe de santo vestida com paramentos da religião. Mas, me interessava muito mais o que estava por trás daquela roupagem, daquele turbante, aquela mulher que também é uma mãe de santo. E, a partir daí, nós conseguimos traçar uma equipe. Precisávamos de ter alguém com maestria para falar sobre o assunto. Veio a pandemia. Passei por tragédias familiares. E o Bruno sempre ali ao meu lado. Eu estava em São Paulo gravando para o programa Segunda Chamada e nós fazíamos encontros virtuais. Daí formamos uma equipe. Pensamos no Luis Antonio Pilar, que é uma pessoa que já conhecia há muito tempo, desde a faculdade. Nós não somos da mesma época, mas ele é meu contemporâneo porque retornou à faculdade para se formar. Então nós acabávamos se cruzando. O Luís sai para fazer Chica da Silva como diretor assistente do Avancini. E eu reencontro Luís. Ele é de Padre Miguel. E eu sou de Realengo. Eu sou de Oswaldo Cruz, mas passei a minha vida toda em Realengo. E, encontro Luís ao final da faculdade, quando ele vai se formar. Então eu conhecia o Luis, já sabia que ele era um grande diretor. Ele tinha uma companhia, a Black em Preto, da qual vem a Cida Moreno, Léa Ferraz. E eu já era uma grande admiradora do trabalho do Luís. E ele do meu. Era uma coisa que a gente se namorava para trabalhar mutuamente. Eu tinha chamado ele para dirigir um espetáculo Marrom Nem Preto nem Branco, que é um espetáculo que eu faço para a minha filha, que também fui indicada a prêmios. Na época o Luis aceitou, mas surgiu um outro trabalho. Nós fomos chamados para fazer o Sesc. E aí o diretor musical, Marcelo Alonso Neves, um grande amigo meu, assumiu a direção. Então ficou sempre aquela coisa no ar de querer trabalhar com o Luis Antonio Pilar. Daí veio essa oportunidade de pensar no Luís. Em paralelo, nós começamos a procurar uma pessoa que pudesse nos calçar, nos dar aulas, que pudesse teoricamente embasar esse espetáculo, alguém que pudéssemos consultar. Então o Bruno indicou a Helena Teodoro. Eu não a conhecia. O Bruno fez contato com ela, e de pronto aceitou. Então, ela se tornou a nossa gurua, a pessoa na qual tudo bebíamos na água da Helena. Posteriormente, nós chamamos a Renata Mizrahi, que é a nossa dramaturga, e é a pessoa com quem eu trabalho há muitos anos. O primeiro trabalho que a Renata assinou foi Chica da Silva. Mas nós vínhamos trabalhando desde 2015 com Chica da Silva. 2014 talvez. Talvez até antes. Eu acho que foi em 2014 porque a Renata vinha na minha casa, colhia alguns depoimentos. Enfim, ela fez um Chica da Silva paralelo. Entre a história da Chica, contada por uma mulher Júnia, e a história de mulheres reais, negras, contemporâneas. Ela fazia esse paralelo. Então, a Renata também escreve Marrom em Preto e Branco, Vale Night, As Melhores, entre outras. E a Renata surgiu para fazer essa dramaturgia brilhante, tomando como base os relatos da Helena. Vale ressaltar que todas essas mulheres que aparecem, são narradas, isso tudo são ideias da Renata. E histórias que eu narrava para ela, ou histórias que a Renata pesquisava, a dramaturgia, a costura disso, o pensamento encima de todo esse arcabouço de conhecimento que a Helena trouxe, é da Renata Mizrahi. Foi um grande casamento de equipe. O espetáculo toca o coração das mulheres negras. Eu acho que toca o coração de todo mundo. É um espetáculo que fala para todo mundo. Racismo é um problema dos brancos. Então são os brancos que têm que resolver. É um problema criado por eles. E os brancos ainda detêm os meios de poder. Nós fazemos o que nós podemos. No sentido de que nós lutamos para sobreviver todos os dias. Nós precisamos sim que os brancos lutem para acabar com o sistema que eles mesmos criaram. Nós estamos fazendo a nossa parte. Mas é preciso que todo mundo faça a sua. Então as mulheres pretas de cara se identificam por aquelas histórias. Por que quando falamos de histórias de mães de santo falamos de mulheres pretas que lutam para