
Estreou Alma Despejada no teatro dos Quatro.
O texto narra a história de Teresa (interpretada pela atriz Irene Ravache) que, depois de morta, fez sua última visita à casa onde morava. Ao retornar, ela rememorou todos os principais episódios da sua vida.
Depois de póstuma, Teresa veio visitar várias vezes sua casa. A primeira foi quando desmontaram seu guarda-roupas. E, a seguir, em diversas outras ocasiões. Veio também inclusive no dia da partida Brasil versus Alemanha, partida pela Copa do Mundo de 2014, quando perdemos por 7 a 1. Não era para ter vindo! Que dia amargo!
Teresa não conseguia se definir. Um fantasma? Uma alma penada? Não sabia o que ela era! Embora viesse sempre visitar a casa. Até que um dia, ela foi vendida. E a sua alma foi despejada.
O texto de Andréa Bassitt apresenta uma complexa discussão sobre memória. Segundo Teresa, a memória não morre. É algo vivo. Ela é a herança que guardamos para nós mesmos. É um patrimônio pessoal e intransferível. E na hora do seu despejo, Tereza teve apenas que levar o essencial. Argumentou ainda que, depois que nós morremos, a nossa memória melhora. O lado de lá, lembra tudo do que fizemos aqui na Terra. Mas não há tribunal, pois da vida nada se leva.
Teresa iniciou relembrando sua infância. Informou que sempre anotou tudo desde menina. Saía escrevendo palavras com giz nas paredes. Palavras fáceis, como jaboticaba. Outras difíceis, como vicissitude. Outras com um tom de piada, como propina. Tinha um verdadeiro fascínio pelas palavras. E também pelos livros. Sempre gostou muito de escrever. E, para ela, escrever era uma necessidade do seu espírito. Não se tornou uma literata. Mas uma professora, de classe média, branca, que ensinou muito para as crianças.
Ao mencionar a palavra antropofagia, ela remeteu ao crânio. E, lembrou do diálogo que estabeleceu com Neide, funcionária que trabalhou em sua casa por trinta anos,
sobre a questão do crânio. Disse gostar da caveira, pois ela iguala a todos.
Do matrimonio, ela lembrou de Roberto, seu esposo, homem simples e trabalhador que se tornou um empresário bem-sucedido, ascendendo socialmente. Eles se tornaram “New Richs”.
Lembrou das viagens que realizou com Roberto para Paris, e para os países da América do Sul.
Do esposo também teve lembranças desagradáveis. Ela estava na terceira idade. Desfrutando. Cinquenta por cento de desconto em tudo. Momento de felicidade. Prioridade nas filas. Vida social e cultural intensa.
Contudo, naquele momento de euforia, recebeu uma notícia bombástica. Roberto, seu esposo, lhe confessou que estava envolvido num crime de corrupção e lavagem de dinheiro. Ele recebia incentivos de órgãos públicos e repassava a pessoas ligadas ao governo, políticos, campanhas. Tereza o denunciou ao delegado, realizou uma “confissão terceirizada”. Acabou preso. E, a partir desse momento, elas confessou: “As nossas vidas se transformaram num inferno”. Até os vizinhos falavam sobre o ocorrido!
Lembrou também do casal de filhos, Larissa e Eduardo. Saíram da mesma mãe, mas tão diferentes.
Deixou transparecer também preocupação ambiental: muito plástico. E também muita plástica, muitas pessoas com a face esticada. Uma crítica ao excesso de vaidade. Brincou com as palavras.
Lembrou também de momentos da história do Brasil, dos “anos de chumbo”, época de um “meio autoritário”, quando Pedro, seu cunhado, uma “alma justa”, que defendia a todos, passou a ser mau visto, perseguido. Foi assassinado por meio de um acidente criminoso, quando investigava a morte de um jornalista. A partir desse momento, ela passou a desprezar a política, “área cruel”.
Recordou também que apresentava os seus textos para a amiga Dora, amigas desde meninas. Mais tarde se tornaram cunhadas, pois Dora se casou com Pedro, irmão de Roberto.
Portanto, Teresa revisitou histórias e pessoas importantes, que fizeram parte da sua vida, e lhe deram sentido, uma direção.
Memória é seleção. E Tereza selecionou aquilo que ela queria lembrar, fossem boas ou más lembranças, mas elas tiveram um sentido em sua vida. São as memórias da sua casa, da sua família, das pessoas que estiveram próximas. Ela não narrou tudo, pois o caráter seletivo da memória nos impede. Teve elementos que ela esqueceu. Não quis recordar. Lembrar e esquecer são duas faces da mesma moeda.
O monólogo é lindo, potente, emotivo e poético, deixa uma mensagem sobre a finitude da vida. Dela não levamos nada. As coisas materiais ficam no mundo terreno, não nos acompanham. Levamos as nossas lembranças, recordações, sentimentos, emoções, patrimônio que ninguém nos tira. Tanto que Tereza retornou a esse mundo e compartilhou conosco as suas memórias.
O tempo de Teresa aqui na Terra já passou. Ela já não está mais entre nós. Desapareceu. Virou espólio. Mas, ela sente a necessidade de retornar a sua casa. Porque, ainda que não mais viva, ela levou consigo a sua memória e as suas experiencias terrenas. Estas últimas, o tempo, nem a morte, não conseguiu apagá-las. É de sua propriedade. Ninguém lhe tira.
A atriz Irene Ravache nos brinda com uma atuação de gala, impecável, sensível, emocionante. Passa o texto de forma simples, sem rebuscamentos, e se comunica bem com o público, fazendo a todos se emocionar, como também a sorrir. Domina o texto e o palco com imponência, sabendo se colocar e fazendo-se respeitar como uma atriz majestosa e de uma grandeza ímpar. Ela se entrega de corpo e alma naquela ribalta.
A direção de Elias Andreato se preocupa com a interpretação perfeita de Irene. E, como já comentamos, apresenta nível de excelência. Mas também se preocupou com a emoção, com o lado poético e sentimental da mensagem. Irene faz uma Teresa saudosa, que ainda está apegada a sua residência, e ao retornar para realizar sua última visita, por meio das suas lembranças e recordações deixa transparecer o lado do coração, do sentimento.
O figurino é uma criação de Fábio Namatame, simples, funcional, e adequado a personagem. Irene veste um casaco de manga comprida azul, e um vestido da mesma cor. E usa calça branca, e calça tênis.
A cenografia também criada por Fábio Namatame apresenta uma casa preparada para a mudança. Diversas caixas de papelão, uma estante sem objeto algum, duas cadeiras, a face de uma caveira, dentre outros objetos. Teresa, depois de morta, retornou para se despedir da sua residência, uma vez que foi vendida, e a sua alma despejada.
A iluminação criada por Hiram Ravache é bonita, adequada, e realça a atriz em suas diversas cenas.
Alma Despejada é uma peça teatral que apresenta uma atriz notável, como também dramaturgia, direção, cenografia, figurinos, iluminação de qualidade.
Excelente e imperdível produção cênica!