
JP – Olá Sandra! Como você aproxima a psicologia das artes cênicas?
Para mim, a Psicologia e as Artes Cênicas dialogam como duas faces de uma mesma busca: a de tornar visível aquilo que pulsa no invisível: os desejos, os medos, os sonhos, os mitos, e convidar o espectador a entrar numa zona de imaginação e presença. No meu trabalho, uso a formação em Psicologia (de orientação analítica / junguiana) para sensibilizar o processo cênico: o ator, a criança, o público não são apenas intérpretes ou receptores, mas sujeitos simbólicos, que se relacionam com imagens, projeções, memória, corpo e sonho. As artes (teatro, performance, literatura, animação) nos permitem construir espaços onde o inconsciente emerge de modo vivo: por meio de corpo, imagem, som, relação. Quando criamos para a primeira infância, por exemplo, ou para públicos imersos na poesia visual, introduzimos propositalmente onírismo, suspensão do tempo, de modo que a tecnologia, o corpo, a projeção, atuem como mediação e favorecedores de algo que não é apenas “entretenimento”, mas acesso simbólico.
Especificamente no Eranos, trabalhamos com o conceito de “protagonismo infantil”, onde a criança é compreendida como sujeito ativo de suas experiências! E aí a Psicologia ajuda a entender os modos de percepção infantil, seus tempos, sua potência imaginal, suas sensações. Por exemplo, o uso de projeção digital em nossos espetáculos é pensado para respeitar o ritmo da criança (mais sensível), para evocar e não saturar, para abrir o espaço de contemplação e de invenção, em vez de sobrecarregar com estímulos.
Também considero o universo onírico: o sonho, a metáfora, os arquétipos como chão vital para a cena. O sonho não é apenas matéria individual, mas material compartilhado, simbólico, que se presta à arte cênica: quando introduzimos nas cenas imagens projetadas que se transformam, bonecos que se animam, corpos que se fundem com luz ou sombra, estamos convocando uma lógica de sonho: onde os limites se esgarçam, onde o real e o imaginário co-existem. Então a Psicologia oferece a escuta, a compreensão dos processos internos do sujeito, da infância, do imaginário; as Artes Cênicas oferecem o corpo, o espaço, a imagem, o fazer artístico. Juntas, permitem criar experiências estéticas que transformam percepção, afeto e pensamento, convocando o público a imaginar e sentir de modo sensível.
JP – No campo da psicologia, qual é a sua principal referencia (teórica e prática)?
Sou especialista em Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung, orientação psicológica que me fornece a base para a compreensão do inconsciente como dimensão simbólica e criativa, onde as imagens são manifestações vivas da psique. Nesse sentido, compreendo a arte como um campo de emergência dessas imagens, um espaço onde o inconsciente pode se expressar corporalmente, visualmente e poeticamente. Ainda trago a Psicologia Arquetípica de James Hillman para ampliar a perspectiva ao deslocar o foco do “eu” para a imaginação, colocando a imagem no centro do pensamento e da criação. A Psicologia Arquetípica propõe uma escuta poética da alma, uma forma de perceber o mundo por meio das imagens que ela produz . Em meu trabalho, as imagens não apenas ilustram ideias: elas são o próprio pensamento da alma, são modos de existência da imaginação.
JP – Quando se deu o seu interesse em trabalhar com o universo infantil?
No início do meu trabalho com o público da primeira infância em meados de 2013, percebi que muitas obras voltadas para crianças eram construídas a partir de um olhar adultocêntrico: subestimavam suas capacidades, caricaturavam suas experiências ou reproduziam diversos estereótipos. Essas obras frequentemente não consideravam os corpos das crianças, seus ritmos, tempos, imaginação, vozes e modos de perceber o mundo.
A partir dessa constatação, percebi que era necessário refletir sobre as artes cênicas neste contexto e também a própria relação com o público infantil. Inspirados pela Sociologia da Infância, que compreende a criança como um agente ativo de suas experiências, capaz de criar significados, explorar mundos, experimentar sensações e dialogar com a arte de maneiras próprias começamos um trabalho dentro do Eranos junto a este público.
Essa visão nos levou a desenvolver uma pesquisa direta com as crianças, observando seus modos de brincar, interagir e interpretar o mundo. Cada encontro revelou que a infância tem seus próprios tempos, ritmos e linguagens, e que o papel da arte é acompanhar, provocar e expandir essas experiências, sem dominá-las ou reduzi-las a estereótipos.