sobreviver diariamente nesse mundo. E, são histórias de mulheres emponderadas, mulheres que deram certo. Mulheres que estão aí, mulheres que ainda estão vivendo nesse mundo. A Dona Chica e todas as outras que eu me lembre estão aqui, vivenciando esse mundo. E experienciando esse mundo. Isso tem uma identificação imediata. E todas essas mulheres estão vivendo essas vidas muito bem e obrigada. Não contamos histórias sobre mulheres que estão em dificuldades, passaram por, e continuam a passar, porque nós somos mulheres negras. Mas nós enfrentamos. Talvez não falando o que nós queremos dizer, na hora em que nós queremos dizer, é sobre isso que o texto fala. É por isso que as mulheres pretas se identificam. Por mais que você faça, por mais emponderada que você seja, você muitas vezes se cala, porque você não consegue dizer coisas que você tem vontade, ou fazer coisas que você tem vontade, na hora que você tem vontade. Nós vivemos numa sociedade que nos oprime o tempo inteiro. JP – Você é carioca! Em que bairro você nasceu? Sua origem familiar? Como foi sua infância? Onde você estudou? Sou carioca. Sou de Oswaldo Cruz, ali bem pertinho de Madureira, da Frei Bento, que é a rua que desemboca na estrada do Portela, que tem a portelinha, a primeira sede da Portela. Eu sou dali, mas meus pais se separaram quando eu tinha treze anos. Até os meus quatro anos, minha avó residiu em Marechal Hermes. Eu tenho uma grande lembrança de quando eu morava em Marechal, brincando na rua. Logo depois, minha avó foi para Realengo. Eu tinha uns quatro ou cinco anos, e lembro da mudança da minha avó. E era muito legal ir para Realengo. Minha mãe trabalhava. Meus pais trabalhavam o dia inteiro. Sempre teve uma pessoa que trabalhava na minha casa. Eu tinha que brincar dentro de casa. Minha mãe não deixava a gente sair de casa. Nós vivíamos numa casa, que está até hoje lá. Minha cunhada reside nessa casa, tem um quintal muito grande. Eu fui criada com cinco mangueiras, bambuzal, carambola da vizinha, tinha cachorro, galinha, tudo solto. Então, eu vivia numa casa com um quintal muito grande. Ela era antiga, de mil oitocentos e pouco, não me recordo a data exata. A minha casa era um parque de diversão. A seguir, meus pais colocaram a casa no chão, para construir a casa nova. E tinha balanço, escorrega, bicicleta, velocípede, jipe, era um verdadeiro parque. Então, minha mãe preferia que os meus amigos viessem brincar na minha casa, do que vice-versa. E nós fomos para Realengo, a casa da avó, final de semana e nas férias. Em Realengo, meu avô ficava na porta e eu podia brincar na rua. Mas também tinha um parque com um ganso que corria atrás da gente. Meu avô tinha muitos passarinhos. Tinha jardim da frente, com bananeira. Era uma casa grande, mas o quintal era menos extenso. Então nós íamos para a rua. Brincava de pique esconde, amarelinha, pique tá, casinha…Meu avô ficava no portão tomando conta da criançada. Não tinha asfalto. Os carros andavam com velocidade lenta. Hoje não é mais assim. A rua permanece residencial, mas não é mais assim. Era tudo muito calmo, muito tranquilo. As pessoas se conheciam. E, meus pais se separaram. Eu tinha treze anos. Fomos morar em Realengo. Então, eu não tive um choque. Eu conhecia todo mundo. Realengo era a minha segunda casa. Mas eu continuei estudando em Oswaldo Cruz, no Colégio Sul-americano. A seguir, eu passei para o ensino médio. Aí fui para o Pentágono, que é uma escola no Valqueire. E ali, para mim, foi muito ruim, pelo fato de ser a escola mais rica da redondeza, e eu me senti um peixe fora d’água. Eu sempre estudei em escola particular. Eu estudei do CA a oitava série no Instituto Sul-americano. Então, eu conhecia todo mundo. Claro que rolava bullying. Claro que rolava racismo. Claro que eu era a mais feia da turma. Mas eu conhecia aquelas pessoas. De repente, eu vou para uma escola onde não são mais as pessoas do meu bairro. São pessoas ricas, diferentes