
No sul de Chicago, nos anos 30, ser um gângster era uma carreira a se considerar ainda criança. Desde cedo, um canivete em mãos era comum para muitos meninos na região. Era tentador, ainda mais numa idade tão jovem, em que você quer ser o que você vê. Para um entre tantos garotos à época, esse futuro foi repensado tão logo um piano cruzou seu caminho. Ali estava uma peça que mudaria a vida de um dos músicos mais influentes de todos os tempos. Ali estava a chance de não mais perder uma das refeições do dia. Era uma oportunidade de enfrentamento à fome e ao racismo. Era a música apresentando a liberdade.
Quincy Jones foi muito além do que se pode fazer com 12 notas musicais. Investigou profundamente tudo o que já havia sido tentado ao longo de mais de sessenta décadas. Sempre esteve num papel de protagonismo em absolutamente tudo o que envolve a produção de um disco, uma canção, um artista. Q, para os íntimos, viu tudo e todos e não era capaz de passar despercebido por conta de seu papel na indústria fonográfica, cinematográfica e cultural estadunidense. Mas seu talento ultrapassou as fronteiras de sua terra natal. Produziu alguns dos nomes mais influentes da história, marcando gerações com álbuns que definiram épocas. Diversos artistas o conheceram por sua colaboração com Michael Jackson. Outros tantos, passaram a prestar atenção em seu talento, por conta de seu trabalho como regente e arranjador da orquestra de Frank Sinatra. Mas seja produzindo Miles Davis ou Lesley Gore, aos poucos Jones foi escrevendo em definitivo seu nome num mercado que passou a enxergá-lo como um personagem essencial para extrair o melhor de todos. Muito além do trompete, do piano, o estúdio sempre foi o maior instrumento de Quincy. O tocou com maestria e nos seus ombros carrega uma parcela considerável do sucesso de muitos títulos que ganharam o mundo. Sua versatilidade fica mais evidente, muito por conta de sua resistência em não rotular os sons que ajudou a criar. Trabalhou com quase todo mundo porque compreendia que a música é essencial para a vida, tanto quanto a água. Por isso seus números superlativos em trilhas de cinema e tv, além de tantos discos gravados. Sem falar em composições próprias, que passam de 1.000. Só mesmo ele, foi capaz de derrubar paredes que distanciam gêneros e reunir numa mesma sala, talentos diversos com um propósito único. Entre tantos títulos que levam seu crédito, We are the world é um marco muito significativo. Na gravação que ajudou a arrecadar milhões para o combate à fome no continente africano, Quincy produziu e regeu Dionne Warwick, Bruce Springsteen, Cindy Lauper, Lionel Richie e muitos outros grandes da música em meados dos anos 80. O tema tomou o planeta e incentivou o engajamento em diversas outras causas em vários países.
Jones sempre escutou o mundo e levou para outros mercados músicos de todo o lugar. Paulinho da Costa, lendário percussionista brasileiro é um dos que sempre esteve no time dos talentos extraordinários que o produtor fazia questão de ter por perto. E sempre que podia destacava seu bom gosto citando o apreço por Milton Nascimento e Djavan.
Produzido pela Netflix e lançado em 2018, o documentário que conta sua história exibe mais do que momentos marcantes. Apresenta um perfil íntimo de um profissional que sempre identificou onde um trabalho poderia atingir, antes de todos os outros. O farto material de arquivo é um ponto alto desse registro dirigido por Alan Hicks e pela atriz Rashida Jones, filha do músico. São flagrantes de todas as transições de uma carreira multipremiada e referencial para a indústria cultural.
No último dia 3 de novembro, Quincy faleceu em sua casa, em Los Angeles, cercado por sua família. A data marca o repouso de um homem que se apresentava como um sobrevivente, um alguém comprometido a superar-se, custe o que custar. Um artista que enfrentou muitas adversidades, como todo mundo, mas que sempre ouviu os que estavam à sua volta e passou adiante os conselhos mais preciosos. Em especial, o do amigo pianista Count Basie. Q aprendeu em vida a lidar com os vales, certo que as colinas sabem se cuidar.