A partir dessa escuta e desse respeito profundo pela agência infantil, começamos a criar obras contemporâneas que respeitam à curiosidade e à imaginação das crianças, oferecendo espaços onde elas podem ser protagonistas de sua própria experiência artística. O trabalho tornou-se, assim, um convite à criação conjunta, em que a arte não é apenas recebida, mas vivida, explorada e transformada por quem a encontra pela primeira vez.
JP – Como se deu a criação da Eranos Círculo de Arte? Quais são os objetivos? Quem integra?
As atividades do Eranos tiveram início no ano de 2010 . Quem integra o núcleo criativo e de produção somos eu e Leandro Maman e contamos com várias parcerias criativas ao longo deste tempo. O Eranos Círculo de Arte tem como objetivo, a produção de arte voltada à primeira infância, promovendo experiências estéticas significativas que despertem a sensibilidade, a imaginação e o encantamento das crianças em seus primeiros contatos com o mundo da arte. Através de propostas que integram diferentes linguagens, como teatro, artes visuais e literatura, buscamos criar espaços de encontro respeitando o ritmo, tempo e a potência criadora das crianças na primeira infância. O grupo entende a arte como um campo de descoberta e escuta, em que o brincar, o sentir e o imaginar se entrelaçam como formas de conhecimento. Assim, o Eranos Círculo de Arte propõe-se a contribuir para o desenvolvimento integral da criança, estimulando o olhar poético sobre o mundo e fortalecendo vínculos entre arte e sociedade.
JP – Quais têm sido as principais iniciativas da Eranos?
Espetáculos Teatrais para a Primeira Infância, Oficinas de Capacitação Artística e Pedagógica, Mostras e Ocupações Culturais, Circulações Estaduais e Nacionais, Pesquisa e Experimentação Artística, Produções Literárias e Audiovisuais.
JP – Você poderia comentar sobre o protagonismo das crianças nas produções do Eranos? Como se dá o protagonismo?
No Eranos, o protagonismo infantil não é apenas um conceito abstrato ou um gesto simbólico: ele está presente em todas as dimensões do trabalho artístico, desde o processo criativo, passando pela recepção do público, até a experiência física e sensorial do espaço. Inspirados pelos princípios da Sociologia da Infância e da Psicologia Analítica, compreendemos a criança como sujeito social e poético pleno, capaz de influenciar, transformar e ser sujeito ativo de suas experiências e aprendizados.
Entendemos a criança não como um receptor passivo, mas um agente com voz, desejo e capacidade de decisão. No Eranos, esse reconhecimento se traduz em práticas concretas: as crianças participam em todas as etapas do processo de criação que se estende até à apresentação. Ao invés de esperar que as crianças se adaptem a um modelo rígido de fruição, procuramos construir espaços acolhedores e sensíveis, onde elas podem escolher permanecer ou não, mover-se, explorar ou simplesmente observar. O cuidado com a ambientação: cores, sons, texturas, circulação e conforto, reconhecem o direito da criança de sentir-se segura e ativa no ambiente artístico. É um protagonismo que se expressa no direito de decidir, de interagir, de se afastar ou se aproximar, sem pressões externas.
Para mim, protagonismo infantil também não é simplesmente dar voz à criança ou colocá-la no centro de uma narrativa. É, sobretudo, reconhecer a criança como sujeito pleno, com desejos, percepção, imaginação e capacidade de agir no mundo. É entender que a infância tem sua própria lógica, seu próprio tempo e sua própria linguagem, e que a arte precisa escutar isso para existir de fato. No Eranos Círculo de Arte, o protagonismo infantil se manifesta de forma concreta em todos os momentos do trabalho artístico. Desde a criação das obras, as crianças são convidadas a experimentar, brincar, explorar materiais, sons, imagens e palavras. Não apenas reagir: elas influenciam as escolhas estéticas, sugerem caminhos, e muitas vezes nos ensinam soluções que nós, adultos, jamais imaginaríamos.