de mim. Pouquíssimos pretos na turma. Em Oswaldo Cruz havia mais pessoas pretas. Não era a maioria, mas tínhamos muitos. Quando eu chego lá, eu era minoria absoluta, contava no dedo. A convivência foi muito difícil. Uma escola que não tinha arte. Uma escola que era preparatória para o vestibular. Eu sofri muito. Muito difícil nesse período. JP – Como se deu os seus primeiros passos no teatro? Onde você se formou? Na escola, no Instituto Sul-americano, eu tinha uma professora de educação física que fazia aquelas montagens de escola, aquelas montagens de pecinhas de escola. E essa professora sempre me incentivou muito. Ela achava que eu falava alto. Esses eram os requisitos quando eu era criança. Tinha uma boa dicção, que eu lia muito bem. E que eu sabia falar. E ela sempre me chamava para fazer os papéis dos personagens no dia da páscoa, dia das mães. Juntamente, a Igreja, eu frequentava a Igreja católica, enquanto minha mãe era macumbeira. Meu pai era kardecista, já falecido. Eu frequentava a católica. Cada um ia para um lugar lá em casa. E, tudo certo! Sempre foi uma casa bem ecumênica. Todos vão a todos lugares, e aceita tudo. Na minha casa era importante ter uma religião. Ter fé. Nós tínhamos de acreditar em Deus. Eu ia a todos lugares de práticas religiosas. Um dia, uma amiga minha desde o CA, Valéria Carmem, que é minha amiga até hoje, disse que a professora no catecismo lhe passou que alguém faltaria na apresentação do dia dos pais. E a Valéria me perguntou se eu teria interesse de atuar. Estava faltando uma pessoa. E ela disse que pensaram em mim. Eu estava fazendo catecismo na mesma época. Então as pessoas me conheciam. Falei com a minha mãe, e ela autorizou. Chegando lá, a catequista me adorou. E eu entrei na peça. Meu pai era policial, e no dia da apresentação minha mãe disse que ele não poderia assistir. A professora pediu para confirmar se o pai das crianças de fato viriam. O pai que fosse, nós iremos fazer um tijolinho, que representava a construção de um muro, toda a coisa de caráter dos pais para as crianças. E a criança vai descer e entregar um tijolinho para o pai. Quem não, vai ficar aqui encima, vai cantar, vai dançar. Meu pai não foi. E eu lá encima do palco com o tijolo na mão aguardando. De repente, o pai da Valéria, subiu ao palco e pegou o tijolinho. Mas todos sabiam que ele não era meu pai. Era o tio Uilfer, pai da minha amiga. Depois ele me levou no parque. Eu estava muito triste. Quando eu cheguei em casa, meu pai estava dormindo. Então esse foi o meu primeiro encontro com o teatro. Quando eu estava na escola, e troquei de escola, esse foi o meu primeiro encontro com o teatro. Nunca fiz nada profissional. Nunca entrei em grupo. Quando eu estava no colégio Pentágono, eu não conseguia fazer nada. Porque a escola era praticamente integral, e sábado e domingo era dia de simulado. Um esquema insano. Eu só conseguia estudar para o vestibular. Eu me inscrevi no vestibular da UniRio, vestibular isolado, e me inscrevi para Artes Cênicas. Eu passei na habilidade específica porque uma professora minha tinha dado vários livros, dentre eles Gota d’água, e foi o meu primeiro contato com texto de teatro, do Chico Buarque e do Paulo Pontes, através dessa professora de português Alair, e foi o primeiro contato com o texto de teatro. Eu fiz o vestibular e fui aprovada. O Lázaro Ramos até fala disso no livro dele, Na Minha Pele. Nós para se enturmar, fazemos aquilo que dá para fazer. Você é o inteligente, o engraçado, o cantor…você é sempre alguma coisa. Eu sempre fui a mais feia da turma. Eu era preta e eu acreditava que eu era. Porque eu era preta e a mais feia da turma. Tudo era muito cruel. E, para me livrar desse estigma, eu era engraçada, eu sabia cantar, eu sabia declamar. Minha mãe fez das tripas corações para nós estudar. Eu e meu irmão mais velho. Nós fazíamos curso de inglês, de música, no que ela podia nos colocar ela colocava. Tudo pagando. Nada