
Talvez o último escritor no mundo a exalar o fascínio, para seus admiradores, de um pop star elegante, em sua morte, Mario Vargas Llosa é reverenciado como um dos principais renovadores da cultura hispânica mundo afora. Seu conservadorismo político, entretanto, obscurece o imenso talento de narrador entre os observadores da figura pública. Um conservadorismo também refletido em seus personagens masculinos, de condutas sexualmente reprováveis na atualidade, mas características de um continente machista por excelência. O legado literário de Llosa, no entanto, contradiz seu comportamento pessoal.
O peruano, o mais jovem entre os quatro destaques do Boom Latino-Americano – o mexicano Carlos Fuentes, o argentino Julio Cortázar e o colombiano Gabriel Garcia Márquez –, além de denunciar o estado de a perpétua violência social e política das repúblicas da América Latina, apontou o crescimento da influência norte-americana na cultura consumista que permeou o fim do século XX e início do XXI. A crítica ao Estado totalitarista é constante em toda a sua obra ficcional, com romances históricos analisando as ditaduras da América Latina e apresentando a disparidade dos meios rurais e urbanos em várias nações, notadamente no Peru.
As histórias mais empolgantes surgem nos anos 1960 e 1970, com “Os chefes”, “A cidade e os cachorros”, “Conversa no Catedral”, “Pantaleão e as visitadoras”. Escândalos já o acompanhavam então: “A cidade e os cachorros”, que lhe traria fama internacional, teve exemplares queimados pelos militares no colégio Leoncio Prado (onde estudou por quatro anos), o cenário da narrativa sobre o sistema opressor da formação militarista. Pouco depois de sair da escola, desagradou a família por ter se casado, aos 19 anos com uma tia por afinidade, retratada no satírico “Tia Júlia e o escrevinhador”.
Na década de 1980, depois de romper com a esquerda cubana por discordar do tratamento aos presos políticos e do fim da amizade com Gabriel Garcia Márquez por motivos pessoais, demonstra sua força narrativa ao recontar a saga brasileira de Canudos no impressionante “A guerra do fim do mundo”. Em 1990, derrotado em sua candidatura à presidência do Peru por uma coligação de direita, deu aulas em universidades de prestígio até receber o Nobel de Literatura em 2010, depois de já ter sido agraciado com outras premiações de prestígio, entre elas o Cervantes. Depois do erotismo solto de “Os cadernos de Don Rigoberto” e “O elogio da madrasta”, lançou o divertido “Aventuras da menina má”. A ironia compensa a crueza da realidade descrita na orquestração de golpes de Estado em países latino-americanos determinados por interesses econômicos dos Estados Unidos. Em “Tempos ásperos”, abordava especificamente a queda do governo da Guatemala nos anos 1950, quando a reforma agrária estatal entrou em choque com as intenções da poderosa United Fruit Company, que monopolizava o plantio e comércio de bananas. Em “A festa do Bode”, um de seus romances históricos mais elogiados, trata da ditadura da República Dominicana. Já em “Cinco Esquinas, a cidade de Lima surge em cada capítulo como um reflexo das transformações do Peru sob a ditadura de Alberto Fujimori, que fortalece economicamente a burguesia alienada dos desmandos do governo, com a imprensa sensacionalista livre para publicar atrocidades e destruir reputações.
Em 2023, com o mais belo título de sua obra, o romance “Dedico a você meu silêncio”, volta novamente aos anos 1990, mostrando um especialista em música criolla percorrendo o Peru. A pesquisa do protagonista enfatiza a importância da arte como fator de integração social no país, e a formação de Lima, cidade que adotou como sua, tendo vivido parte da adolescência no bairro de Miraflores. A imensa habilidade em mesclar fatos históricos ao enredo ainda existia, embora o vigor do texto fosse menor do que os trabalhos de outras épocas. Sem dar motivos, no posfácio do livro, Vargas Llosa anunciava que estava pronto a dedicar seu silêncio aos leitores. A todos, deixou histórias instigantes de fé na humanidade.