
Quando o assunto é cinema brasileiro, é quase impossível um estrangeiro não citar Cidade de Deus ao externar seu gosto pessoal. Esse clássico nacional segue quase imbatível entre os títulos mencionados como um dos melhores de todos os tempos, em listas mundo afora. A adaptação da história do livro de Paulo Lins, sobre a rotina em uma das favelas mais violentas da cidade do Rio de Janeiro, tomou as telas em 2002 formando filas imensas em salas de todo o país. Trata-se de um longa fundamental e de destaque internacional em qualquer conversa a respeito de filmes de grande impacto. É comum a admissão de quem o cita como tal, a quantidade de vezes em que ele foi revisto pelos mesmos. E destacar esse sucesso além do mercado doméstico é lançar luz a um momento muito significativo para cinematografia brasileira. Muito além da repercussão lá fora, dos prêmios e festivais, a revelação de talentos e a descoberta de uma profissão para alguns, fazem deste campeão de bilheterias de Fernando Meirelles e Kátia Lund, um objeto de estudo mais fascinante ainda. No elenco dessa produção, personagens icônicos foram vividos por tipos que debutaram neste trabalho e que seguiram carreiras muito bem sucedidas. Outros tantos, não foram mais vistos nas telas, como se imaginava, mas se imortalizaram graças a esse sucesso que retorna agora, na série Cidade de Deus: A Luta Não Para, disponível no serviço de streaming Max.
No ano de 2004, duas décadas depois dos acontecimentos da história original, a rotina do bairro da zona oeste da capital fluminense segue repleta de muita opressão e violência. Novos nomes ditam as regras dentro e fora da favela sustentando um jogo de forças em que a manutenção do status quo é de interesse de grupos supostamente antagônicos. Se depender dos que mandam nas bocas de fumo até os gabinetes do executivo e do legislativo, a guerra na comunidade deve perdurar. Buscapé (Alexandre Rodrigues), ou como prefere ser chamado agora, Wilson, segue contando em off o que se passou desde que se tornou um fotógrafo profissional, responsável por inúmeras capas de jornais. Junto dele, personagens que passaram em segundo plano, pela história contada antes, agora assumem um papel de protagonismo, ajudando a revelar como a vida seguiu desde então e anunciando o agravamento de uma realidade comum em tantas outras favelas. A milícia, tão presente na rotina carioca, se apresenta na série em avançado estágio de evolução, destacando representantes da polícia que já usavam das velhas práticas, já bem conhecidas nos dias de hoje. Revelados, desde o filme, esses tipos parasitários, fardados, se exibem agora, de terno e gravata, condecorados e em altos cargos no executivo.
Está no gesto de usar a voz de quem já havia contado, mesmo que uma pequena fração de sua história, no filme, o grande trunfo dos seis episódios dessa primeira temporada. Cinthia, Barbantinho, Berenice, Bradock mostram mais do que como suas vidas seguiram depois do fim da era de Zé Pequeno (Leandro Firmino). São a renovação e continuidade com papéis já muito bem enraizados na trama. Tê-los com tamanho destaque agora, faz justiça ao talento de todos que não tiveram mais espaço no longa, mas que definitivamente, não passaram despercebidos. Seus arcos colidem com os de novos personagens que dentro e fora da favela influenciam diretamente em suas rotinas. Entre as novidades, está Jerusa (Andréia Horta), uma mulher ardilosa e de interesses mais sinistros do que aparenta.
Com direção geral de Aly Muritiba, Cidade de Deus: A Luta Não Para é uma sequência empolgante e impecável de um clássico que segue muito atual. Mesmo com o peso do sucesso do filme original em suas costas, a série entrega uma produção conclusiva e ao mesmo tempo aberta ao futuro. Aponta o que está por vir sempre atenta a não atropelar o que ainda tem para contar na época em que está. Anuncia, como por exemplo, a expansão territorial das milícias. Mas como diz o narrador Wilson, vulgo Buscapé, a cada episódio, essa, é uma outra história.