foi de graça. Era tudo pago. A educação era para uma elite. Então, vocês terão as oportunidades que eu não tive, porque vocês irão poder escolher. Coisa que mamãe não pôde. Só a educação salva. A mudança de vida se dá através da educação. Esse foi o meu encontro com o teatro. Deixa a vida me levar, meio ao acaso, como Zeca Pagodinho. Claro, que quando eu olho para a escola, eu já me esbarrava. Eu me metia nessas coisas. Leituras. Eu tive muitos percalços dentro da universidade também. Teve uma professora que me perguntou o que eu estava fazendo ali naquele espaço. Porque eu não ia lavar roupa suja. E ninguém fez nada na sala de aula. E eu não sabia me posicionar quando era atacada. Mas eu estava sempre metida ali. Minha mãe tinha me levado no Centro de Artes calouste Gulbenkian porque eu queria fazer teatro. Como eu fazia aula de inglês, eu queria fazer de teatro também. Eu e um amigo meu, da escola, que é branco, o Alexandre, descobriu que tinha no Calouste. Ele trouxe a gente. Sendo que, quando eu cheguei lâ, a pergunta que a Aribélia fez foi: você terminou o segundo grau? Você tem dezoito anos? Eu respondi que não. E ela argumentou que eu não podia estudar no Calouste. Tinha que completar 18 anos. Saí de lá arrasada. Porque era um lugar público, gratuito. Então quando eu entrei, de fato, no teatro era uma coisa já vocacionada e predestinada. Eu tinha que seguir aquele caminho. Era para estar ali naquele momento, naquela hora. A minha mãe queria a mim e ao meu irmão formados. E assim foi o meu encontro com as artes cênicas. Totalmente locais. E, com dezessete anos, eu ingressei na universidade, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio). Outro lugar da elite carioca. E quem estuda teatro, numa escola que praticamente as aulas são em tempo integral, pai e mãe podem bancar. Entrei na Faculdade no ano de 1987. Era o período final da ditadura militar. E, dentro da faculdade, eu também não encontrei os meus pares. Eu lembro de duas ou três pessoas pretas. Uma que não era da minha turma. E a outra, o Luis Antonio Pilar, eu só encontrei no final da faculdade, mas eu sabia que ele era de lá. Mas ele era anos antes de mim. O outro foi o André, que era formado em licenciatura, que é professor até hoje, que nós temos contato. Ele era da turma anterior a minha. Valquíria que entrou na minha turma. E, um rapaz que também entrou na minha turma, e que a filha dele é formada lá. Ele morava em Cascadura, e retornávamos juntos. Ele teve que abandonar a faculdade porque era da Aeronáutica. E a Valquíria também abandonou a faculdade por punição. Ela era formada pela Martins Penna. Mas, depois retornou, e fez licenciatura. Eu era única na minha turma. Não tinha a quem me juntar, me defender das atrocidades que aconteciam. Muitas coisas aconteceram. Sempre duvidando da minha capacidade. Para aquela aluna que era brilhante na sala de aula, mas que na hora da montagem. Na hora da aula todos queriam me escolher para participar dos grupos, mas na hora do vamos ver eu nunca era escolhida. Eu era sempre preterida porque eu não tinha o fisique du role do personagem. Os meus próprios colegas de turma nunca me davam “emprego”. Porque a UniRio meio que me dava os seus dias no mercado de trabalho. Então os alunos e diretores escolhiam os atores. Ás vezes havia teste. E, havia uma verdadeira disputa para a prática de montagem. Havia mais mulheres do que homens. E chegava na hora e eu não realizava prática de montagem. Na prática de montagem, eu acabei fazendo som. O Marco Antonio Braz queria um narrador para fazer. Aí eu fui fazer o narrador no dia em que a banca ia, e no dia em que a banca não ia, eu operava o som. Depois, eu fiz O Palácio das Ilusões de uma Negra. E, fiz a ultima prática de montagem porque eu precisava de me formar. O Zeca Legiero, recém chegado à Universidade como professor, quando eu fiz Palácio das Ilusões de uma Negra, que foi a primeira peça incompreendida