
Estreou a peça teatral Sangue, no teatro do CCBB RIO 2.
- Apresentação do Conteúdo
A peça tem início num restaurante, onde trabalha Carin, interpretada por Carol Gonzalez. O ator Cesar Santos, interpretado por Rogério Brito, foi até o espaço para realizar uma refeição.
Cesar Santos era um ator de cinema, que teve alguma projeção nos seus filmes. Ele era preto, morava na periferia, e tinha em sua memória o corpo do seu irmão que foi retirado de sua casa pelas forças policiais. E também tinha uma passagem de cinco anos pela prisão.
Carin vai até a mesa onde Cesar está sentado. Lhe apresenta o cardápio e começa a dialogar com o mesmo. Ela informa que, além de garçonete, é também atriz e diretora de teatro. Ela lhe pergunta se poderia ler a peça Sangue. Ele aceita, e marcam um encontro.
Cesar foi ao encontro de Carin em sua residência. Ela lhe apresenta o texto Sangue, de APonti, que se passa em Sarajevo, durante a Guerra da Bósnia, no ano de 1993. Apresenta os protagonistas, Ana e Malic, que atravessam uma ponte cheia de corpos ensanguentados carregados de balas. Ana procura pelo corpo do seu irmão.
Durante a leitura, Carin recebeu mensagens da produtora informando sobre o cancelamento do projeto. Carin argumentou que tinha a carta da família do autor autorizando, e que havia pago os direitos autorais. Ainda assim, a agência francesa manteve o cancelamento do projeto, e considerou que se houvesse insistência a acusaria de roubo de propriedade intelectual.
Em desespero, Carin procura Leon, seu ex-marido de origem francesa e amigo do irmão do autor da peça, Vitor. Procurando compreender o que aconteceu, ela relata o fato e solicita ajuda a Leon para reverter a situação.
Leon, interpretado por Marat Descartes, se apresenta como autor do projeto, e informa que teria os direitos cedidos pelo autor do irmão. Ele se disse surpreso com a informação de Carin de que ela iria executar a montagem. Ela disse que não lhe informou sobre a sua montagem de Sangue porque iria lhe convidar quando estreasse. Ele informou a Carin que iria almoçar com Vitor e buscaria uma solução para o fato. Disse para ela se manter calma, e que iria cuidar dela.
Leon se encontra com Vitor, interpretado por Leopoldo Pacheco, num restaurante. O primeiro tenta convencer o segundo a retomar as atividades como diretor. E dirigir o texto do seu próprio irmão, Aponti, considerado como um testamento Político, “Sangue”. Leon busca convencer que o projeto de Carin é cópia do seu projeto.
Uma reunião virtual foi agenda com Vitor e Leon, além de Carin e Cesar.
Na reunião, Vitor lamenta o acontecido, e informa que Carin tem os direitos sim. Dessa forma, o cancelamento do projeto por essa razão estava finalizado. Não havia nenhuma apropriação indevida de direitos autorais.
Contudo, Vitor argumentou que o projeto de montagem de Carin tinha inúmeros equívocos. Ele apresenta uma série de críticas ao conteúdo do mesmo.
O primeiro dos erros consistia no fato de Carin exercer ao mesmo tempo as funções de atriz e diretora. Vitor argumentou que os atores e as atrizes atuam, os diretores dirigem, e os autores redigem a dramaturgia.
Em segundo lugar, ele argumentou que há erros graves da realidade, apresenta distancia histórica, e tem uma visão errada sobre a guerra da Bósnia. Insere temas como igualdade social, colonialismo, e amor. Contudo, tais temas não são tratados. Ele considera o projeto estúpido, primário de direção. Em função desse fato, Vitor manteve o bloqueio do projeto.
Carin questiona os argumentos de Vitor, e insiste que ele tinha aprovado o projeto dela. Vitor argumenta que havia cedido os direitos e autorizado o projeto de montagem do texto conforme apresentado por Leon, e não o dela. Argumentou que o projeto da atriz era irrealizável, e disse que da forma como se apresentava era uma brincadeira de criança no pátio. Carin transtornada encerrou a reunião.
Carin e Leon voltaram a se encontrar. Ele disse que não teve nada a ver com a decisão de Vitor de ter bloqueado o projeto. Foi uma decisão dele próprio. Por sua vez, Carin diz a Leon que ele próprio lhe tinha dado o projeto.
Por sua vez, Cesar também não aceita, e diz que Leon roubou o projeto de Carin.
Leon argumenta que Carin não tem condições de dirigir a peça. Ele diz que ela não conhece a peça por fora, a casca. Carin contra-argumenta informando que possui dois diplomas, sendo um deles de direção. Contudo, Leon bota pé firme, e afirma que Carin é uma atriz, e não diretora.
Logo a seguir, Leon informa a Carin sobre a montagem franco-brasileira, apoiada pelo governo francês, que financiaria todo o projeto. Ademais, a peça viajaria por dois anos por diversos países. Neste projeto, Vitor seria o diretor, e Leon seria o cenógrafo, e o intérprete idiomático. Portanto, os dois passariam a ser os responsáveis. Cinicamente, Leon disse que fez isso por Carin.
