
    Entre o vazio e a substância, a busca impossível por um vínculo que cure a dor de existir.
    Na Roma antiga, o termo adicto designava o devedor que, após a derrota, tornava-se escravo do vencedor.
    Séculos depois, a metáfora ressoa. O dependente é prisioneiro de um vínculo invisível, uma tentativa desesperada de aliviar a dor pela via do entorpecimento. Antes da primeira dose, há uma solidão, um vazio que não grita, mas lateja. O médico e pensador húngaro-canadense Gabor Maté propõe compreender o vício não como falha moral, mas como resposta ao sofrimento humano. Toda dependência nasce de uma ferida relacional, de um trauma afetivo precoce que o sujeito tenta anestesiar.      Em In the Realm of Hungry Ghosts, Maté evoca os “fantasmas famintos” da mitologia budista , seres que consomem incessantemente, mas jamais se satisfazem. A imagem descreve o circuito aditivo: Uma busca incessante pela conexão perdida, a tentativa de suturar, com o químico, o que foi rompido entre o eu e o mundo.         Sob a lente psicanalítica, o vício é menos uma patologia moral e mais uma ruptura no vínculo afetivo. O dependente busca, na droga, uma presença que o ambiente falhou em oferecer , ideia que dialoga intimamente com as teorias de Donald Winnicott.         Para ele, o desenvolvimento emocional exige um ambiente suficientemente bom, capaz de conter, sustentar e refletir o bebê. Quando esse ambiente falha, surge o falso self, uma defesa que garante a sobrevivência, mas ao custo da autenticidade. O adicto, nesse sentido, é um sobrevivente winnicottiano. Pela substância, tenta restaurar fragmentos da experiência de continuidade de ser.         A droga assume o papel de objeto transicional perverso, oferecendo a ilusão de aconchego sem a alteridade do vínculo humano. É uma ponte para o nada, construída com o desespero de quem busca sentir-se vivo. A toxicomania é também um pedido: “me contenha”. A substância substitui a função materna, embala o desamparo e devolve contorno ao self esgarçado.
  A droga, mais do que fuga, é um apelo por presença. André Green, psicanalista egípcio, aprofunda essa compreensão ao descrever o complexo da mãe morta: Quando o objeto primário se retrai afetivamente, o bebê é deixado diante de uma presença sem vida.              Forma-se um núcleo de negatividade, uma área psíquica congelada que pode reaparecer como depressão, acting out ou adição. O tóxico tenta reanimar o que está morto dentro do sujeito. Por instantes, devolve uma pulsação, uma sensação de corpo habitado. Mas o prazer é breve e autodestrutivo: Toca-se a vida apenas ao preço de flertar com a morte.
   A adição torna-se, assim, um esforço paradoxal de reinvestimento libidinal ,um modo de amar o mundo pela via do autodesgaste. Para Green, o que Maté chama de trauma relacional é também negatividade intrapsíquica: Onde o amor não circula, o vazio domina. A droga surge como mediadora do impossível, o elixir que promete vida onde a vida secou.
   Em Teatros do Corpo, Joyce McDougall lê o adicto como alguém que dramatiza, no corpo, o que não pôde ser dito pela palavra. Quando o simbólico falha, o corpo fala. O sintoma aditivo é uma encenação somática do sofrimento psíquico. Mais do que defesa contra o desprazer, o ato aditivo é também uma busca pelo prazer primário, uma tentativa de retorno ao gozo indiferenciado das primeiras experiências de fusão. O corpo torna-se palco do drama. Nele se repete o desejo impossível de reencontrar a sensação de estar vivo, ainda que à custa da própria destruição. Nas palavras de Eduardo Kalina, psiquiatra argentino, “o adicto tenta se curar com aquilo que o mata”. A frase condensa a dialética da dependência.  A busca pela vida na borda da morte. Maté acrescenta: “A questão não é por que a pessoa usa, mas por que sente tanta dor.”
   A adição é, assim, uma negação da finitude, um protesto contra o desamparo originário. Entre o vazio e a substância, o sujeito busca, ainda que em vão, o reencontro com uma experiência primária de ligação. Mais do que um fenômeno médico ou moral, a clínica das dependências é um território psicanalítico do humano onde o sofrimento pede tradução e a empatia torna-se o primeiro gesto de cura.






