
Para inúmeras famílias o ano de 1988 não acabou no dia 31 de dezembro. O som dos fogos não se fez trilha no que era para ser uma noite de celebração e essa data segue até hoje como o réveillon que marcou radicalmente suas vidas. O naufrágio do Bateau Mouche IV traumatizou o país, revelando mais um capítulo escabroso da ganância de tipos que vivem a paz de espírito que a certeza da impunidade provém. A arrogância de empresários apontados como os donos da noite do Rio de Janeiro, no final daquela década, já era imensa. Muito maior do que a capacidade real de acomodação na embarcação que adernou na Baía de Guanabara, por volta de 23h50, a caminho da praia de Copacabana. As condições impróprias do mar naquela noite, junto de inúmeras decisões equivocadas, estão entre as diversas causas que preenchem o livro da história dessa tragédia que matou 55 pessoas e que desenhou uma cicatriz imensa na memória da sociedade.
Produzida e dirigida por Tatiana Issa e Guto Barra, os mesmos de Pacto Brutal – O Assassinato de Daniella Perez, a minissérie Bateau Mouche: O Naufrágio da Justiça (disponível na plataforma de streaming Max) se dedica a revisitar e partilhar a linha do tempo de uma desgraça que poderia ter sido evitada. Repleta de depoimentos de muito impacto de sobreviventes e familiares dos que perderam suas vidas naquela noite, a sequência de três episódios distribui os fatos desse caso, do momento do embarque até os dias de hoje. Como um barco para até 62 ocupantes foi descaracterizado através de algumas reformas irregulares e recebeu para aquele passeio mais de 140. As falas consternadas dos que viram de perto todo o terror são complementadas com uma reconstituição de alto nível. Contribuindo assim, para uma assimilação visual muito melhor, da escala desse desastre. Junto de uma pesquisa impecável, estão também os depoimentos de jornalistas, membros da promotoria e das defesas das partes, com exceção da Marinha, que convidada, optou por não participar.
Do início ao fim Bateau Mouche… expõe de forma severa os inúmeros problemas flagrantes da embarcação, antes mesmo dela deixar o cais do extinto restaurante Sol e Mar, no bairro de Botafogo, na zona sul carioca. A soberba dos empresários que venderam um passeio dito exclusivíssimo e que viram os anos passarem com seus negócios prosperando, enquanto as famílias das vítimas seguem aguardando por indenizações. A morosidade do processo no tribunal e como os reais autores do crime escaparam da justiça brasileira, contribuíram para afundar o país, ainda mais, no oceano da impunidade.
Nas falas dos que ainda vivem nas lembranças deste trauma e de quem reportou os dias que o sucedeu, um entendimento frustrante perdura mais de três décadas depois. O Brasil de hoje ainda mostra que as relações entre o estado e o setor privado, seguem permeadas pela corrupção. E no caso dos serviços, a primeira falha, é sempre de quem cabe fiscalizar.