A partir do desenvolvimento do novo projeto, começando do primeiro ensaio até chegar ao ensaio geral e a estreia, Leon passa a dar as rédeas do projeto.
Leon trata Carin da pior maneira possível. Entra no seu camarim sem avisar, a violenta com suas palavras, humilha, e informa que os gastos anteriores ao projeto não serão ressarcidos.
Em função de Vitor ter adoecido, Leon assumiu também a direção. E buscou afastar os dois atores, ensaiando-os de forma separada. Permanecia violentando Carin com suas palavras. Chamou-a de histérica e sem controle. Ele menosprezou-a, demoliu-a. Começou a assediá-la.
Chegou o dia da estreia. Uma estrutura de ferro que remetia a uma prisão foi apresentada como sendo o cenário. Dentro dele estavam os dois atores vestidos de branco.
Leon se aproxima da estrutura e, mais uma vez, disse que fez tudo por Carin. Protegeu-a. E cuidou do filho deles.
A seguir, ele se senta próximo a grade e Carin, num momento de raiva e fúria, por todas as humilhações que passou e violências sofridas, colocou a faca no pescoço dele e o matou. O sangue escorria. Estreou!
- O Olhar Crítico
O texto é dramático, potente, crítico, denunciador, é um grito contra a prepotência do europeu, no caso os franceses, que se consideram superiores em relação a outros povos; o olhar depreciativo europeu sobre as produções que não são de sua autoria propriamente dita, considerando-as inferiores e vis; a dominação masculina, que humilha e violenta a figura feminina, numa relação que busca dominá-la e destruí-la, aniquilando sua força e o seu poder.
O texto denuncia o colonialismo e o seu caráter usurpador. Os franceses, Vitor e Leon, aniquilam e destroem o projeto brasileiro, elaborado por Carin, considerando-o fraco, inadequado, e pouco qualitativo e realizável. Sublinham a sua incapacidade de direção. O olhar preconceituoso, arrogante e prepotente se faz presente. Eles se colocam por cima, e julgam. Primeiro foi Vitor que destruiu o projeto com suas críticas ácidas e demolidoras.
Como resultado da visão perversa, eles criaram um novo projeto, o impuseram aos brasileiros, e assumiram as funções principais, numa relação que se estabelece de domínio e de poder, marcada pela verticalidade, pela submissão inconteste, pela humilhação. Em outras palavras, eles roubaram o projeto, assumiram posições centrais, e submeteram os atores brasileiros sob sua direção.
Por sua vez, Leon estabelece com Carin uma relação de desrespeito. Ele toma atitudes de um homem babaca, um estúpido, um covarde, sem caráter. Ele emite as piores opiniões sobre a sua ex-mulher, a afasta da direção do projeto e coloca-a apenas como atriz. Quando ele assume a direção da peça em função da enfermidade de Vitor, ele aproveita que está com o poder, e a humilha, a violenta, estabelecendo uma relação de dominação marcada pelo conflito, pela violência.
A dramaturgia optou por uma narrativa que se circunscreve numa temporalidade regressiva, que vai do encontro de Carin e Cesar no restaurante até a data da estreia. No total foram 127 dias. Mas essa cronologia não é apenas de datas e fatos, uma linha reta. Ela é constituída pelo enredo marcado por roubos, usurpações, preconceitos, violências e humilhações.
Os quatro atores (Carol Gonzalez, Leopoldo Pacheco, Marat Descartes e Rogério Brito) apresentam uma atuação correta e adequada. Eles dominam o texto e o palco. Apresentam uma movimentação intensa pela ribalta. O texto por eles é apresentado numa linguagem simples, que facilita o entendimento, embora seja um texto denso e complexo.
O elenco é dirigido por Kiko Marques. Ele foi preciso nas marcações e em detalhes de direção de atores.
Os figurinos de Marichilene Artisevskis são adequados aos personagens do espetáculo. Carin, Cesar e Leon usam roupas simples do dia-a-dia. Por sua vez, Vitor, irmão do autor do texto, engenheiro, empresário, usa terno, uma roupa mais social.
Quando irá estrear Sangue, Carin e Cesar em seus respectivos personagens, Ana e Malich, estão utilizando figurinos brancos.
A cenografia criada por André Cortez serve aos vários espaços das cenas presentes no texto. Serve como um restaurante, o apartamento de Carin, a residência de Cesar, o escritório de Vitor, camarim, palco onde será encenada Sangue, entre outros. Ela é constituída por uma mesa e cadeiras ao centro do palco. Ao fundo, uma parede preta com duas portas. Ao final, se transforma na instalação cenográfica da peça, que remete a uma grade.
A iluminação criada por Gabriele Souza apresenta um bonito desenho de luz, e incrementa a atuação dos atores em suas diversas cenas.
Sangue é uma peça com uma dramaturgia potente e crítica; um elenco com uma atuação correta; e uma direção competente e séria.
Excelente produção cultural!