
Estreou “(Um) Ensaio Sobre a Cegueira” no teatro Carlos Gomes.
Espetáculo do Grupo Galpão.
A apresentação é uma adaptação do romance “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago, realizada por Rodrigo Portella, também o diretor da peça teatral
O texto é literário adaptado para o teatro, ficcional, dramático, reflexivo, crítico, atual, emocionante e tenso. Sublinha a importância de se aprender a valorizar a coletividade e a reforçar os laços de solidariedade quando somos atingidos por calamidades que afetam a vida humana em sociedade. Para retornar ao momento anterior de normalidade, faz-se necessário o esforço conjunto de todos. No caso do texto analisado a epidemia que se alastra pelo país, tornando cegos todos os cidadãos.
No texto, cegueira não é a simples perda da visão, um dos sentidos vitais da vida do ser humano. Mais do que isso. A cegueira é a incapacidade do ser humano de ver as coisas para além de si mesmas, de enxergar criticamente. A perda da capacidade de uma visão crítica nos torna cegos diante de um mundo dilacerado por questões que abalam a condição humana. A ousadia de pensar por si mesmo, de forma crítica, sem a tutela de outrem, é o que nos faz enxergar para além das coisas em si. Quando perdemos a capacidade de reflexão crítica, passamos a não enxergar mais o mundo em que vivemos.
A dramaturgia está dividida em dois atos: 1- a cidade; 2- o manicômio. Ela apresenta uma narrativa clara e didática, com um inicio (quando um homem do nada no trânsito ficou cego, enxergando um ‘mundo branco”, e a disseminação da condição pela população da cidade); meio (o encarceramento daqueles que foram afetados num manicômio e o viver naquele espaço enfrentando dissabores como a fome e a falta de higiene); fim (Após sobreviverem a um sem-número de atrocidades e organizarem uma rebelião, ocorre a libertação de todos e a ida para as ruas).
O elenco se apresenta unido, potente, ajustado e entrosado. Sobressai: Fernanda Vianna interpretando de forma notável a mulher que manteve a visão; Eduardo Moreira interpretando o inquieto oftalmologista; Paulo André que interpreta o ladrão; e Julio Maciel interpretando o desajeitado primeiro cego.
No nosso ponto de vista, a inserção de alguns espectadores em cena a partir de um certo momento do espetáculo é realizado com cuidado e organização, sendo uma experiência válida. O público que se associou aos atores tornou-se o novo conjunto de cegos e cegas, sendo colocadas faixas em suas respectivas vistas. A inserção da plateia serve para preencher espaços de figuração, mas não participam da narrativa do texto.
A direção de Rodrigo Portella valorizou o texto, e deixou o elenco a vontade naquele palco para realizar interpretações que se associam com emoções. Difícil não se emocionar com a situação de exceção dentro do manicômio, passando diversos dissabores como fome, falta de higiene, ausência da visão, privações, entre outros. E o elenco, por meio de sua atuação, consegue passar o que é viver nesse mundo de isolamento e restrição.
Ao final da peça, os portões se abrem para que os atores e o público saiam do teatro Carlos Gomes para a rua. Bonita e contagiante experiência de encerramento!
A direção musical de Federico Puppi é complexa e bem solucionada, apresentando uma dimensão sonora constituída por sons, ecos, cantorias acompanhadas por diversos instrumentos, que integram a dramaturgia e dão uma dinamicidade ao espetáculo.
Os figurinos criados por Gilma Oliveira são corretos. São roupas do quotidiano relacionadas aos diversos agentes sociais.
A cenografia criada por Marcelo Alvarenga é adequada e funcional. Ela é constituída por mesas, cadeiras, estruturas de ferro, araras de roupas, e tampo de madeira. Estes elementos cenográficos apresentam varias ressignificações e deslocamentos.
A iluminação criada por Rodrigo Marçal e Rodrigo Portella é boa e precisa.
“(Um) Ensaio sobre a cegueira” apresenta uma correta adaptação de uma obra literária para o universo teatral; um elenco forte, unido e coeso; e, figurinos, cenografia e iluminação estão relacionados, formando um belo conjunto.
Excelente produção cênica!