
JP – Você é filho de imigrantes libaneses. Comente sobre essa filiação libanesa. Costumes, tradições, entre outras, que você herdou.
Uma pergunta muito ampla né? Era legal você assistir minha peça. Tá tudo lá. Os dois lados. Os imigrantes sempre se unem e se protegem de uma sociedade onde eles chegaram de penetra. Me lembro de frequentar algumas casas de outras famílias libanesas. Havia um quê de pitoresco naquele mundo à parte. O idioma, as comidas, a maneira de se vestir e o comportamento com um quê de proteção e autoridade. Meu pai foi caixeiro viajante durante muitos anos quando chegou no Brasil e seu casamento com minha mãe foi arrumado, pois meu avô materno queria deixar uma filha no Brasil e meu pai precisava de uma família. Por aí você já percebe a loucura, né? Casamento por conveniência e eles tiveram que encarar essa, forjar vínculos pra poder desenvolver a família, essa instituição da maior importância na cultura árabe. Minha maior herança foi poder ter a oportunidade de refletir sobre tudo o que assimilei e através do teatro e da escrita, transformar em fantasia e poesia os conteúdos, episódios e personagens que marcaram minha história de vida.
JP – Qual é a sua formação? Quando se deu o seu interesse pelas artes cênicas?
Na minha cidade não tinha teatro. Minha formação artística se deu através da música que eu ouvia no rádio e via na TV. Beatles e Jovem Guarda. Eu queria ser um jovem magro e cabeludo e era o oposto. Eu era gordinho e meu pai e depois a escola, não deixavam meu cabelo crescer. Eu colecionava figurinhas dos meus ídolos e comprava revistas com as letras das músicas em inglês e cantava do meu jeito tocando um violão de brinquedo e batucando latas de leite em pó. Havia também as matinês de cinema pelo qual logo descobri minha paixão. Eu desenhava muito, criava histórias e trilhas sonoras. Então foi a música, o cinema e a televisão que me formaram. Eu queria ser ator de cinema e cantor. Eu escrevia versos e musicava. Quando fiz o vestibular para Comunicação eu não tinha idéia do que era a opção cinema que havia escolhido. Estudando para o vestibular descobri um cursinho de Teatro que acontecia aos domingos, lá fui chamado pra fazer uma peça. Ali tive meu primeiro contato com o palco. Ainda cursei um ano de Comunicação na UFF, tranquei e fiz outro vestibular para escola de Teatro da Fefierj e foi assim que comecei.
JP – Quais foram as suas principais referências teóricas e práticas na arte de representar? No âmbito nacional, qual é o seu autor de teatro favorito? Justifique.
Eu descobri Artaud meio por acaso através do único livro dele que tinha na biblioteca da escola de Teatro. Achei fascinante. Embora tivesse lido e praticado Stanislavsky na escola, aquelas visões e delírios artaudianos me capturaram. Eu sentia que aquele teatro fazia sentido para mim e continuei tocando minha vida, participando de alguns grupos. Assisti anos depois o Rubens Correa fazendo ARTAUD! e também O PERCEVEJO de Maiakovski com direção do Luiz Antonio Martinez Correa e UBU do grupo Ornitorrinco, essas duas últimas de São Paulo, que misturavam teatro, circo, música e bufonaria. Pronto! Aquele era o teatro que eu queria fazer! Não sabia se conseguiria. Anos depois, voltei a universidade para fazer o mestrado e aí estudei mais Artaud e Rubens Correa que foram o tema de minha dissertação e de minha prática posterior.
Sempre preferi as adaptações de romances e contos para o Teatro do que propriamente a literatura dramática. Mas acho que fico com os que marcaram minha época de estudante de teatro como Plínio Marcos e Gianfrancesco Guarnieri pelo teor político e pela força dramatúrgica de sua obra.
JP – Além de ator, você atua também como dublador. O que é ser um dublador? Há uma técnica específica para a dublagem? Quais foram as suas principais atuações na área da dublagem?