O protagonismo também está presente na experiência de fruição: a criança é livre para decidir se quer ou não participar, se quer observar, aproximar-se ou se afastar. Os espaços são pensados e cuidados com atenção, garantindo que elas se sintam seguras e respeitadas, com liberdade de movimento, de atenção e de escolha. Cada gesto, cada silêncio, cada olhar da criança é considerado parte viva da obra. Em projetos como PÔ!Ema por exemplo, percebemos claramente que o protagonismo infantil não se limita ao palco: ele é poético, simbólico e relacional. A criança interage com imagens, cores, sons e palavras de maneira sensível, e essa interação altera a própria obra.
Por fim, protagonismo infantil, para mim, é respeito e escuta profunda: é perceber que a criança sabe, sente e cria. É reconhecer que a infância tem força e inteligência próprias, e que a arte só se realiza plenamente quando permite que essa força se manifeste. No Eranos, o protagonismo infantil é, portanto, um princípio ético, estético e poético: é o coração da criação que nos conecta à imaginação, ao sonho e à capacidade de espanto que só a infância possui.
JP – Como se produz a escrita teatral para o universo infantil?
Para nós no Eranos Círculo de Arte, a escrita teatral para a infância nasce menos de uma intenção pedagógica e mais de uma escuta poética da criança e do mundo. É uma escrita que se produz quando conseguimos silenciar o adulto que explica, ensina, e favorecemos espaço para que o olhar da criança nos mostre o que ainda pulsa como mistério. No Eranos, nosso processo não começa com o texto, mas com a experiência junto das crianças em espaços construtivos (escolas, cena, oficinas, etc), acolhendo as imagem que surgem, os sons, os gestos. A escrita vem depois, como quem recolhe rastros de uma travessia que é resultado de um tempo de presença e observação. Quando escrevemos para crianças, não pensamos em simplificar o mundo, mas em aprofundar o sensível. A criança habita naturalmente o território do símbolo e da metáfora; ela compreende por imagens, por sensações. Então a dramaturgia precisa se fazer imagem também como uma dramaturgia imaginal, onde cada palavra tenha corpo, cor, textura, respiração. A Psicologia Analítica e a Psicologia Arquetípica me ajudam muito nesse caminho: penso a escrita como um campo simbólico, onde o texto é uma paisagem da alma, povoada por arquétipos, sonhos e forças que pertencem ao inconsciente pessoal e coletivo. O teatro para a infância, nesse sentido, não é “sobre” a criança, mas sim um encontro entre mundos: o da criança e o do adulto. Muitas vezes, a escrita teatral surge a partir de uma imagem onírica, como um barco amarelo que navega entre mundos, uma ema que se alimenta de poemas, uma casa que respira, um bebê que viaja por universos. Essas imagens são como sementes onde a dramaturgia cresce delas, e não de uma narrativa linear racional. Também procuramos escrever a partir do tempo da criança, que é mais circular, contemplativo, permeado de pausas e descobertas. Por isso, a escrita teatral precisa acolher o silêncio, a repetição, o ritmo do olhar que ainda se espanta e que não precisa ser guiado, mas acolhido e respeitado. Em síntese, produzir a escrita teatral para o universo infantil é escrever com a alma desperta e o corpo escutando. É permitir que o texto não ensine, mas revele. Que a palavra não diga tudo, mas abra espaço para o sonho. E que o teatro seja o lugar onde a imaginação (infantil e adulta ) possa brincar, respirar e se reconhecer como parte de um mesmo universo simbólico.”
JP – Quais são os principais temas que você trabalha para o universo infantil?
Dentro do processo de criação dentro do Eranos Círculo de Arte, o que me move na criação para o universo infantil são os temas que falam à alma da criança e também àquela parte de nós, adultos, que ainda é capaz de sonhar. Trabalhamos com imagens que pertencem à infância da humanidade: o mar, o voo, o sono, o nascimento, a travessia, a luz, a sombra, o tempo, o silêncio, o mergulho. São temas arquetípicos, que atravessam culturas e idades, e que chegam à criança como presenças vivas e não apenas como conceitos. Compreendo que a criança habita o imaginário com naturalidade. Ela reconhece o símbolo antes da palavra. Por isso, nos trabalhos do Eranos, buscamos criar experiências poéticas em que esses símbolos possam emergir por meio de imagens visuais, sonoras e corporais: o barco que parte, o vento que sopra, o corpo que flutua, a palavra que vira cor. o teatro pode ser esse espaço do sonho compartilhado. Gosto de criar narrativas que se movimentam entre o real e o imaginário, onde o impossível é natural e o cotidiano ganha outra luz. Também me interessa o tema da escuta e do tempo. A criança ensina o adulto a desacelerar, a perceber o instante. Por isso, o tempo das cenas é mais lento, respirado, cheio de pausas e de descobertas. Por fim, falo muito sobre o ato de imaginar: a imaginação como potência criadora e como forma de conhecimento. A criança imagina para compreender o mundo. O teatro, a literatura e as artes visuais se tornam, então, pontes entre o sensível e o invisível, entre o que se vê e o que se sente.