da Unirio, que até eu achava que era ruim. Hoje eu revendo, considero que era muito legal. A protagonista era uma menina negra, sobre questões negras, que ninguém queria saber disso na época. Bom era fazer Ibsen, Brecht…o bom era fazer outras coisas. E não falar sobre nós. E nós também era importante JP – Você só atua nos palcos ou também leciona? Você também se preocupa com a formação dos atores? Quando eu me formei, eu sempre quis ser professora. Durante o período em que eu fiz interpretação, eu fiz prova também para o Colégio Aristides Caio, para fazer também formação de professores, e como eu já tinha ensino médio, era só a formação de professores mesmo. Eu fiz formação de professores na Escola Aristides Caio, localizada no Méier. Eu morava em Realengo, fazia aula no Méier, e fazia faculdade na Urca, e trabalhava numa livraria. Como eu fazia isso? Não me pergunte! Eu não sei. Mas quando nós queremos é possível. Porque eu fiz a faculdade no tempo certo. Aos dezenove anos eu estava numa companhia, que é o teatro Oikoveva, e fui para fora do Brasil com essa companhia. Viajei, aprendi, estudei, trabalhei oito ou nove anos com essa companhia, que era uma companhia de teatro de pesquisa, tive contato com diversos grupos do mundo inteiro, no Brasil, quanto fora do Brasil. Foi nessa época que eu tive contato com os grupos do Brasil, como Galpão, Vento Forte, Imboaça, Ombu, entre outros. Todos os grupos dos anos oitenta. Organizamos encontros e festivais. Terminei a faculdade aos vinte e um anos de idade. Depois fui fazer licenciatura. No ano em que eu estava na licenciatura surgiram dois concursos. Passei nos dois concursos e fui ser professora do Município do Rio de Janeiro. Durante os estágios da licenciatura, teve uma escola, em Mesquita, na Baixada Fluminense, que a professora ficou grávida, e eu tinha uma boa relação com as pessoas da escola. Quando a professora foi ter o filho, a escola me contratou como professora de primeira a quarta, porque eu tinha o diploma de normalista. Eu fiquei contratada como estagiária, dando aula de quinta a oitava, e dando aula de primeira a quarta como professora. Então eu comecei a lecionar. Quando terminou, eu fui efetivada. Terminei a licenciatura e fui efetivada. Fiquei dando aula no Município, e nessa escola. A seguir, eu fui para outras escolas particulares. No município tinha a possibilidade de ter dupla regência, e eu dobrei a minha matrícula no Município. Vieram meus filhos, e eu tive que abandonar as escolas particulares. Eu nunca abandonei os palcos. Eu estava com nove meses do meu filho, e eu estava fazendo Henrique IV, da companhia Pequeno Gesto, minha segunda companhia. Eu fiquei dez anos em sala de aula do Município, e a experiência adquirida nos anos das escolas particulares. Mas o meu objetivo era lecionar no Calouste Gulbenkian. Eu consegui. Vim fazer um trabalho com o Dudu Sandroni como atriz. Na ocasião tive a oportunidade de conhecer a diretora do Centro de Artes, que gostou muito do meu trabalho e me convidou para integrar o espaço. Eu era professora do Município, e o Calouste integrava as instituições municipais. Após uma queda de braço entre a diretora do Calouste e a secretária de educação, consegui a intervenção do prefeito César Maia e ele liberou a minha transferência. O meu compromisso com a educação vem desde sempre. Sempre dei aulas de artes cênicas. Sempre tive um compromisso com a educação. Hoje em dia eu coordeno o curso do Calouste. Curso aberto e gratuito a todos. E tenho vinte e nove anos de magistério. JP – Quais são as referências que embasaram o seu atuar como atriz? É uma pergunta difícil para mim. Porque a televisão não era uma coisa presente na minha casa. Apesar de haver dois aparelhos de TV na minha residência, a minha mãe não era adepta. Eu assistia Sítio do Picapau Amarelo. Eu hoje em dia trabalho com o senhor Romeu Evaristo, e foi uma grande referência. Grande Otelo, Ruth de