Praticamente não dublo mais. Busquei a dublagem como forma de me manter, pois como ator não conseguia sobreviver. Não vim de família rica e saí cedo da casa de meus pais e tinha contas para pagar. Isso já com 34 anos. Creio que a dublagem surgiu como forma de popularizar o audiovisual, principalmente para pessoas de idade avançada e crianças, que tem dificuldade com as legendas e deu certo em quase todo o mundo. Pois é, a dublagem me acolheu, assinou minha carteira e me deu um mínimo de tranquilidade financeira para poder tocar meus projetos pessoais e disso nunca vou esquecer mas sempre continuei atuando no Teatro e ocasionalmente na televisão enquanto dublava. A dublagem é uma indústria a parte como a televisão também é. São meios diferentes com pessoas com propostas diferentes de vida e com técnicas absolutamente distintas. Peguei uma fase áurea da Herbert Richers e fiquei nela até o fim. Quando entrei, estavam precisando de nova vozes e atores com experiência. Me adaptei bem às demandas e ali fiz alguns amigos. Como profissão, a dublagem é muito absorvente pois exige uma disponibilidade integral se de fato você quiser se tornar um profissional de alto nível. Exige uma técnica apurada, uma dicção perfeita, reflexo e algum ouvido musical. A galera antiga da dublagem era muito legal. Vários já se foram e me deram grandes oportunidades em filmes, desenhos e novelas. Vinham em sua maioria, do rádio e alguns tiveram alguma experiência no Teatro. Sempre tive claro que não ficaria só com a dublagem e sempre foi muito cansativo conciliar tudo. Hoje em dia as coisas mudaram muito. A dublagem passou a ser vista pelos jovens atores como uma opção rentosa e com glamour, um fim em si. Muitos fazem um cursinho de um ano, pegam o DRT e correm para um estúdio para tentar fazer um teste pois sabem que teatro não dá dinheiro. Entendo mas não assino embaixo. Um ator se forma no palco ao longo da vida e isso é quase um sacerdócio. Não cobro isso de ninguém mas se eu pensasse só em dinheiro não teria feito essa opção de vida, embora saiba que é uma escolha árdua.
JP – No momento você está em cartaz com a peça de teatro O Cachorro que Se Recusou a Morrer. Como surgiu o projeto? Qual é o tema central da peça?
È uma peça que parte de uma proposta autobiográfica onde coloco em cena, os três personagens principais de minha família: meu pai, minha mãe e minha irmã mais velha, os quais eu chamo de minha família espiritual. Uso áudios e vídeos antigos. A partir disso, a trama propõe uma discussão sobre guerras, êxodo, choques culturais e saúde mental. O projeto surgiu como o coroamento de meu trabalho autoral que se deu com a trilogia que intitulei de Teatro, Mito e Genealogia. Pode-se dizer que o tema central é a constatação da perda de identidade de um indivíduo, que tem que se adaptar a uma realidade estranha para poder sobreviver. Mas confesso que não gosto e não sei ficar definindo qual é o tema principal. Meu trabalho autoral em cena se propõe aberto às leituras possíveis em diferentes camadas de profundidade. Quem vai definir o que mais o tocou ou não, é o espectador.
JP – Você além de atuar nos palcos e na televisão, também se preocupa com a formação dos atores? Leciona em cursos e faculdades de teatro?
Comecei a dar aulas de teatro logo depois que saí da escola, como forma de aprimorar o que havia aprendido e naturalmente ganhar algum dinheiro com o que sabia fazer. Eu já havia sido professor de inglês. Dei muito cursos livres em escolas e espaços culturais. Fiz licenciatura pra poder entrar para o funcionalismo público. Entrei. Como professor do município fiquei menos de um ano. Pedi demissão, não aguentei. Descobri que gosto de ensinar para quem quer aprender. Fiz o mestrado. Trabalhei na faculdade da CAL por seis anos. A partir de meu primeiro solo em 2001, desenvolvi um método de trabalho muito voltado para o trabalho psicofísico, privilegiando as bases do teatro oriental a partir das ideias de Artaud. Viajei com esse trabalho, apresentando e dando oficinas. Faço isso até hoje mas não me considero um professor propriamente e sim um facilitador.
JP – Você é o fundador da companhia teatral Cambaleei, mas não caí…. Quando foi criada? Quais são os seus principais textos? Qual é a principal referência da Companhia?