JP – No campo da poesia, como se dá a sua poética voltada para o universo infantil?
A minha poética particular e dentro do Eranos, nasce desse encontro entre o imaginário da infância e a escuta simbólica da alma. O projeto PÔ!Ema – experiência poética com crianças, por exemplo, surgiu justamente dessa vontade de reconhecer a criança como poeta, lá em meados de 2013. O livro e a performance nasceram do encontro com crianças e de pequenas palavras-imagem que criamos junto com elas, através de um modo lúdico, verdadeiro e profundo de nomear o mundo. Em Pô!Ema, a poesia brota naturalmente da experiência, troca e da escuta, do gesto e da palavra. A partir também desse universo, nasceu o Cine.EMA, uma série de curtas poético-visuais em que a “Ema”: essa ave simbólica, híbrido (anagrama de Mãe) se alimenta de poemas e os transforma em imagem, cor, movimento e som. No Cine.EMA, a palavra se faz imagem, e a imagem, por sua vez, devolve à palavra a sua dimensão sensorial. É uma experiência de poesia expandida: uma escrita que se move, que canta, que sonha.
Mas, na verdade, toda a criação do Eranos parte da poesia. Mesmo quando fazemos teatro, performance, audiovisual ou artes visuais, o ponto de partida é sempre a imagem poética, uma imagem que não descreve o mundo, mas o revela de outro modo. Por isso, digo que minha poética para o universo infantil é uma poética da imaginação e do espanto. Ela nasce do olhar que ainda se surpreende com o simples, que transforma o cotidiano em símbolo, que reconhece no gesto, na sombra e na luz a presença do sagrado. Nos espetáculos para a primeira infância e nas outras experiências visuais do Eranos, a poesia não está apenas no texto: ela está no ritmo, nas pausas, nas cores, na respiração da cena. Cada elemento é uma palavra do poema. Acredito que a poesia, para a criança, é uma forma de pensar o mundo com o coração desperto. Ela não explica mas sugere, convida, toca. E quando o adulto cria a partir dessa escuta poética, ele se reconecta com o que há de mais essencial na existência.
JP – Quais são os seus planos futuros?
Meus planos futuros no Eranos Círculo de Arte estão muito ligados à pesquisa e à criação, sempre buscando aprofundar a compreensão sobre o imaginário simbólico e arquetípico das crianças brasileiras. Tenho interesse em mapear como os mitos, contos populares, folclore, símbolos coletivos e, especialmente, os sonhos das crianças que se manifestam na percepção, no brincar e na criação delas, e como isso pode ser incorporado em processos artísticos que respeitem seu protagonismo. Os sonhos são particularmente ricos, porque revelam medos, desejos, fantasias e formas únicas de compreender o mundo, agindo como pontes entre a vida cotidiana e o universo do imaginário.
Paralelamente a essa pesquisa, pretendo desenvolver novas produções teatrais e literárias que dialoguem com esses universos simbólicos e oníricos, criando obras que sejam, ao mesmo tempo poéticas, lúdicas e profundamente conectadas às infâncias. O objetivo é que essas criações estimulem a imaginação, a sensibilidade favorecendo que elas reconheçam seus próprios mundos internos como valorosos e que se vejam refletidas nas histórias e sintam-se autoras de suas próprias experiências.
Acredito que o trabalho artístico baseado no protagonismo infantil não transforma apenas a experiência da criança, mas também impacta a sociedade como um todo. Ao favorecer que crianças participem ativamente da fruição artística, estamos cultivando uma cultura de escuta, respeito e sensibilidade, que reflete valores de cidadania, empatia e participação social. Cada obra, cada oficina e cada experiência artística é uma oportunidade de fomentar uma sociedade mais consciente, inclusiva e criativa, em que as vozes mais jovens são reconhecidas como agentes de mudança.






