

Uma leitura crítica do texto de Emir Sader*
O sociólogo Emir Sader, ao revisitar as origens da crítica marxista na tradição hegeliana, propõe uma leitura de A ideologia alemã ,obra na qual Marx e Engels rompem com os pressupostos idealistas da filosofia alemã e afirmam o papel central da produção material na constituição da vida humana. Em seu texto de apresentação da obra de Marx e Engels , o trabalho aparece como o motor da história e como o elo fundamental entre ser humano e mundo.
A alienação, nesse modelo, seria então, uma anomalia histórica. Um desvio superável, cuja raiz está na perda da consciência sobre esse elo vital entre o sujeito e sua atividade produtiva. A força do texto de Sader está justamente em sua fidelidade a uma tradição na literatura clássica do marxismo: a de que o homem se humaniza ao transformar a natureza; que o trabalho é a atividade por excelência da nossa espécie; e que, ao se reapropriar de seu próprio fazer, o ser humano pode superar a alienação e retomar o controle da história.
No entanto, é exatamente aí que reside o ponto mais problemático da argumentação
É preciso perguntar: O que entendemos por “trabalho”? Não se trata de negar que o ser humano transforma a natureza e cria cultura. A questão é mais radical: Será que o trabalho, tal como estruturado no mundo moderno ,isto é , como atividade abstrata, medida em tempo, subordinada à produção de mercadorias, pode ser considerado uma constante histórica ou antropológica?
Ao afirmar o trabalho como essência positiva do ser humano, Sader repete uma concepção clássica do marxismo, herdada do século XIX: A de que o trabalho é universal, transhistórico e, no fundo, libertador, bastando que seja livre, consciente e socialmente reapropriado.
No entanto, essa concepção ignora uma inflexão crítica importante que surge nas últimas décadas: a ideia de que o trabalho moderno é, ele próprio, uma forma social fetichizada e historicamente situada, vinculada à lógica da mercadoria, do valor, do tempo abstrato e da separação entre produção e vida.
Em outras palavras, não se trata apenas de um “trabalho alienado” que pode ser redimido. Trata-se de uma forma de trabalho que, por sua própria estrutura, produz alienação, esvaziamento, fragmentação e crise , mesmo quando exercida de forma autônoma ou aparentemente emancipada. A alienação não é erro corrigível.
Na leitura marxista clássica, como a de Sader, a alienação é vista como algo que “acontece” ao trabalho. Como se o trabalho fosse bom por natureza e se tornasse alienado apenas por interferências externas : Como a propriedade privada ou a exploração capitalista. Assim, o horizonte da crítica seria o de “retomar” o trabalho, resgatar sua essência e restabelecer a unidade entre sujeito e objeto, entre fazer e saber.
Mas creio que a questão deva ser invertida. E, se a alienação for constitutiva da forma trabalho tal como ela se realiza na modernidade? E se, em vez de ser um desvio a ser corrigido, a alienação for o próprio modo de funcionamento da sociedade regida pela produção de mercadorias e pelo imperativo do valor? Se for assim, o desafio não está em retomar o trabalho , mas em superar sua forma histórica atual. Não se trata de voltar a produzir com as mãos ou de reconquistar as fábricas, mas de questionar a centralidade do trabalho como forma de organização da vida, como mediação entre os humanos e como medida de valor social.
Produzir ou viver? O problema central do texto de Sader, e de toda uma tradição que ele representa é manter intactas categorias como “produção”, “trabalho”, “sujeito”, “história”, “consciência” e “progresso”, como se fossem universais ou redimíveis. No entanto, vivemos hoje justamente o momento histórico que exige a desconstrução crítica dessas formas herdadas da modernidade capitalista.
Vivemos em um tempo de esgotamento. O planeta não suporta mais a lógica produtivista. A automatização torna milhões de trabalhadores supérfluos. O tempo da vida é devorado pelo tempo abstrato da produtividade. As promessas de emancipação se dissolvem sob o peso da exaustão material, psíquica e ecológica.
Diante disso, insistir na reabilitação do trabalho como “essência humana” pode ser mais um gesto nostálgico do que um projeto de futuro. A libertação não virá do trabalho recuperado, mas da reorganização radical da vida para além da lógica da produção, da mercadoria e do valor.
Hoje, mais do que nunca, é preciso ir além. Não para negar o legado de Marx, mas para levá-lo às últimas consequências. E isso significa justamente em abandonar o culto ao trabalho e imaginar novas formas de vida em comum: Formas que não se sustentem mais na exploração do tempo, da natureza e da subjetividade, mas na reinvenção da existência fora do paradigma da produção.ou seja : uma outra forma de se viver, longe das amarras da sociedade da mercadoria.
* O texto de Emir Sader está exposto na abertura da Edição da Boitempo da obra de Karl Marx e Friedriche Engels, A Ideologia Alemã.