Quando fiz meu primeiro solo em 2001, que foi um divisor de águas na minha vida, conheci alguns alunos-atores na Escola Martins Penna a partir de uma oficina que ministrei e decidimos formar um grupo que durou algum tempo. Batizei com esse nome que é uma frase do Artaud, que pra mim define perfeitamente a vida de um artista no Brasil. Remontamos Além da Lenda do Minotauro, um texto meu que já havia sido encenado e tive a oportunidade de aprofundar seus conteúdos, oportunidade que não havia tido quando o texto foi montado em um esquema mais comercial. Hoje o grupo não existe mais, mas continuei usando o nome da companhia para todos os meus trabalhos autorais como forma de manter vivo e legitimar o espirito artaudiano que marca todo esse percurso. Assim o repertório é basicamente de minha autoria: Para Acabar de Vez com o Julgamento de Artaud, Édipo e seus Duplos, O cão que Sonhava Lobos, Cícero – A anarquia de um Corpo Santo e o trabalho atual. A principal referência da companhia foi e continua sendo as visões artaudianas que tentei encarnar em cena, em diferentes desdobramentos de pesquisas que privilegiaram a experimentação a partir principalmente do teatro oriental e seu treinamento.
JP – Na televisão, como está sendo encenar o advogado Silvério na novela Terra e Paixão? Quais outras produções na TV Globo que você participou e gostaria de recordar?
Como eu já disse acima, a televisão é uma indústria , onde rapidez e eficiência são fundamentais. Essa é a terceira novela que faço na TV GLOBO mas fiz uma infinidade de participações nessa e em outras emissoras de modo que já tenho alguma intimidade com o veículo. Dessa vez decidi trabalhar uma voz e um sotaque que denotasse que o personagem é um advogado que estudou fora e adquiriu uma forma de falar típica da oratória tradicional dos advogados. A novela é uma obra aberta, você nunca sabe o que está por vir. Surgiu uma faceta de ex-alcoolatra do personagem que teve uma boa receptividade do público. As outras novelas que fiz foram Fina Estampa, Gênesis, e Pacto de Sangue. Já contracenei com praticamente todos os medalhões da TV, quase sempre em participações maiores ou menores. Um grande desafio de adaptabilidade e concentração que só a disciplina e a profundidade exigidas pelo teatro me propiciaram sustentar.
JP – Você atua no teatro, cinema e televisão. A arte de interpretar é a mesma nos três espaços ou não? Comente.
Fiz pouco cinema mas fiz muitos curtas que também foram um grande exercício. Fiz participações em longas nacionais e estrangeiros. Cada veículo tem suas especificidades que são muitas. O ator tem que ter a noção de seu tamanho em cada um deles. Ter noção de sua voz, de seu gesto, contenção, expressão. Creio que o mais importante para um ator que chega em um set, ou em um cenário externo é olhar em torno e ver onde está. Qual será seu campo de atuação, onde a câmera estará e, acima de tudo, interagir com a equipe, o diretor e o elenco. Não se fechar em suas verdades e métodos. Saber usar o que tem, em prol de um projeto comum, estando aberto ao novo é a benção do ator. Todo diretor é diferente, cada obra também. Doar-se sem se perder no outro é o grande desafio do ator em qualquer veículo.
JP – Quais são os seus projetos futuros? E, para finalizar, deixe uma mensagem para os jovens atores e atrizes que estão em início de carreira.
Não costumo fazer muitos planos para não me frustrar. Pretendo viajar com esse solo em uma medida possível e ter mais oportunidades no audiovisual, cada vez mais importante para o reconhecimento da profissão e do valor do ator. Existe o sonho de refazer meu repertório de solos, tipo um por semana, em uma temporada de um mês. Isso depende de muita coisa que não passam só pelo meu desejo. E naturalmente estou aberto a convites.
A mensagem que deixo para os jovens é: vão me assistir. È no palco que um ator se expressa. Vão conferir se o que falei aqui está lá. Acho que já falei algumas coisas na pergunta anterior que respondem a essa. Acrescentaria ainda que o mais importante é não perder-se de si. Não tenha medo de errar mas se errar assuma. Prestar atenção para ver se o caminho que está seguindo é consonante com as aspirações de seu coração. O ator que se desvincula de sua essência está morto. E cuidado com as drogas. Todas elas em maior ou menor grau são perniciosas para o corpo, a voz e a memória do ator, seus instrumentos básicos.