Souza, Léa Garcia, pessoas que eu pude ter contato na minha vida. O Grande Otelo eu não tive contato. Mas eu tive a chance de ser o Grande Otelo em cena. Eu fiz Grande Otelo, Eta Moleque Bom, foi um grande musical do Maurício Tizumba. Mas eu não conheci o Grande Otelo. A TV eu não tive. Eu não ia ao teatro. A primeira vez que eu entrei no teatro foi no Municipal, por meio de ingressos distribuídos na UniRio. Eu cresci sem grandes referências. Enquanto o teatro foi muito ao acaso. No cinema, o que eu via era block buster. Madureira 1, 2 e 3. Filmes A Guerra nas Estrelas, Os Trapalhões, entre outros. O Zaccarias, integrante dos Trapalhões, foi uma grande referéncia para mim. Mas eu posso dizer que é referência de atuação. JP – Você também atua na televisão. Como se deu a sua entrada para a TV Globo? Qual a novela que você mais gostou de atuar? Eu não fiz muita coisa na Globo não. Eu fiz muita participação. Empregada, recepcionista, a moça da rua. Fazia muitas coisas engraçadas. A primeira novela que eu fiz foi Avenida Brasil. Fui a empregada na casa do Cadinho. E, na sequência, atuei em Jóia Rara, empregada da casa do Leopoldo Pacheco e da Cláudia Ohana. E, depois, eu fui fazer Segunda Chamada. Porque eu fazia um espetáculo chamado Fulaninho e Dona Coisa, que ganhamos o prêmio de melhor elenco do prêmio Aplauso Brasil em São Paulo. Na ocasião, o Barata insistiu que a Vanessa Veiga fosse assistir. Ela foi e me convidou para fazer um teste. Eu fiz o teste, fui selecionada, mas não entrei na primeira temporada. Contudo, havia um outro personagem que era a mãe do professor, do Marco André. Eu fiz vários testes. Consegui. A Joana Jabaça deu o ok. E eu entrei no Segunda Chamada. Foi um projeto muito especial. Fui muito feliz. Tanto a primeira como a segunda temporada foram muito felizes, apesar de na segunda temporada os meus dramas pessoais, a pandemia, eu mesma tive perdas de familiares,….Mas Segunda Chamada continua sendo um projeto muito especial na minha vida. Fui muito bem tratada pela equipe. Eu não estava acostumada com esse tratamento. Eu sempre fui muito maltratada. O problema não é se fazer a empregada doméstica. A questão é como te tratam dentro desse lugar, como te colocam como aquela empregada donéstica que não faz nenhum sentido para a história. Ela só está ali para dizer para o patrão ostentar, para ele dizer que tem uma empregada doméstica pobre e preta. A seguir a novela Jóia Rara, eu fui convidada novamente para fazer outra personagem, mas eu não aceitei. Porque eu não queria pautar minha carreira nas domésticas. Não tinha problema algum. Minha avó era empregada doméstica. E se eu tiver que trabalhar agora como uma doméstica, eu vou numa boa. Mas quando você coloca no audio visual, uma pessoa que entra e sai muda e calada com uma bandeja na mão, dizendo sim senhor, não senhor, você está dando um recado para a sociedade. E não é esse recado que eu quero passar. Mas, na época, eu precisava pagar conta. Eu fui chamada e precisei fazer. Eu não tenho questão nenhuma de fazer empregada doméstica. A questão é: qual é o recado que essa empregada está dando para a sociedade? Qual é o recado que a gente quer dizer para o mundo aqui fora? E o áudio-visual tem esse poder. Eu não sou contratada da Globo. A Globo me contrata por obra certa. Paralelo a isso, eu fiz um filme, Casamento à Distância, que ainda vai estreiar. Fiz Central de Bicos, no Multishow. Fiz a série Amar é Para os Fortes, do Marcelo D2. Fiz o filme Vizinhos, do Leandro Hassum. Fiz Cinema de Enredo, com o Luis Antonio Pilar. As minhas duas maiores séries que eu fiz para a Globo foram Encantados, e Segunda Chamada. JP – O que é ser negro no Brasil? É sofrer todos os dias. É você acordar todos os dias sem saber se você vai voltar para casa. É saber que todos os dias que você acorda, você já acorda cansado. Porque você vai ter um enfrentamento. E esse enfrentamento muitas das vezes é silencioso porque