
Por Guilherme Fainberg – Médico, psiquiatra e psicanalista de formação winnicottiana.
A psicanálise, enquanto modalidade de cuidado e compreensão do funcionamento psíquico, tem na escuta uma de suas ferramentas fundamentais. Não se limita a ouvir palavras, mas envolve uma postura de atenção atenta, diálogo silencioso e interpretação no momento adequado. É na oportunidade fornecida pela linguagem que o analisando se revela, muitas vezes, através daquilo que se não diz, das palavras não pronunciadas, dos silêncios carregados de significado.
Nesse processo, o analista não deve se manter neutro, uma vez que formalidade, neutralidade, interpretação massiva estão mais a favor da doença do que do doente ou adoecido. As associações de ideias, pensamentos e emoções são bem-vindas e não substituem a nova díade reparadora.
A liberdade do analista é essencial porque a fala, na maioria das vezes, dá conta de camadas profundas do inconsciente, que muitas vezes permanecem escondidas sob a superfície da consciência, mas o ato aponta, para algo que está há muito tempo calado e retorna, desde fora, massivamente.
Assim, o psicanalista, como um espelho, reflete manifestações e facilita que o analisando tome consciência sobre suas fantasias, desejos e conflitos internos.
Outra questão importante é reconhecer que a escuta na psicanálise deve ser livre de julgamentos e previsões.
O analista deve evitar interpretar de imediato e precisa dar espaço para que o analisando construa seu percurso de autoconhecimento. Essa atitude promove uma espécie de respiro para o sujeito, que se sente acolhido e compreendido. Isso fortalece o vínculo analítico. Trata-se de uma postura ética do cuidado, um encontro humano de grande profundidade. É no ouvir ,em suas implicações e vicissitudes que se dá a possibilidade de transformação interna e percebe-se o indivíduo não apenas como um sujeito de desejos e conflitos, mas como um ser complexo, em constante construção.
Donald Winnicott, renomado pediatra e psicanalista britânico, destacou-se por suas contribuições ao entendimento do desenvolvimento emocional e da formação da personalidade.
Sua teoria centra-se na importância do ambiente facilitador e na relação mãe-bebê (holding) como elementos essenciais para um desenvolvimento saudável.
Durante a segunda grande guerra, teve um programa na rádio Londrina, chamado “A mãe e seu bebê”. Ali, passava, de maneira clara e suficientemente boa, conceitos e ideias inovadoras e simples de serem aplicadas na relação mãe e seu filho.
Trabalhou na Tavistock Clinic , com órfãos de guerra e percebeu, na prática, os efeitos devastadores da ausência de uma mãe para seu bebê e de um “holding”(lidar, abraçar, apertar, pôr no colo, transmitir afeto e segurança ) adequado, nos primeiros anos de desenvolvimento.
As consequências seriam vistas em quantidade e qualidade , desde condutas contra a sociedade, a casos fronteiriços e de auto investimento libidinal (psicoses).
Todos os grandes teóricos da atualidade partiram, de algum modo, ou tiveram um encontro com as ideias de Winnicott. As modernas teorias de adição, por exemplo desenvolvidas por Mate e Zusman partem da ideia de falhas no desenvolvimento, traumas severos em idade precoce, e a droga como um sintoma (não, uma causa) de objetos (pai e mãe) parcialmente introjetados em tenra idade.
Zusman, por exemplo, vai além, fala de eixos de dependência e adição, onde todos nós ( e não só o adoecido, mudando uma perspectiva moralista dualista maniqueista histórica) podemos, a qualquer tempo, entrar ou sair, mas os propensos pelo trauma o farão com maior dificuldade.
Ao tratarmos de explorar as manifestações de delinquência infantojuvenil e conduta antissocial, devemos lembrar o que Winnicott oferece, como possível compreensão. Vai além, uma vez mais, de fatores morais ou biológicos, e privilegia o impacto do ambiente inicial e das condições de vulnerabilidade emocional.
A deprivação na visão do clínico, pode ser compreendida como uma resistência do indivíduo ao seu desenvolvimento emocional pleno, muitas vezes resultante de lacunas no ambiente primário, onde o bebê não recebeu a estabilidade emocional ou não teve o suporte necessário para formar uma noção de “objeto bom”.
Quando o ambiente falha em oferecer um “holding” eficaz — ou seja, um cuidado capaz de garantir segurança e reconhecimento ao bebê —, esse sujeito pode desenvolver uma personalidade fragilizada e uma tendência à conduta antissocial. Nessa perspectiva, o comportamento delinquente ou desviante não é visto simplesmente como uma escolha consciente, mas como uma consequência de uma formação do self, mal respondida às necessidades emocionais na infância.
Winnicott enfatiza a importância do ambiente(o primeiro e “bebê- mãe”) como facilitador do desenvolvimento de uma verdadeira autoestima e de uma capacidade de tolerância à frustração. Quando esse ambiente é deficitário, o indivíduo pode construir uma falsa autoestima baseada em defesas, que mascaram uma profunda sensação de vazio e insegurança. Essa sensação de vazio, por sua vez, pode levar ao indivíduo a buscar respostas na violência, no desrespeito às normas sociais ou na manipulação, que funcionam como formas de autoafirmação momentânea. Assim, a conduta antissocial não aparece como uma mera transgressão, mas como uma reação a uma ausência de vínculo emocional que sustente o desenvolvimento de uma identidade sólida.
Outro ponto crucial na teoria de Winnicott é a noção de “mãe suficientemente boa”, termo que descreve o cuidado que, ao longo do tempo, oferece ao bebê uma base segura para explorar o mundo. Quando essa condição não é atendida, o indivíduo pode desenvolver uma “persona” alterada, voltada a esconder sua fragilidade interior através de comportamentos de risco e desrespeito às leis. Essa máscara, que protege o ego fragilizado, muitas vezes é confundida com a deprivação, mas, na verdade, é uma tentativa de sobrevivência diante de uma experiência de abandono emocional.
Winnicott também aponta para o papel do ambiente na possibilidade de recuperação de indivíduos com tendências antissociais. A criação de espaços seguros, com cuidados constantes e uma escuta empática, pode favorecer o desenvolvimento de uma verdadeira autoestima promovendo a assimilação de valores sociais e a construção de uma personalidade mais integrada.
Em suma, a abordagem de Winnicott nos convida a compreender a deprivação e a conduta antissocial como fenômenos complexos, ligados às circunstâncias de desenvolvimento emocional e às falhas do ambiente primordial. A perspectiva do psicanalista e pediatra reforça a importância do cuidado, do vínculo e do respeito às necessidades emocionais na prevenção e na intervenção dessas manifestações, promovendo um caminho para a reintegração do sujeito na vida social de forma mais saudável e integrada.