só você percebe. O enfrentamento de você com você mesmo. Ser negro no Brasil é estar nos menores lugares, na baixa camada da sociedade, baixa pirâmide, nos piores empregos, ter as piores oportunidades. Há exceções. Você ser olhado com olhar de diferenciação, como se você fosse nada. Isso é ser negro no Brasil. JP – Você considera que a igualdade de oportunidades para os artistas negros já é uma realidade ou ainda não? Não! Claro que não! Tá muito longe de ser. Tanto é que quando tem artistas pretos fazendo alguma coisa, agora tivemos três novelas com protagonismo preto, e a série com protagonismo preto, isso virou assunto. Só isso já é a prova de que a oportunidade não é igual. Nós temos protagonismo branco, alguém está falando alguma coisa. JP – Você foi contemplada com o prêmio Shell de Teatro com o espetáculo ‘Chica da Silva’ em 2017. Qual foi o significado desse prêmio para a sua carreira e para a comunidade de artistas negras? Esse prêmio não foi da Vilma. Ele estava engasgado na garganta de toda uma comunidade. Quando a Vilma recebeu esse prêmio, falo na terceira pessoa, esse prêmio foi um grito. Se o prêmio é uma honra, uma alegria, do ponto de vista individual, é uma tristeza do ponto de vista coletivo. Das 29 edições do prêmio, nenhuma atriz negra ter conseguido ganhar, é muito triste. Isso é a resposta da pergunta oito. Eu fui a primeira pessoa negra retinta a receber esse prêmio. Isso foi em 2017. Estamos em 2023. Alguma coisa mudou? Sim. Mas nós ainda estamos atrasados em relação à história. A história nos deve trezentos anos. Então por mais que nós andemos, nós vamos continuar atrasados em relação à história. Então, o prêmio serviu para mostrar que meninas pretas de Realengo, de Campo Grande, de Mesquita, do interior, olharem e dizerem é possível estar ali, eu sou capaz. Elas dizerem para si que são capazes, porque o tempo inteiro tentam dizer para nós… É que nós não somos capazes. Quando ingressamos hoje na UniRio, com sistema de reparação de cotas, e vemos 50% daquelas pessoas se entendendo como negras e mestiças, ou indígenas, nós dizemos que somos capazes sim, somos capazes de ingressar nessa universidade, de estar aqui, estudar, me formar, de trabalhar nesse mercado que é cruel. E vocês terão que me dar espaço, que eu vou cavar esse espaço, quer vocês queiram ou não. O mundo está mudando. E quem não entrar nessa roda vai ficar para trás. Encantados foi o primeiro seriado de humor produzido no Brasil com uma família negra. Tem alguma coisa equivocada. O racismo é um plano. E, no Brasil, ele deu muito certo. Porque é preto cobtra preto, branco contra preto, é aquele que nem sabe o que quer mas está contra preto. E as coisas irão começar a mudar quando formos nos organizado. Porque já fomos organizados um dia. E é isso que essa nova geração vem fazendo porque eles são organizados, estão vindo com vontade. E eles são muitos. Eles são 50% entrando na universidade. Eu sou a voz. Essa é a diferença da minha geração para a de agora. E representatividade maior foi ter o meu nome de Vilma Melo no Diretório Académico da Escola de Teatro da UniRio, local onde eu estudei. Então sim! A educação salva! JP – Quais são os seus projetos futuros? E, para finalizar, deixa uma mensagem para os jovens atores e atrizes. Sigo com Mãe de Santo, indo para a terceira temporada. Foi um sucesso no teatro Ipanema, casa lotada. Para uma artista preta, na zona sul do Rio de Janeiro, significa muito. Tem a terceira temporada de Encantados. Irei realizar uma viagem internacional no período entre outubro a novembro com Mãe de Santo, realizando apresentações em Portugal e em África. Dirijo um espetáculo chamado Açú, que estreia em outubro no Sesc Copacabana. Outro espetáculo que estou dirigindo, em parceria com Vitor Garcia Peralta, é Muito Pelo Contrário, que estréia em outubro também, com Emílio Orciolo. Esses são os meus projetos concretos. E, como mensagem: A educação salva!